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Crítica | Cidade de Fantasmas

Raqqa está sendo massacrada silenciosamente. Em tradução livre, esse é o nome do grupo de jornalistas sírios que desvelaram para o mundo o real terror que vem tomando a cidade deles, Raqqa, hoje, matriz do grupo terrorista Estado Islâmico. O site RBSS (Raqqa is being slaughtered silently) começou atuando exclusivamente da cidade, conseguindo disfarçar suas ações e não chamar a atenção do EI. Porém, quando um dos criadores e colaboradores foi preso e morto pelo grupo, os outros se viram obrigados a viajar para a Turquia e depois para a Alemanha. Para conseguirem o material, alguns corajosos ficaram no país. É essa resistência, capaz de ver a comunicação (do real) como a mais eficiente arma o assunto de Cidade de Fantasmas, novo documentário de Matthew Heineman.

Partindo da Primavera Árabe, o filme apresenta no seu primeiro ato, um panorama geral de como o estado de coisas da Síria atual foi instaurado. O mais importante desta sucessão de fatos é perceber as fronteiras que o mundo digital quebrou. Quer dizer, a Primavera Árabe só foi o que foi pelo engajamento gerado nas redes. E, também, os hoje jornalistas que compõem a equipe do RBSS, antes de juntarem-se aos movimentos contra o ditador Bashar al-Assad, eram politicamente inativos – um era professor de matemática, outro um estudante universitário desleixado… E, enfim, como a moeda tem dois lados, a Internet permitiu que as imagens de Raqqa chegassem ao mundo, assim como foi canal de recrutamento, convencimento e terror para o Estado Islâmico.

Toda essa violência que circula pela rede e que muitos de nós não temos sequer coragem de imaginar forma trechos substanciais do filme. Isto é, Heineman sabe do poder do choque. As imagens feitas com celulares, em baixa resolução, contrastam com suas filmagens com alto valor de produção e requinte visual. Afinal, querendo ou não, o fazer desse documentário é uma invasão, mesmo tomadas as devidas precauções para não expor informações do grupo. Dito isso, é compreensível que o diretor opte por ocultar algumas cenas mais fortes que os jornalistas do RBSS vêem diariamente: não há possibilidade de ocupar o lugar deles. Mesmo assim, sobram momentos de enjôo e indignação (fuzilamentos, exposição de corpos decepados, crucificações e outras torturas).

Em certa medida, a sensível visão americana de Heineman contrasta bem com as “superproduções hollywoodianas” da propaganda do Estado Islâmico, cujo poder de convencimento recai em estéticas contemporâneas, do digital encantador. Nomeadamente, pega as bases mais fúteis dos certos videogames, por exemplo a ideia de encarnar o herói invulnerável que trucida todos os seus inimigos, para produzir um vídeo que imita a visão em primeira pessoa, mostrando a glória que é ser parte do EI. Como se essa ferramenta não fosse já problemática pelo lado americano, o entretenimento se transforma em arma ideológica para os “inimigos”, também.

Cidade de Fantasmas dá ainda espaço para discutir a grande massa de manifestantes conservadores, que encontram na atual situação complexa, em todo o mundo, espaço fértil para propagação de ideias limitadas, que olham só para o presente, para o curto prazo. É um trecho doloroso, que surge já nos momentos finais do filme, mostrando um paralelo real no uso das bandeiras de cor preta, para embalar bem o fogo cruzado em que o RBSS se encontra, isto é, um grupo que preza pela liberdade de expressão encontra tantas barreiras até mesmo fora do seu país.

Pelo fato de aproximar o espectador da realidade desses jornalistas, e consequentemente da realidade síria, Cidade de Fantasmas encontra legitimação muito forte. É um filme bem explicativo, porém,  longe de ser blindado. Movido pelo encantamento de resistência e pelo grito de socorro dos heróis do RBSS, Heineman não encontra espaço para questionamento das estratégias, nem da dualidade que tanto impressionou em Cartel Land, seu documentário anterior, na época, nomeado para o Oscar. Certamente, é uma visão difícil de alcançar. Seria possível? Falta essa dúvida. O que não falta em Cidade de Fantasmas é a certeza de que os fantasmas do nosso tempo são muito reais. Há o nascimento e a morte: o resto, a vida, aqui no meio é que é.

Cidade de Fantasmas (City of Ghosts, EUA – 2017)

Direção: Matthew Heineman
Gênero: Documentário
Duração: 90 min

Redação Bastidores

Publicado por Redação Bastidores

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