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Crítica | 3%: 2ª Temporada – Os Dois Lados da Moeda

A Netflix sempre prezou por uma constante renovação de seu catálogo e pela geométrica produção de conteúdo original – e uma das grandes sacadas realizadas pela gigante do streaming foi se aproximar do crescente público brasileira ao arquitetar a primeira série nacional, cuja ideia principal era abrir portas para novos produtos audiovisuais que se afastassem do escopo novelesco ou comédia pastelão pelo qual nossa indústria cinematográfica e televisiva é conhecida. E foi assim que, em 2016, foi lançado 3%, um show que trouxe suas imperfeições, porém serviu como pontapé inicial para uma nova visão acerca da arte brasileira – afinal, esta é uma das poucas narrativas que atualmente se inclina para o gênero futurista-distópico. O eminente sucesso permitiu sua quase certeira renovação, e felizmente a equipe por trás da segunda iteração alcançou um novo patamar.

Como é de praxe, sempre que lidamos com um cosmos da ficção científica, somos primeiro apresentados às regras; logo depois, aos personagens-pivôs que continuaram ou desmantelarão o status quo, buscando a insurgência de uma nova ordem em detrimento de um conservadorismo exacerbado. Haverá conflitos, motins e sacrifícios necessários para o desenrolar da trama – e, se tudo der certo, o ápice trará uma verdade incontestável e uma irreversível e brusca mudança; é esse o caminho que a série traça e, mesmo com uma inovação no quesito técnico-artístico, algumas falhas ainda são bem perceptíveis, principalmente no tocante aos diálogos, que rendem-se às alternativas charlatonas para dar impulso a um evento importante.

Já passou um ano desde que o 104º Processo, responsável por selecionar os 3% da população do Continente que merece mudar de vida e ir ao Maralto, aconteceu; como bem sabemos, máscaras caíram, aliados foram construídos, amizades acabaram e o grupo de protagonistas ao qual fomos apresentados há algum tempo não existe mais. Michele (Bianca Comparato) agora vive nos luxos e no conforto de seu novo lar, tentando lidar com as traições às quais se submeteu para reencontrar o irmão André (Bruno Fagundes), o qual havia sido dado como morto, porém está preso em confinamento pelo primeiro assassinato do Novo Mundo. E é claro que, por trás das distorcidas promessas, há a figura do tirano e conturbado Ezequiel (João Miguel retornando em grande forma para a série), mantendo tudo sob controle e impedindo que quaisquer obstáculos ameacem romper.

Do outro lado, voltamos a acompanhar a saga de Joana (Vaneza Oliveira), desistente do Processo que procura destituir de vez todo o falho conceito de meritocracia que é explorado e criticado diversas vezes ao longo dos dez novos episódios. Ela, em determinado momento, cruza caminho com o grupo conhecido como A Causa, mencionado no ano predecessor e que aqui ganha mais delineações e complexidade para fundar uma segunda camada para a sociedade que nos é apresentada – é interessante notar também que, à medida que percebemos a profundidade narrativa ganhando bastante força, até mesmo as técnicas utilizadas para a filmagem são repaginadas com novas investidas, afastando-se dos vícios de linguagem como plano holandês e câmera na mão para retomar o classicismo das séries dramáticas de forma coesa e, ao mesmo tempo, original.

Michel Gomes também retorna para série no papel de Fernando, cujo arco de enganação o transformou em alguém amargo e sem qualquer esperança. Sua mentalidade, agora mais clara depois de ter falhado nas “missões”, é extremamente rebelde, fator que aumenta as rixas com a igreja comandada por um alienado pai, e suas tentativas fracassadas de impedir que os jovens de vinte anos entrem para o Processo por tratar-se de uma análise nem um pouco coerente das habilidades de cada um baseando-se em provas que não medem absolutamente nada. Esse discurso revolucionário acompanha, ainda que de forma indireta, cada um dos personagens, incluindo aqueles que dão às caras só agora. Uma dessas novas entradas vem em Marcela (Laila Garin), uma das líderes do exército do Maralto que é protagonista de uma das viradas mais interessantes de toda a série; sua personalidade é moldada conforme as falsas ideologias do Casal Fundador – que nos é explicada conforme os capítulos se desenrolam – e, aqui, ela também serve como a principal antagonista e empecilho para a fluidez dos nossos heróis. É possível até traçar paralelos entre ela e outras figuras da cultura pop contemporânea, incluindo os tiranos Presidente Snow, de Jogos Vorazes, e Ava Paige, de Maze Runner, seja pelos objetivos, seja pela construção cênica.

Não podemos dizer que César Charlone e Pedro Aguilera não tenham aprendido com os insuportáveis deslizes da primeira temporada; aqui, tanto o criador quanto o produtor executivo percebem que é possível explorar ainda mais aquilo que criaram, expandindo de forma exponencial todos os pequenos núcleos atmosféricos e narrativos e criando cenários que definitivamente não esperávamos ver, ao menos por enquanto. A montagem oscila entre o Maralto e o Continente, e ainda que possa parecer saturado, consegue dar sustância o suficiente para cada um dos protagonistas e coadjuvantes, mostrando a relação de interdependência entre cada um, levando a outro nível a ideia de relação simbiótica: Fernando, por exemplo, é respaldado pela melhor amiga Glória (Cynthia Senek), a qual tem relação até mesmo com sua paraplegia. Por vezes, o roteiro peca no excesso de tragédia e drama e a deixa um tanto quanto previsível, mas na maior parte as coisas funcionam e acabamos criando um laço com essa personagem.

A organicidade com a qual tudo flui é outro ponto a ser mencionado. Glória também puxa algumas presenças interessantes para a nova subtrama a ter início e consegue conversar com figuras cuja relação é palpavelmente inexistente, mas que traz um sentido anacrônico. O mesmo pode ser dito entre Michele e André, que traçam paralelos com a história do Casal Fundador – e aqui está o plot twist: o Casal, na verdade, era um Trio que entrou em discordância e acabou sofrendo uma brusca perda acidental de uma das idealizadoras do Maralto, cuja linha nunca prezara pelo Processo, mas sim para condições de vida igualitárias. Aproveito o momento para mencionar a incrível performance de Maria Flor, Fernanda Vasconcelos e Silvio Guindane como o grupo em questão; os três trazem, em um necessário filler para a compreensão da história como um todo, uma química inigualável e que certamente envolve o espectador ao máximo.

Ainda que a melhora seja visível, não posso deixar de mencionar a falta de cuidado e de “polimento” de alguns aspectos dessa iteração: os figurinos, antes tratados com pouco detalhamento e que tornavam as coisas menos críveis, sofrem um “banho de loja” completo e até conseguem se aproximar do gênero sci-fi ao qual estamos acostumados. Entretanto, ainda não é o bastante para nos fazer crer por completo e mergulhar na proposta que Aguilera e Charlone tentam nos passar – e ambos fazem um bom uso da fotografia e da direção de arte para mascarar esses defeitos. Além disso, alguns diálogos também parecem saídos de uma caixinha de frases prontas, espalhadas profusamente para tapar eventuais buracos; o desfecho da segunda temporada passa por uma péssima escolha de palavras que até cria um cliffhanger considerável, mas moldado em cima do monótono “final feliz” fabulesco.

De modo geral, 3% tornou-se mais respeitável, não só por conseguir cumprir com as expectativas que prometeu e falhou no primeiro ano, e sim também por conseguir esmiuçar um outrora perdido potencial. De fato, não podemos tirar mérito da equipe por trás da série – e definitivamente pela constante tentativa de colocar os parâmetros da produção audiovisual brasileira em um patamar que se torna cada vez mais perto.

3% – 2 Temporada (Idem, Brasil – 2018)

Criado por: Pedro Aguilera
Direção: Daina Giannecchini, Dani Libardi, Jotagá Crema, Philippe Barcinski
Roteiro: Pedro Aguilera
Elenco: Bianca Comparato, Michel Gomes, Rodolfo Valente, Vaneza Oliveira, João Miguel, Viviane Porto, Celso Frateschi, Sérgio Mamberti, Zezé Motta, Fernanda Vasconcelos, Maria Flor, Bruno Fagundes, Cynthia Senek, Laila Garin, Samuel de Assis, Thaís Lago
Emissora: Netflix
Episódios: 10
Gênero: Drama, Ficção Científica
Duração: 55 min.

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Publicado por Thiago Nolla

Thiago Nolla faz um pouco de tudo: é ator, escritor, dançarino e faz audiovisual por ter uma paixão indescritível pela arte. É um inveterado fã de contos de fadas e histórias de suspense e tem como maiores inspirações a estética expressionista de Fritz Lang e a narrativa dinâmica de Aaron Sorkin. Um de seus maiores sonhos é interpretar o Gênio da Lâmpada de Aladdin no musical da Broadway.

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