Amor, sentimento feroz, indescritível que, ao mesmo tempo, pode ocasionar em felicidade e miséria, no mais sincero, real sentido de tais palavras, ao ser humano. Temática milenar, central da arte – afinal, a arte, independente a qual objetivo se finaliza, é amar. Portanto, como levaríamos nossas vidas, se pudéssemos apagar ligeiramente nossas dores provocadas por umas ardentes paixões mal resolvidas? Desvincular de nossas mentes, memórias ressonantes, antes de acalento, mas que agora se converteram em traumáticas cicatrizes? Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças mergulha nessa questão, ao mesmo tempo que retrata uma relação amorosa como ela na realidade é: uma furiosa tempestade que, apesar de tudo, faz nos sentir completos.
Iniciamos a obra com uma narração em off, como páginas lidas de um diário, de Joel (Jim Carrey), explicitando suas emoções ao sair de casa e ir para o trabalho. No meio do caminho, todavia, subitamente um ataque de impulsividade o acomete, o que o leva, sem nenhuma razão aparente, a pegar um trem para Montauk. Durante essa viagem não programada ele conhece Clementine (Kate Winslet), uma mulher de personalidade e aparência únicas que, de imediato, já apresenta uma grande química com o protagonista. Desde esse trecho inicial já podemos sentir como se algo estivesse fora do lugar, há alguma coisa oculta a nós, espectadores e até, talvez, para os personagens em questão. Pouco depois descobrimos que, de fato, esse é o caso: ambos tiveram uma longa relação amorosa, mas, após uma briga, Clementine optou por apagar suas memórias de Joel. Desolado, ele decide fazer o mesmo. O filme, a partir daí, centra nesse processo, enquanto nos revela diferentes períodos do namoro dos dois.
Ganhador do Oscar de Melhor Roteiro Original, o texto de Charlie Kaufman procura colocar em cheque a necessidade de sermos forçados a viver com memórias dolorosas, em paralelo, ele nos traz uma verdadeira tese sobre a realidade de um relacionamento – nem tudo são flores, brigas vão existir e muitas lágrimas serão derramadas. A primeira “fase” das lembranças de Joel nos trazem isso: uma relação exausta, na qual ambos mal conseguem dialogar sem se atacarem. Chega a ser angustiante ver como eles se portam diante um do outro, especialmente logo depós de termos visto seu primeiro encontro (ainda que não soubéssemos se o prólogo se passava antes ou depós de todo o incidente), um verdadeiro trunfo de uma montagem bem planejada.
Toda essa ideia construída à priori, contudo, vai sendo desconstruída, ao passo que enxergamos que o namoro não foi limitado somente a isso. O roteiro, então, nos acerta em cheio, ao passo que as memórias iniciais se traduzem como a linha de pensamento de alguém em dor, que só enxerga o lado negativo de algo. Isso, por sua vez, dialoga perfeitamente com a impulsividade de Clementine, consequência de sua sensibilidade e instabilidade emocional, ambas já apresentadas a esse ponto do filme, algo que Joel compartilha à sua própria maneira. Aqui o que já não era comum se torna verdadeiramente único – as tentativas do protagonista em abortar o processo de apagar as memórias criam uma tensão constante e crescente no espectador e cada tentativa malsucedida traz uma angústia maior. O roteiro genialmente aproveita esses trechos para construir a personalidade de Clementine, aprofundando em seus sentimentos, motivações, manias e gostos pessoais.
Enquanto tudo isso ocorre, os personagens fora da mente de Joel atuam não só como elementos para aprofundar a nossa angústia, como para mostrar o quanto todo esse procedimento é errado. Nós precisamos de nossas memórias para crescermos, por mais dolorosas que elas sejam, caso contrário seríamos apenas um amontoado de vazios sem o importante aprendizado da dor. Os personagens principais nos mostram isso com evidência, ao passo que, mesmo “esquecidos”, contam com algumas marcas do passado deixado para trás. Afinal, o sentimento que um nutre pelo outro não pode ser apagado, apenas enterrado.
Naturalmente, toda essa narrativa não atingiria sequer metade da sua eficácia não fossem as atuações de Carrey e Winslet, que, não só (como já foi dito antes) apresentam uma indiscutível química, como realmente se entregam para os papeis, de forma que neles só enxergamos seus personagens e, acima de tudo, pessoas que facilmente poderiam viver entre nós. Há uma sinceridade no olhar de ambos, ao passo que não podemos deixar de nos apaixonar pela relação deles, por mais que a tenhamos testemunhado apenas no momento da trágica desconstrução, que faz uso de efeitos especiais muitíssimos interessantes, exemplificando bem o que ocorre na mente do protagonista. Vemos, nos dois, pessoas que realmente conhecem um ao outro e o mero silêncio dos dois atores deixa isso mais que estampado na tela, fruto que também deve muito à direção de Michel Gondry, que sabe muito bem definir cada cena através de seus ângulos, sejam closes que evidenciam a emoção de cada indivíduo, sejam planos abertos que nos mostram como eles são únicos nesse mundo.
No fim, Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças nos traz uma narrativa cíclica que muito bem representa as relações pelas quais passamos ao longo da vida. Somos deixados, porém, com a percepção de que Joel e Clementine verdadeiramente merecem um ao outro, afinal o que é o amor se não aceitar e valorizar as particularidades do outro, de forma que mesmo problemáticas para uns, se tornam qualidades ao olhar daquele pronto para recebê-las? Houvessem de fato esquecido de tudo jamais teríamos essa descoberta, nos mostrando que, de fato, precisamos de nossas memórias, por mais dolorosas que sejam, afinal, elas podem deixar de ser meramente lembranças.
Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (Eternal Sunshine of the Spotless Mind – EUA, 2004)
Direção: Michel Gondry
Roteiro: Charlie Kaufman
Elenco: Jim Carrey, Kate Winslet, Tom Wilkinson, Elijah Wood, Thomas Jay Ryan, Mark Ruffalo, Jane Adams, David Cross, Kirsten Dunst, Tom Wilkinson
Gênero: Drama
Duração: 108 min.