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Crítica | Descendentes 2

O trabalho de Kenny Ortega com filmes de baixo orçamento já é bem conhecido na indústria cinematográfica, ainda que seu currículo não seja um dos mais extensos. Seus toques sutis de comédia constantemente encontram personagens icônicos e até mesmo milenares, com perspectivas únicas e contemporâneas para histórias clássicas. Temos, por exemplo, um dos longas-metragens mais divertidos dos estúdios Disney, Abracadabra, recontando as narrativas esotéricas das Bruxas de Salem, ou até mesmo a franquia musical High School Musical, provendo ao público uma diversão um tanto quanto satisfatória com os melhores toques do teatro musical da Broadway. Entretanto, ao embarcar em mais um de seus projetos, Descendentes, não podemos deixar de perceber a falta do toque mágico para suas leituras modernas para os contos de fada – dependendo muito da nostalgia para que sua mensagem seja entregue.

É claro que, na indústria cinematográfica atual, as atemporais histórias que endossaram o nome de Disney como um dos maiores impérios audiovisuais de todos os tempos, como Branca de Neve, A Bela e a Fera e A Pequena Sereia, seriam passíveis de diversas releituras literárias e audiovisuais. Once Upon a Time, série da emissora ABC, fornece uma distorção sombria sobre os marcantes personagens, descontruindo a visão estereotipada dos príncipes, princesas e vilões desse panteão; Grimm mergulha de cabeça na mitologia germânica, misturando-a às narrativas metafóricas dos Irmãos Grimm; e onde isso deixa Descendentes? Em algum lugar inesperado, trazendo à vida os filhos dos vilões e heróis que tanto adoramos.

Enquanto o longa original teve como tema-base questões como ambição, perdão e confiança, a segunda iteração da nova franquia de Ortega entra como uma análise de como o encontro do bem e do mal tem suas consequências, negando o conceito maniqueísta e fechado de “felizes para sempre”. A trama principal gira em torno do relacionamento aparentemente pacífico, porém envolto em infelicidades e conturbações, entre Mal (Dove Cameron), filha de Malévola, e Ben (Mitchell Hope), filho de Bela, cujo futuro está claro: a sucessão ao trono e a soberania total de Auradon e da Ilha dos Perdidos – e a distinção óbvia já está nos nomes dos dois territórios (um indicando a luz, e o outro a escuridão).

Entretanto, Mal não se sente nem um pouco confortável com a nova vida, sendo obrigada a mudar de aparência e até mesmo de personalidade, tentando agradar tanto aos futuros sogros quanto aos seus conterrâneos em detrimento de aceitar quem realmente é. Os primeiros indícios de que essa internalização definitivamente não lhe está fazendo bem vêm com o prólogo musical, intitulado Ways to be Wicked (Maneiras de ser Mal, em tradução livre), uma das melhores peças de toda a franquia. A mistura do estilo clássico das trilhas sonoras das animações da Disney com a baque da guitarra elétrica é arranjado de forma harmônica ao mesmo tempo em que expressa, por meio da cantoria e da dança, o que ela realmente quer: equilibrar seu lado bom e ruim sem ter que abandonar um promissor futuro.

Não é de se esperar que a protagonista tenha um breakdown e decida abandonar tudo para voltar à sua antiga vida na Ilha, de onde saiu a mando dos planos maléficos da mãe e acabou se entregando ao amor verdadeiro. Ao perceber que a tão sonhada vida de princesa na verdade não era tudo aquilo, refugiar-se em seu antigo lar parece a melhor das opções, utilizando-se da nostalgia para abandonar as máscaras que vinha colocando e poder ser exatamente quem ela é. Tudo estaria bem – exceto por alguns corações partidos – caso seu território não houvesse sido tomado por uma força inesperada: Uma (China Anne McClain), filha de Úrsula, depois de se sentir abandonada pelo quarteto de descendentes que conseguiu uma nova vida em Auradon, canaliza todo o ódio e toda a frustração para espalhar seu reinado de medo e desbancar o antigo império de Mal, sua arqui-inimiga.

O resto da história é previsível: alguns arcos de redenção e de superação permeando uma narrativa um tanto quanto saturada, mas adornada com alguns números musicais interessantes e satisfatórios. Afinal, Ortega sempre teve uma grande capacidade para criar coreografias complexas e que utilizassem um ensemble numeroso como forma de endossar as relações entre os personagens em cena. Até mesmo em Abracadabra ele não abre mão de maneirismos teatrais – e isso geralmente funciona. Talvez os deslizes não importem muito, visto que esta é uma obra voltada especificamente para o público infantil contemporâneo, o qual consome um diferente tipo de produto baseado na sociedade em que se encontram – vemos o encontro do medieval com o moderno em Descendentes 2, seja na caracterização dos figurinos (peças de couro coloridas seguindo o mesmo padrão barroco dos contos originais) ou na presença de elementos extradiegéticos (latas de spray, automóveis e scanners 3D).

O longa não brilha, mas também não desaponta – principalmente para aqueles que já não tinham muitas expectativas. Como supracitado, os números de dança e as músicas híbridas conseguem ofuscar o pobre roteiro, o qual se inclina muito para os clichês românticos, ou a psicodélica e incomodante direção de arte. Porém, não podemos tirar o crédito de alguns pontos altos, principalmente na parte da criação de personagens: Evie (Sofia Carson), filha da Rainha Má, entra como arquétipo do guardião e do conselheiro, mostrando uma significante maturação do filme anterior para este. Diferentemente de Mal, sua melhor amiga, a qual não encontra lugar em Auradon, ela começou por conta própria um pequeno negócio de personal designer e pela primeira vez sente-se capaz de mudar o mundo – e isso inclui mudar a vida das centenas de crianças que carregam o fardo de serem filhos de vilões e vilãs.

Enquanto isso, os antagonistas Uma e Harry (Thomas Doherty), filho do Capitão Gancho, roubam a cena com suas personalidades cruéis e perversas. Harry merece uma citação especial por conseguir trazer os trejeitos de seu pai ao mesmo tempo em que nos entrega uma perspectiva original para a caracterização de um pirata – incluindo charme, ironia e sarcasmo constantes.

Descendentes 2 é, sem sobra de dúvida, superior ao seu confuso predecessor, e pode significar mais uma franquia de filmes originais Disney Channel. Apesar da previsibilidade narrativa, esta é uma obra direcionada para as crianças, as quais ficarão muito satisfeitas em perceber que as animações que seus pais assistiam ainda conseguem ser resgatas para sua infância – ainda que não com a mesma força ou a mesma grandiosidade.

Descendentes 2 (Descendants 2, Estados Unidos – 2017)

Direção: Kenny Ortega
Roteiro: Sara Parriott, Josann McGibbon
Elenco: Dove Cameron, Sofia Carson, Cameron Boyce, Booboo Stewart, Mitchell Hope, Thomas Doherty, China Anne McClain
Gênero: Infantil, Musical
Duração: 111 min

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Publicado por Thiago Nolla

Thiago Nolla faz um pouco de tudo: é ator, escritor, dançarino e faz audiovisual por ter uma paixão indescritível pela arte. É um inveterado fã de contos de fadas e histórias de suspense e tem como maiores inspirações a estética expressionista de Fritz Lang e a narrativa dinâmica de Aaron Sorkin. Um de seus maiores sonhos é interpretar o Gênio da Lâmpada de Aladdin no musical da Broadway.

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