É uma relação curiosa, aquela entre um artista e seus admiradores. Há uma polêmica muito grande quando, por exemplo, George Lucas anunciava algum tipo de alteração digital em suas versões de Star Wars, com os críticos apontando que, agora, a os filmes não pertenciam mais à Lucas, mas sim aos fãs. É um raciocínio interessante, e que o autor Stephen King levou a um outro nível de insanidade com seu livro Misery, logo adaptado para os cinemas na forma de Louca Obsessão, um primoroso suspense de Rob Reiner.
A trama nos apresenta ao escritor Paul Sheldon (James Caan), que ganhou fama pela franquia bem-sucedida de uma personagem chamada Misery. Após terminar o primeiro rascunho do último livro da série, ele sofre um acidente de carro durante uma nevasca, sendo resgatado pela enfermeira Annie Wilkes (Kathy Bates). Com as pernas quebradas e ombro deslocado, Sheldon é acolhido na casa dessa aparente boa samaritana, que logo revela-se uma fã devota do autor e da série da Misery. Ah, claro, ela também é uma psicopata obcecada por Sheldon, e o mantém em cativeiro.
Uma premissa riquíssima e que o próprio King deve ter elaborado a partir de um fantasioso “e se”, e que o roteirista William Goldman transporta com muito cuidado e eficiência. É uma história simples e direta, que se desenrola de forma intensa e surpreendente, à medida em que vamos aprendendo mais sobre a natureza de Annie e seu passado, e o espectador acaba comendo as unhas de pavor ao entender o tipo de situação onde Sheldon está metido. A obsessão de Annie acaba chegando a níveis pavorosos quando ela começa a agredir e drogar o autor, para mantê-lo ainda de cama por meses e meses, além de queimar seu manuscrito do livro final de Misery e obriga-lo a escrever uma nova versão que a agrade – Sheldon havia matado a protagonista da série na versão original, o que enfurece Annie. Isso me faz pensar na quantidade de cartas furiosas que George R.R. Martin já deve ter recebido pela saga Crônicas de Gelo e Fogo… Bem, espero que tenham sido apenas cartas.
Inteligentemente, a trama divide a narrativa ao nos fazer acompanhar o núcleo do policial vivido pelo excelente Richard Farnsworth, que vai coletando pistas plausíveis sobre o desaparecimento do autor e cria uma conexão com Annie e as obras de Sheldon. Claro, sendo esta uma narrativa imprevisível, o desfecho desse núcleo infelizmente não é o dos mais agradáveis.
A direção de Rob Reiner é outro grande ponto alto aqui. Desde os segundos iniciais, quando temos closes da máquino tipográfica de Sheldon, a taça de champanhe vazia e o cigarro com um fósforo aguardando, somos bombardeados com informações relevantes sobre o protagonista, e também importantes pistas para a resolução da história – e Reiner apresenta tudo isso de forma misteriosa e instigante. Quando temos a interação entre Annie e Sheldon, o diretor aposta em diferentes planos que variam de acordo com a intensidade do diálogo, como ao trazer um plongée absoluto para mostrar a enfermeira colocando-o na cama. Vale mencionar também o fascínio de Reiner com planos-detalhe, como quando Sheldon usa um grampo para destrancar uma porta, ou quando esconde uma cartela de remédios dentro da calça – este último, responsável por um dos momentos mais intensos do filme. E, claro, a cena da marreta, que choca justamente pela falta de floreios ou exageros, revelando a tábua de madeira entre os pés de Sheldon em um desses planos-detalhe, e o golpe frio em um plano médio.
Então, temos o elenco, praticamente movido inteiramente por seus dois protagonistas. James Caan acerta ao trazer uma performance física e desesperada, onde o espectador entende seu esforço e dor, e torce por ele quando Sheldon começa a embarcar em um jogo mais complexo com sua captora, fingindo elogiá-la ou admirá-la. Mas é mesmo Kathy Bates quem rouba todos os holofotes, em uma performance vencedora do Oscar de Melhor Atriz (único prêmio da Academia para uma obra inspirada nos romances de King). Annie transita abruptamente de uma moça inocente e simpática para um verdadeiro monstro, elevando o tom de voz e até esbugalhando levemente seu olhar – na medida exata para não tornar-se caricata -, e que ganham mais força com os zooms sutis da câmera de Reiner quando enquadra a personagem gritando. Uma das grandes vilãs da História do Cinema.
Sem dúvida alguma, uma das melhores adaptações de Stephen King para os cinemas. Movido pelas excepcionais performances de sua dupla principal e a direção envolvente, Louca Obsessão é um suspense intenso e imprevisível, e que também nos faz pensar sobre a cultura da fanbase. Nunca esteve tão atual.
Louca Obsessão (Misery, EUA – 1990)
Direção: Rob Reiner
Roteiro: William Goldman, baseado na obra de Stephen King
Elenco: James Caan, Kathy Bates, Richard Farnsworth, Frances Sternhagen, Lauren Bacall
Gênero: Suspense
Duração: 107 min