Não existem dúvidas para a importância que Godfrey Reggio adquiriu com a estreia do experimento monumental visto no soberbo Koyaanisqatsi e logo depois com o ótimo, mas enfraquecido Powaqqatsi. A arte de fazer documentários puros, desafiando a estrutura convencional do formato até então, realmente conferiu uma aura única para esses filmes de Reggio.
Enquanto colaborou com Ron Fricke na primeira parte da trilogia Qatsi, houve sim um ápice de estreia que nunca mais seria reconquistado pelo diretor. Tanto que o segundo longa é consideravelmente menos expressivo e interessante que o de estreia. Separados por quase duas décadas desde a estreia da segunda parte da trilogia, Reggio finalmente lançou Naqoyqatsi em 2002, elaborando o longa mais pessimista e cínico até então, porém repleto de firulas visuais que sacrificam (e muito) sua qualidade final.
Paraísos Artificiais
Esse seria o primeiro Qatsi totalmente roteirizado por Reggio. Enquanto é uma oportunidade de aproveitar o ponto de vista único do diretor, também é uma das amostras mais sem freios de um artista que não teme riscos. Naqoyqatsi certamente é esse longa que ele buscou se renovar, mesmo mantendo o padrão estético de sua proposta universal da arte sem idiomas e completamente compreensível.
Dos três filmes, é bem evidente que este é de fato o mais fraco por conta dos caprichos artísticos de Reggio que se mostra prepotente pela primeira vez. Apesar de começar muito bem, trazendo imagens fortes da ruína cinzenta que virou Detroit depois de uma sucessão de más escolhas políticas de seus governantes, o diretor transforma o longa em um arthouse realmente muito difícil de gostar.
Porém, mesmo que desagrade bastante, é igualmente fácil de compreender, já que esse com certeza se trata do documentário que o diretor mais pesou a mão para trazer à tona um discurso cínico, repetitivo e assustadoramente pessimista. Naqoyqatsi busca evidenciar que a existência humana se tornou efêmera a ponto de somente se sustentar na artificialidade digital e na máquina da guerra que mantém os povos unidos pelo extermínio de outros em favor do capital.
De fato, há alguma razão no que Reggio pretende dizer aqui, mas o modo que tudo é contado é altamente desconexo, pedante e antiquado. O diretor, antes um gênio com olhar apurado para captar imagens certamente fantásticas do nosso mundo e do viver, agora estraga o visual do longa ao apelar para diversas imagens de arquivo desgastadas, além de inserir diversos filtros visuais tenebrosos tirados diretamente do pior gosto estético possível fornecido por videoclipes dos anos 1990.
Não satisfeito com a abordagem estética que leva a proposta do “artificial” ao máximo, Reggio também traz muitos segmentos criados com computação gráfica já datada até mesmo para a época, apresentando uma infinidade de símbolos e códigos binários através de muitas, mas muitas fusões deselegantes e óbvias. Logo, se antes tínhamos um retrato visual extremamente humano e centrado sobre as mazelas da nossa espécie e do nosso planeta, evocando uma melancolia bela e solene, aqui há a profunda histeria evocada repetidamente pela cacofonia visual que o diretor elabora.
Todavia, há segmentos interessantes e até mesmo premonitórios sobre a adoração de pessoas artificiais entre celebridades e personalidades realmente criadas digitalmente como no caso da holograma cantora Hatsune Miku, uma das celebridades fictícias mais populares do Japão. O resto dos elementos, simplesmente são fracos demais para provocar alguma reação do espectador, ou são simplesmente aleatórios, jogados na montagem à própria sorte.
Em uma das sequências mais irritantes, Reggio faz um longo travelling virtual apresentando bonecos de cera de líderes e personalidades enquanto encaixa imagens já vistas no filme ou outras críticas vazias, mas cheias de confiança na própria importância intelectual.
Para tornar a experiência menos angustiante e monótona, Phillip Glass retorna com outra trilha musical bem elaborada que se recusa a abandonar o clássico para acompanhar a cacofonia de Reggio ou até mesmo da repetição visual nada inspiradora de Naqoyqatsi. Glass impressiona ao realizar o segundo melhor trabalho sonoro dessa trilogia e isso certamente precisa ser valorizado, pois, atingida a marca da primeira hora de exibição, com certeza só há o desfrute das belas composições do músico.
A Vida em Guerra
Naqoyqatsi certamente virou refém das vaidades de seu realizador que parece ter perdido o senso do belo tão bem retratado em seus dois longas anteriores. Caindo na onda de sequências desnecessárias para fechar uma trilogia temática, Reggio faz um testemunho maçante sobre a relação da humanidade com a tecnologia de modo bastante superficial, apenas apontando o quão vazios todos são ao embarcar na onda artificial e da máquina da guerra.
Aliás, por ser um tema principal do longa, Reggio elabora muito pouco sobre a guerra, preferindo desperdiçar muitos minutos com imagens repetitivas sobre as Olimpíadas ou de imagens tenebrosas geradas por computação gráfica, mesmo que haja alguma sacada inteligente vez ou outra.
Sendo um admirador declarado do grande trabalho realizado pelo diretor, a experiência de Naqoyqatsi foi uma das mais decepcionantes e nada condizentes com o grande trabalho feito até então. Nessa grande Torre de Babel construída somente com imagens para transmitir um idioma universal, Reggio conseguiu degredá-la com bastante frieza no intuito de se renovar. Pena que não deu muito certo.
Naqoyqatsi (Idem, EUA – 2002)
Direção: Godfrey Reggio
Roteiro: Godfrey Reggio
Gênero: Documentário
Duração: 89 minutos.