O jornalismo e suas complicações morais sempre renderam obras memoráveis no cinema. Rede de Intrigas, de Sydney Pollack, faz um dos estudos mais eficientes acerca do sensacionalismo, o clássico A Montanha dos 7 Abutres, de Billy Wilder, oferece uma representação genial do “circo da imprensa” e a própria série de TV The Newsroom, de Aaron Sorkin, lidavaa muitíssimo bem com o cotidiano de uma emissora jornalística bem idealizada. Agora, do estreante Dan Gilroy, O Abutre certamente entrará nesse pacote, trazendo sua própria parcela de méritos em um dos exemplares mais marcantes desse seleto grupo de cinema.
A trama nos apresenta a Lou Bloom (Jake Gyllenhaal), um sujeito persistente e com ética trabalhista duvidosa, à procura de variados empregos em Los Angeles. A busca o leva até um emprego freelancer de câmera de um telejornal, onde sua especialidade é cobrir acidentes de carro, tiroteios e outros eventos que dêm audiências e lhe garantam um contrato com uma emissora de televisão local.
Não demora para que a premissa do filme remeta não só às impecáveis obras mencionadas acima, mas também a alguns modelos jornalísticos que encontramos em todo o canto do mundo. Datenas e Marcelos Rezendes estão por aí, poluindo a grade televisiva nacional com reportagens invasivas e sensacionalistas, recebendo gritantes números de audiência como recompensa. Nos EUA, certamente encontramos casos similares, e é esse tipo de trabalho que o excelente roteiro de Dan Gilroy ataca, retratando personagens sedentos por ângulos de câmera apropriados em uma e chefes de redação mais preocupadas com as consequências legais (literalmente zombando das morais) ao exibir assassinatos na TV aberta. Quando o protagonista comete o absurdo de alterar elementos e reposicionar cadáveres em uma cena do crime, o espectador percebe que está diante de algo realmente ousado e revelatório – e até mesmo uma metáfora sombria para o próprio fazer de cinema.
Gilroy também é responsável por um dos personagens mais fascinantes da última década, que é vivido com perfeição por Jake Gyllenhaal. Assustadoramente magro, o ator encara Bloom quase como uma máquina, ou algo que não é humano; um sujeito calculista, frio e aparentemente incapaz de se importar com os benefícios de alguém se não o dele, e seus olhos esbugalhados revelam que sua jornada é obsessiva. A cena em que um jantar amigável com a personagem de Rene Russo transforma-se em uma predatória extorsão é impressionante, não só pelas mudanças ascendentes na voz e postura de Gyllenhaal, mas também pela reação de Russo, que também revela-se uma figura surpreendentemente sombria e questionável como seu protagonista. Se Lou é o Abutre, Russo é justamente a mão que o alimenta e o fortalece.
Como diretor, Gilroy mostra que aprendeu com a turma da franquia Bourne (seu irmão, Tony, é o diretor de O Legado Bourne e roteirizou a trilogia estrelada por Matt Damon), sendo hábil ao comandar algumas perseguições de carro intensas em cenários urbanos noturnos, bem fotografadas pelo diretor de fotografia Robert Elswit. Gilroy também revela-se um mestre na construção de tensão (vide a antecipação para o grande clímax, montado com perfeição por John Gilroy) e em momentos puramente cinematográficos, como o sutil plano onde revela que Lou roubou uma bicicleta. Por fim, James Newton Howard entrega aqui um de seus trabalhos mais memoráveis dos últimos anos com uma trilha sonora que captura o tom de uma Los Angeles perigosa e, ao mesmo tempo, cheia de oportunidades – sendo curioso como o solo de guitarra do tema principal oferece um clima quase tropical, de tranquilidade.
O Abutre é um filme importantíssimo, e falo isso não só como imenso admirador da Sétima Arte, mas também como estudante de comunicação. A estreia de Dan Gilroy é tanto um intenso e fascinante estudo de personagem quanto uma crítica, enfatizando (com razão), que abutres como Lou Bloom só irão se multiplicar.
O Abutre (Nightcralwer, EUA – 2014)
Direção: Dan Gilroy
Roteiro: Dan Gilroy
Elenco: Jake Gyllenhaal, Rene Russo, Riz Ahmed, Bill Paxton
Gênero: Suspense
Duração: 118 min