Assim como o personagem protagonista, Eric Draven, O Corvo é uma franquia que simplesmente se recusa a morrer – seja em qualquer mídia. Sendo um sucesso popular desde seu lançamento nos quadrinhos de James O’Barr em 1989 e atingir o ápice com o icônico filme de 1994, é de se impressionar que a história volte a ser contada agora em 2024.
Entretanto, é um fato concreto que o filme original traz uma barra bem alta para qualquer nova tentativa conseguir, no mínimo, se igualar. Brandon Lee ficou eternizado como o personagem – muito mais pela performance do que pela tragédia, e o filme por si só possui inúmeras qualidades que o tornam uma das melhores histórias de vingança já contadas.
Muito conscientes dessa dificuldade, o diretor Rupert Sanders e o roteirista Zach Baylin tentam fazer deste novo O Corvo, um recomeço e não um remake. Diversas mudanças são sentidas desde os primeiros segundos de filme – após uma longa apresentação de produtoras bizarras que investiram nesse desastre aqui – e, em questão de minutos, já é possível perceber que você, espectador, está metido em uma bela enrascada de quase duas horas de duração.
O superpoder da “revolta”
É difícil não comparar o original com esta nova versão em muitos sentidos por causa das escolhas narrativas que Baylin toma para contar a história. Em essência, ainda se trata da mesma desventura de Eric Draven (Bill Skarsgard) que, após testemunhar a morte da namorada Shelly (FKA twigs) e ser assassinado por invasores, retorna dos mortos em busca de vingança. É algo tão simples que fico surpreso em como conseguiram tornar uma história interessante em algo lento, arrastado, chato e genérico – ou seja, nada do que O Corvo deveria ser.
Nessa tentativa fracassada de se afastar do filme original, Baylin e Sanders resolvem apostar na relação de Eric com Shelly. Nisso, as problemáticas de “incidentes incitantes” envolvem a perturbada jovem que está metida com pessoas poderosas e perigosas. Após uma trama desnecessariamente complicada que só prejudica o filme, Shelly acaba aparentemente presa em uma instituição que é impossível saber se é uma cadeia ou um centro de reabilitação – falha bizarra do design de produção e figurino, além do roteiro.
É lá que ela e Eric se conhecem e em questão de algumas horas já se tornam amantes eternos do mais puro e verdadeiro amor. Ajudaria bastante se o casal protagonista tivesse algum resquício de química, mas não é o caso. Eric é retratado da forma mais insossa e sem graça por um Skarsgard nada inspirado que parece mais apostar no impacto visual das tatuagens que ilustram seu corpo inteiro – tudo para reforçar que ele é “perturbadinho” e “esquisitinho”.
Tendo sua oportunidade de brilhar pela primeira vez ao retratar Shelly com algum conteúdo, FKA twigs e roteirista falham miseravelmente em torná-la única ou interessante – o trabalho da atriz é muito ruim, conseguindo ser a proeza de conquistar o rótulo de pior do elenco. Os diálogos trocados entre os amantes são medíocres e os momentos que compartilham juntos não inspiram amores, beirando o clichê de cenas românticas de séries adolescentes de baixo orçamento. Na verdade, é fácil visualizar Eric e Shelly como um casal gen-z padrãozinho jovem místico/alternativo que tira sustento através de vídeos duvidosos no Onlyfans.
Por conta dessa aposta no casal – que era desnecessária já que a história é ruim, o alicerce do filme já está condenado, afinal não dá para confiar na motivação de Eric em vingar sua amada. Aliás, é igualmente esquisito notar que o filme demora ao menos quarenta minutos até Eric começar a tatear o sobrenatural de sua identidade sobrenatural como Corvo.
Mesmo assim, após essa transformação, o filme não consegue engrenar, sofrendo com essa tentativa torta de se diferenciar do original. Há muita exposição repetitiva, mais uma sequência de diálogos insuportáveis na espécie de Umbral que Eric fica após seu assassinato até seu retorno como Corvo.
A vingança não empolga por ser rala, já que os antagonistas são igualmente genéricos. Dessa vez até existe um certo elemento sobrenatural envolvendo Vincent Roeg, vilão da história que não possui mais nenhuma característica além de um pacto demoníaco. É uma pena, já que um ponto narrativo não resolvido envolve a busca dele por uma pianista após Shelly não fazer mais parte de sua trupe. Sua motivação também é problemática para não dizer inexistente, além do fato de Danny Huston ser o ator escolhido e não trazer nada de novo – Huston é sempre a opção para ser o vilão genérico de baixo orçamento, uma pena.
Retorno inglório
Parece que Rupert Sanders simplesmente não consegue dar sorte. Apesar de não ser um cineasta frequente, ele chamou a atenção pela qualidade visual que seus filmes apresentam – A Branca de Neve e o Caçador e Ghost in the Shell. Entretanto, nem mesmo isso é um diferencial para O Corvo, já que o vírus da apatia também parece ter afetado o trabalho do cineasta que incorre a decisões confusas – como uma outra abertura de créditos iniciais mais “autoral”.
Por conta do visual caótico, anárquico e profundamente gótico do original, era esperado que o novo filme tratasse esse ponto como uma de suas prioridades. Ledo engano, pois a nova versão é visualmente insípida, limpa até mesmo no lixão repleto de drogas onde Eric mora. O design de produção erra diversas vezes em encontrar o tom correto da história, além de não oferecer nada de valor para o filme em si. Até mesmo o uso da chuva, que era profundamente simbólica na fita de 1994, é trivial, utilizada somente para efeitos plásticos em cenas que Sanders resolve transformar a obra em um videoclipe emo decadente.
A direção aparenta também ser desinteressada no próprio filme. No começo, há desconexão temporal de eventos em cenas que acabam não fazendo sentido – como a apresentação de Roeg ao confrontar uma amiga aleatória de Shelly, e depois em todo o ritmo vagaroso e burocrático. Sanders também pesa a mão em caprichos bestas ao utilizar voz over para trabalhar flashbacks sonoros na mente de Eric em momentos em que a atuação de Skarsgard já bastaria – como se duvidasse da inteligência do espectador.
Para não dizer que nada se salva, o filme possui uma única sequência de ação decente que também replica um clássico clichê do gênero: uma matança paralela a uma apresentação de ópera. Além de uma boa piada visual envolvendo um palito de dente, Sanders consegue trabalhar a coreografia para encaixar em diversos momentos com as danças dos atores que se apresentam no musical. A dose de violência é bastante pesada e abraça um pouco o estilo insano do original ao mostrar tiroteios de cartuchos infinitos de pistolas automáticas. Mesmo sendo uma boa cena, há um desconforto em notar quantas vezes Eric consegue matar o mesmo figurante brucutu ao longo do filme – sim, há uma falta de dublês de corpo para interpretar os capangas descartáveis.
Por conta dessa cena, aliás, e mais algumas outras que Eric apanha, nota-se um puritanismo hipócrita na obra. Por conta da ultraviolência apresentada, a morte “tranquila” do casal por asfixia deixa a impressão de um trabalho condescendente e militante. Isso enfraquece a motivação do protagonista já que ele, em teoria, teria testemunhado as maiores barbaridades cometidas contra Shelly, o infundindo de um ódio incontrolável a ponto de voltar dos mortos para se vingar. Então, por essa falsa “higiene” moral do longa, até a jornada do personagem acaba prejudicada – e se havia problemas com isso, era só mudar o gênero do protagonista.
Pódio dos perdedores
O destino foi generoso com O Corvo. Dentre produções de orçamento mais expressivo, não fosse pela tragédia de Madame Teia, esse seria facilmente o pior filme do ano até agora. Uma boa cena de sete minutos não vai salvar a experiência maçante de aturar os outros 104. Nada aqui funciona, nenhuma ideia chega a esmerar qualquer brilho ou potencial e as decisões narrativas acabam irritando qualquer espectador que estiver prestando o mínimo de atenção – o tanto de conveniência narrativa ajuda a piorar isso (repare nas vezes que Eric descobre para onde ir através de mensagens de WhatsApp).
É mesmo uma obra de lodo, genérica e sem graça que deve conquistar apenas as pequenas bolhas mais bizarras do Twitter. Dessa vez, era melhor Eric ter permanecido morto e enterrado.
Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema. Jornalista, assessor de imprensa.
Apaixonado por histórias que transformam. Todo mundo tem a sua própria história e acredito que todas valem a pena conhecer.
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