A identidade fragmentada, múltipla, põe em dúvida uma certa armadura que o cotidiano ergue sobre cada indivíduo. No filme de Richard Linklater, com roteiro inspirado no livro de Philip K. Dick (mesmo escritor conhecido pela história de Blade Runner), vemos o homem inserido em uma sociedade com tecnologias avançadas de vigilância e disfarce – ao mesmo tempo em que possui substâncias alucinógenas das mais viciantes e danosas. Enfim, o homem sem equilíbrio, obsessivo, afundado em uma realidade cada vez menos palpável.
O filme dá continuidade à técnica de animação por rotoscopia, já empregada pelo diretor em Waking Life (2001) – por meio da qual a animação se constrói sobre filmagens, em um processo no limite entre o artesanal e o automático. Assim, o filme trabalha com uma constante sensação de incômodo, visto que os olhos do espectador facilmente perdem-se nesse estriamento da ilusão, seja no sombreamento rígido, nos fios de cabelos grossos, seja nos momentos em que a perspectiva dos objetos animados não batem com a dos cenários. Junto a isso, a artificialidade visual adiciona mais uma camada de aparência para essa narrativa essencialmente sobre a dúvida da realidade e da própria existência.
Em uma investigação para descobrir a origem da poderosa substância D, vemos um policial (Keanu Reeves) que é designado para investigar, Robert Arctor, uma outra identidade sua. Sabe-se que o uso da droga pode afetar severamente o funcionamento do cérebro, provocando grandes diferenças no controle dos dois hemisférios. Não é necessário ir muito além para ver que o motivo policial é, nessa ficção científica apresentada de maneiras tão próximas do mundo real (já era em 2006, imagine onze anos depois), na verdade, usado como caminho para a busca do eu.
Sim, no final das contas, O Homem Duplo fecha sua narrativa com um plot twist, mesmo que fácil, melancólico. Fácil porque, mesmo que pense tanto na questão humana, o filme é feito de momentos, cenas que encontram-se no final em uma linha narrativa e que ao mesmo tempo são independentes, desconexas. Essa relação manifesta-se especialmente nas cenas com os drogados James Barris (Robert Downey Jr., expansivo como sempre) e Ernie Luckman (Woody Harrelson). Ainda que recheadas de humor e diálogos ágeis, poucas vezes são engraçados. Esse tipo de investimento é muito característico, justamente, da literatura de ficção científica do final do século XX – tanto em K. Dick como em William Gibson, por exemplo.
Da mesma forma, as personalidades parecem se confundir durante os diálogos. Em uma cena em que o personagem de Reeves realiza um teste psicológico para testar o funcionamento do seu cérebro após o uso da substância D, e suas reações vão desde um posicionamento agressivo, contra o teste e o controle opressor daquele sistema, até a busca por um conselho amoroso – ao qual a psicóloga responde, de maneira inusitadamente calma.
O duplo sintetiza uma tendência moderna do múltiplo, representada pelo traje do homem comum, uma roupa que faz com que quem a veste tenha todas as partes do seu corpo em constante mudança, sem que possam saber quem está sob esta pele (muito bem idealizada em conjunto com a técnica da rotoscopia). Mas o que teria O Homem Duplo de novo a oferecer além da camada visual, adaptada às sci-fi?
Eis que uma cena mostra o protagonista em crise, anunciando o que poderia ser visto como uma posição alienada, mas que na verdade denota alguma ponta de esperança: incapaz de entender a si mesmo, Robert Arctor espera que os scanners espalhados pelo mundo sejam capazes de olhares no seu interior obscuro e consigam analisá-lo. Crente nessa perspectiva da incapacidade, a rotoscopia denota a insuficiência do dispositivo, e é encarada como elemento narrativo.
Mesmo com o ritmo engasgado pelas cenas ligadas indiretamente, excessos e uma empatia que tarda a se manifestar, O Homem Duplo é mais uma das provas da versatilidade de Linklater em abordar a palavra de perspectivas diferentes.
O Homem Duplo (A Scanner Darkly, EUA – 2006)
Direção: Richard Linklater
Roteiro: Richard Linklater, inspirado no livro de Philip K. Dick
Elenco: Keanu Reeves, Rory Cochrane, Robert Downey Jr., Winona Ryder e Woody Harrelson
Gênero: Drama, Ficção Científica
Duração: 100 min