Em um mundo de terror moderno dos anos 2000 dominado por James Wan, o cineasta Scott Derrickson sempre foi uma sombra interessante. Apesar de um estilo similar ao do criador das franquias Jogos Mortais e Invocação do Mal, Derrickson sempre trouxe um olhar curiosamente religioso e estudioso acerca do horror, como bem mostram O Exorcismo de Emily Rose e Livrai-nos do Mal.
Se aventurando pelo cinema mais comercial, Derrickson ousou refilmar o clássico O Dia em que a Terra Parou e então foi abraçado pela nerdice cinematográfica ao dirigir o primeiro Doutor Estranho. Após diferenças criativas com o modelo de universo de Kevin Feige, Derrickson deixou a direção de Doutor Estranho no Multiverso da Loucura e voltou à sua origem no terror, mirando bem mais agora em seu filme mais celebrado, A Entidade.
Ao lado da competente Blumhouse e de seu mais frequente colaborador, o roteirista C. Robert Cargill, Derrickson volta-se para uma conto de Joe Hill, e o resultado está em O Telefone Preto, uma das mais intensas e satisfatórias experiências cinematográficas de 2022 até agora.
Ambientada na década de 1970, a trama mostra uma uma vizinhança familiar assombrada por um maníaco raptador de crianças conhecido como Sequestrador (Ethan Hawke). Quando o jovem Finn (Mason Thames) é levado pelo mascarado, ele fica em cativeiro em um porão desolado, com apenas um telefone preto na parede. À medida em que ele recebe ligações misteriosas, que parecem ser das vítimas mortas do Sequestrador, o Finn precisa achar um jeito de escapar.
Ou seja, trata-se de um clássico filme de cativeiro. Seguindo à risca o subgênero em que o espectador acompanha a vítima durante quase todo o processo, mas O Telefone Preto conta com o brilhante diferencial de seu peculiar elemento sobrenatural, com as vítimas se comunicando através do telefone. Isso rende uma faceta ao mesmo tempo sinistra, já que Derrickson aposta em aparições fantasmagóricas em tais momentos, mas também reconfortantes – vide a tocante cena em que Finn consegue falar com um amigo querido.
Há um bom equilíbrio nessas cenas, que remete muito ao clima dúbio de O Sexto Sentido, onde o protagonista se assusta primeiro, mas acaba sendo receptivo e emotivo à presença sobrenatural; e o filme carrega isso bem com uma mensagem batida, mas convincente, de amadurecimento. Visto que Joe Hill é filho de Stephen King, não é difícil encontrar inúmeras semelhanças entre Hill e seu pai, seja nas metáforas de adolescência, a camaradagem do coming of age e, especialmente entre O Telefone Preto e It: A Coisa, assassinos de crianças com sorrisos malignos e balões de ar.
O filme é bem seguro na construção do suspense, já que Derrickson e seu diretor de fotografia Brett Jutkiewicz aposta nas cenas que ilustram a rotina do Finn, seu pensamento, o raciocínio e também como o jovem pode improvisar pra usar o ambiente a seu favor; às vezes em momentos inteiramente visuais, sem diálogos. São sequências muito bem montadas e, mesmo com um orçamento pequeno, garantem à produção uma ótima recriação de época, especialmente com o uso de fotografia em 8mm para representar os flashbacks e sonhos de uma personagem específica.
Nesse sentido, o jovem Mason Thames é um ator competente e segura diversas dessas cenas sozinho, mas é mesmo a presença assustadora de um transformado Ethan Hawke que rouba a cena em O Telefone Preto. Mesmo não aparecendo de rosto completo por muitas porções da trama, já que Hawke passa grande parte do tempo usando diferentes máscaras, Hawke cria um vilão perturbador e cuja presença constantemente gera uma sensação incômoda, principalmente pela postura, pela voz e pelos olhares.
Porém, a grande surpresa do filme está mesmo na novata Madeleine McGraw. Na pele de Gwen, a irmã mais nova de Finn, a atriz surpreende pela excepcional mistura de drama e humor em sua performance, oferecendo um contrabalanço perfeito para a atuação mais silenciosa de Thames. McGraw protagoniza uma subtrama, por sinal, que é um tanto tola no papel, mas que ganha força graças ao ótimo trabalho da atriz – que tem a entrega de fala do ano, ao questionar uma presença divina durante uma oração. Definitivamente o ponto alto do elenco, e só tenho a lamentar que McGraw nunca contracene com Hawke.
Todo o retrato de McGraw, inclusive, é bem representativo do tipo de mundo que Derrickson parte para criar. Inspirado por suas próprias experiências de infância, o mundo adolescente de O Telefone Preto é bem verossímil e brutal; se nas décadas de 70 e 80 tínhamos um efeito suavizado ao assistir marmanjos de 30 anos interpretando colegiais, o elenco do filme é excepcional ao realmente trazer pré-adolescentes xingando, se batendo e até acertando uns aos outros com pedras. Um cenário mais robusto e violento, e que fornece um bom cenário para o desenrolar da trama.
O único ponto mais frágil da trama também está ligado a esse cenário. Novamente atrelado a arquétipos típicos da obra de Stephen King, O Telefone Preto aposta em uma subtrama bem artificial envolvendo o pai alcoólatra de Finn e Gwen (vivido por Jeremy Davies), que também garante alguns momentos bem mais engessados e de mão pesada. Felizmente, estão mais restritos ao primeiro ato, e o longa compensa o lado emocional ao investir mais na relação de irmão e irmã dos protagonistas.
No geral, O Telefone Preto é mais um grande acerto da Blumhouse e um dos melhores trabalhos que Scott Derrickson já fez na vida. Curiosamente, é um filme essencialmente de Stephen King, algo ainda mais curioso de se constatar visto que seu criador é justamente o filho do autor de terror. No fim, de tudo certo: Sam Raimi fez um ótimo filme do Doutor Estranho e Scott Derrickson nos entregou um ótimo terror. Às vezes a realidade se escreve sozinha.
O Telefone Preto (The Black Phone, EUA – 2022)
Direção: Scott Derrickson
Roteiro: Scott Derrickson e C. Robert Cargill, baseado no conto de Joe Hill
Elenco: Ethan Hawke, Mason Thames, Madeleine McGraw, Jeremy Davies, E. Roger Mitchell, Troy Rudeseal, Miguel Cazarez Mora
Gênero: Terror, Suspense
Duração: 143 min