É curioso como uma forma de Arte muitas vezes se combina com outra para uma obra especial. A série de quadrinhos Scott Pilgrim do canadense Bryan Lee O’Malley é um exemplar perfeito desse cenário, sendo uma história em quadrinhos que abraça fortemente os elementos desse estilo de história, ao mesmo tempo em que sua narrativa vai adotando características claramente cinematográficas, outras que encontraríamos em seriados de televisão e, principalmente, a estética do videogame. É uma história riquíssima que ganha um tratamento magistral pelas mãos de Edgar Wright em Scott Pilgrim Contra o Mundo, obra que também merece o título de especial.
A trama comprime todas as seis edições originais em uma única história, nos apresentando a Scott Pilgrim (Michael Cera), um descolado baixista de banda de garagem que ainda não tem certeza do que fazer com a vida. Tudo muda quando ele conhece a garota dos seus sonhos: a misteriosa Ramona Flowers (Mary Elizabeth Winstead), apaixonando-se instantaneamente. O problema é que Ramona possui sete Ex-Namorados do Mal, e Scott deverá derrotá-los a fim de prosseguir com o namoro.
Pois é, Scott Pilgrim até começa como o uma história normal, mas a chegada dessa improvável “Liga” de antagonistas transforma completamente a narrativa. A partir desse momento, temos o que pode ser considerado o melhor filme de videogames já feito, mesmo que o material base seja uma história em quadrinhos. Scott magicamente adota habilidades, golpes de luta e ganha moedas após derrotar cada inimigo, que vão ficando mais poderosos a cada “fase” atingida. Não é ideal tentar entender o que se passa nesse universo canadense bizarro (tudo pode ser uma metáfora para relacionamentos do ponto de vista do protagonista, quem sabe), mas sim relaxar e aproveitar essa fantasia nerd deliciosa.
Nas mãos de Wright, o filme tem um ritmo inreditável. A riqueza visual de cada plano impressiona pelos detalhes, a fidelidade ao desenho de O’Malley e os elementos de quadrinhos, cinema e videogame que vão abruptamente surgindo; onomatopéias em movimento, nomes na tela, a subida inesperada do tema da Universal e uma impagável homenagem ao formato de sitcom de Seinfeld são apenas algumas das referências que encontramos pelo caminho, todas bem organizadas em um dos mais eletrizantes e pulsantes trabalhos de montagem do século XXI. O fato de Jonathan Amos e Paul Machliss não terem sido indicados ao Oscar por seu trabalho, que acelera a narrativa, troca personagens de local e oferece um dinamismo sem precedentes com o uso de tela dividida, é assustador – mas é um alento ver que finalmente tiveram seu talento reconhecido por Em Ritmo de Fuga, indicado na categoria do Oscar deste ano.
Todo esse caldeirão pop garante ao filme um visual impressionante, com a fotografia de Bill Pope enchendo a tela de diversas variações de cor, temperatura e saturação, que alternam-se de acordo com a fase na qual o protagonista encontra-se. As cenas de ação também são excelentes, com Scott tornando-se um lutador nato magicamente, vide a ótima batalha contra o primeiro Ex-Namorado que traz uma coreografia rápida e agressiva ou a luta em plano sequência contra Lucas Lee (Chris Evans, canastra na medida certa) e sua equipe de dublês. E não poderia deixar de mencionar a luta de Scott e Ramona contra Roxy, que envolve uma complexa movimentação em dupla dos dois, além de a sequência ser favorecida por uma trilha marcante de Nigel Godrich.
E, claro, temos o humor. Responsável pela brilhante trilogia do Cornetto (Todo Mundo quase Morto, Chumbo Grosso e Heróis de Ressaca), o timing cômico da direção de Wright é perfeito, e o texto que co-assina com Michael Bacall é hilariante e capaz de nos pegar de surpresa com ataques de cartunesco – o que dizer da súbita fuga de Scott por uma janela? As piadas muitas vezes funcionam graças ao nonsense e a naturalidade com que seus personagens parecem reagir a ele. O Wallace vivido por Kieran Culkin é simplesmente perfeito, roubando todas as cenas em que aparece e a postura convencida com que Jason Schwartzman e Brandon Routh encarnam seus respectivos antagonistas fanfarrões também provoca bons risos; especialmente pela incapacidade do segundo em não perceber que não é tão inteligente quanto julga ser.
E por baixo de toda essa nerdice contagiante, temos uma eficiente história de amadurecimento, tanto na vida amorosa quanto pessoal. Scott tem uma grande jornada bem simbolizada através dessas batalhas, culminando no ótimo momento no qual o personagem adquire pontos e XP por frases de sabedoria proferidas. É a catarse bem feita, executada com diversão.
Scott Pilgrim Contra o Mundo é uma das melhores adaptações de quadrinhos de todos os tempos, e possivelmente o filme que melhor traduziu para o cinema a estética e narrativa de um videogame, sendo um caldeirão pop engraçado, dinâmico e capaz de provocar uma eficiente reflexão. Um filme como poucos.
Scott Pilgrim contra o Mundo (Scott Pilgrim vs The World, EUA/Reino Unido/Canadá – 2010)
Direção: Edgar Wright
Roteiro: Edgar Wright e Michael Bacall, baseado na obra de Bryan Lee O’Malley
Elenco: Michael Cera, Mary Elizabeth Winstead, Alison Pill, Chris Evans, Brandon Routh, Kieran Culkin, Brie Larson, Jason Schwarzman, Aubrey Plaza, Anna Kendrick, Mark Webber, Ellen Wong, Johnny Simmons
Gênero: Comédia, Ação
Duração: 112 min