…são os surpreendentes minutos finais que revelam ao espectador que todas as pistas já haviam sido colocadas…
Quando O Sexto Sentido foi lançado nos cinemas, em 1999, o seu roteirista e diretor, o indiano M. Night Shyamalan, era um completo desconhecido. Com uma carreira constituída de apenas dois longas metragens mal sucedidos e o roteiro de O Pequeno Stuart Little, ninguém imaginava que ali estava um dos nomes mais promissores do suspense contemporâneo. Ninguém, com a exceção da Disney, que, ao dar ao talentoso diretor a oportunidade de filmar com plena liberdade o texto original que havia escrito, produziu a obra de suspense mais comovente e fascinante dos últimos vinte anos.
Começando com uma espécie de prólogo, a trama do filme se inicia na noite em que o psicólogo Malcolm (Bruce Willis) é atacado brutalmente por um dos seus pacientes. Depois desse evento, há um salto de um ano, e a história se concentra na relação que o protagonista tem com Cole Sear (Haley Joel Osment), um garoto de nove anos de idade que afirma ter contato com pessoas mortas.
Diferentemente de inúmeros suspenses lançados nos últimos anos, O Sexto Sentido compreende perfeitamente um dos elementos fundamentais do gênero: para que as ameaças da trama gerem antecipação é essencial que o público se importe com os personagens e os seus respectivos destinos. Se não há essa ligação emocional entre o espectador e a situação dramática que está sendo narrada, o suspense vira um exercício de estilo sem significado algum. Assim, o medo, um dos sentimentos mais poderosos que o Cinema é capaz de produzir, é desperdiçado, jogado na vala comum da mediocridade.
Felizmente, M. Night Shyamalan, muito ciente disso, constrói motivações verossímeis (levando em conta o elemento sobrenatural da história, isso é um mérito que merece ser destacado) e seres tridimensionais. Aliada às atuações sóbrias de todo o elenco e o carisma tanto dos dois atores principais quanto de Olivia Williams e Toni Collette (a primeira interpreta a esposa de Malcolm, e a segunda, a mãe de Cole), essa preocupação do roteirista e cineasta com a profundidade de seus personagens e da relação que eles mantêm salta aos olhos ao longo de toda a projeção, a ponto de fazer com que consideremos o filme um drama com pitadas de suspense e não o contrário.
Se preocupando também com a relevância para a trama dos momentos mais aterrorizantes e não apenas da dos personagens e das situações dramáticas, Shyamalan, muito inteligentemente, além de trazer conceitos interessantes de espiritismo para a história (o frio é cinematograficamente poderoso), introduz a fantasmagoria de uma maneira com que as suas características (sim, os fantasmas não aparecem apenas para assustar o espectador – embora isso claramente exista, afinal, estamos falando de um filme de suspense -, e sim porque eles têm um motivo para ainda estar aqui neste Mundo) sejam similares a algumas das características dos personagens: não é à toa que uma das figuras mais recorrentes é o espectro interpretado pela jovem Mischa Barton, uma personagem cuja idade e vulnerabilidades são muito próximas das de Cole (e é fascinante pensar que, talvez, ela assuste o personagem somente porque é jovem e não sabe como abordá-lo).
…no início e ao longo da história, nos mostrando que a compreensão de todos os componentes cênicos e cinematográficos só ocorre…
No entanto, não é apenas na construção do roteiro que o diretor naturalizado norte americano se sai bem. Aliás, por incrível que pareça (dada a excelência atingida no texto), são nas escolhas que ele faz como diretor que o seu verdadeiro gênio aparece. Desde os enquadramentos e ângulos usados para criar uma sensação de terror no público, até no emprego de alguns elementos que aproximam o filme do drama e até mesmo da fantasia, passando pela lógica visual trabalhada e desenvolvida quase que em todos os frames da película, cada um dos componentes selecionados cuidadosamente pelo diretor e sua talentosa equipe indicam um cineasta com total controle das armas cinematográficas disponíveis no seu arsenal.
Falando, em primeiro lugar, sobre o trabalho de câmera, um momento, entre vários outros, que funciona como um perfeito exemplo da destreza de seu diretor é a cena que mostra Cole indo ao banheiro no meio da noite. O plano geral do corredor vazio, o plano detalhe do medidor – indicando que a temperatura está caindo -, a garota atravessando a tela (com o surgimento de alguns acordes da trilha) e o corte imediato para o close-up de Cole enquanto ele vira lentamente o rosto (aqui, o mérito também é do montador) é uma aula de como o silêncio (aliás, esse é um recurso muito usado pelo diretor), o timing e a composição de quadros econômicos e milimetricamente precisos são essenciais para a construção do suspense. Um outro instante que também serve como exemplo é cena da escadaria. Percebam como pequenos recursos – a compassividade dos passos de Cole e o ângulo contra-plongée que revela as curvas tortuosas da escada – são suficientes para gerar uma forte náusea no público.
Já no que diz respeito aos elementos empregados com o objetivo de fornecer ao filme um tom mais dramático e até mesmo fantasioso, são a trilha sonora composta pelo sempre competente James Newton Howard (que, além de ressaltar, com nítidas distinções, os momentos de suspense dos mais dramaticamente densos, dá à narrativa, com determinados acordes, um pungente sentimento de jornada) e as penumbras em que Tak Fujimoto, o diretor de fotografia, mergulha os personagens, as responsáveis por embalarem o filme de uma maneira, por vezes, irresistivelmente mágica. Por fim, comentando sobre a lógica visual estabelecida, a iluminação escura e o uso de preto, cinza, tons pastéis e algumas cores que remetem às do outono, como o amarelo, vinho e marrom (a maior parte do filme se desenrola nessa estação do ano, o que também auxilia na criação dessa atmosfera mágica) pintam com lugubridade e melancolia a tristeza do mundo habitado pelos personagens. Além disso, não há como não falar do brilhante trabalho de design de produção, o qual, através de algumas vestimentas do figurino e objetos de cena, emprega o vermelho como um poderoso símbolo, afinal, é uma cor que simboliza tanto a morte, tão presente na narrativa, quanto o imenso amor que todos os principais personagens compartilham por seus entes queridos.
Porém, aqueles que assistiram a O Sexto Sentido sabem que, por mais que os méritos citados neste texto mereçam ser destacados, é mesmo o final do filme o grande responsável por tê-lo transformado numa obra venerada até os dias de hoje. Na época em que foi lançado, o cenário de suspense não estava muito bem servido (assim como nos dias de hoje). A abordagem mais clássica e o tom intimista adotado por Shyamalan não eram coisas muito vista pelos espectadores do final da década de 1990. Mas essas características acabaram ganhando muito mais força em razão da surpreendente revelação final. Hoje em dia, quando se fala de O Sexto Sentido, fala-se sempre dos seus minutos derradeiros.
Apresentando uma revelação comovente e corajosa, que impôs ao seu trabalho como diretor e roteirista uma atenção extrema aos detalhes e o emprego de uma lógica narrativa que se sustentasse após várias revisões, Shymalan provou com o seu filme que é somente no final que se tem o sentido pleno de uma obra cinematográfica. Afinal de contas, são os surpreendentes minutos finais que revelam ao espectador que todas as pistas já haviam sido colocadas no início e ao longo da projeção, nos mostrando que a compreensão de todos os componentes cênicos e cinematográficos só ocorre na conclusão da história. Assim, fica claro que é no final de um filme, e somente nele, que se entende o começo e o meio. Assim como num texto.
O Sexto Sentido (The Sixth Sense, EUA – 1999)
Direção: M. Night Shyamalan
Roteiro: M. Night Shyamalan
Elenco: Bruce Willis, Haley Joel Osment, Toni Collette, Olivia Williams, Mischa Barton, Donnie Wahlberg
Gênero: Suspense
Duração: 107 minutos