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Crítica | Um Amor, Mil Casamentos – Uma Rom-Com Sem Vida

Nos últimos anos, a Netflix vem investindo em peso seu conteúdo original – mais especificamente, em rom-coms cuja principal ideia é capturar a essência noventista do gênero e trazê-la para os dias atuais. Neste ano, a gigante do streaming resolveu nos entregar um longa-metragem intitulado Um Amor, Mil Casamentos, cuja premissa, apesar de bastante conhecida e utilizando-se de elementos já explorados ao máximo em obras anteriores, tinha tudo para dar certo, caso se mantivesse atada àquilo que representa. Entretanto, a tênue linha entre a presunção e a comédia irreverente parece ter sido completamente estraçalhada por um roteiro que busca erroneamente ser mais profundo do que consegue e acaba nos convidando para um raso mergulho num mundo insosso e sem qualquer vida.

Nem mesmo a premissa é algo fácil de achar: o breve prólogo nos mostra a falha tentativa de Jack (Sam Claflin) em dizer para Dina (Olivia Munn), uma repórter de guerra com quem conviveu por várias semanas, que está apaixonado por ela. Mas, como obra do Destino (um Destino sem muita originalidade, convenhamos), ele cruza caminho com um antigo colega de faculdade seus caminhos se separam. Três anos depois, ele está no casamento da irmã, Hayley (Eleanor Tomlinson), e volta a encontrar seu amor perdido por mais uma obra do acaso. E isso não é tudo: aliado a essa reunião ultrarromântica – no sentido escolástico da palavra -, temos também o retorno de uma ex-namorada de Jack que claramente não o superou e um psicótico e viciado caso de traição de Hayley que tem todas as intenções de destruir a celebração.

A partir desse intrincado panorama, o diretor e roteirista Dean Craig se via em uma bifurcação que poderia seguir de dois jeitos: a noiva, uma hora ou outra, teria que enfrentar a fúria do conturbado Marc (Jack Farthing) – ou pelo menos pedir para que Jack criasse alguma coisa para impedir que ele destruísse o dia mais feliz de sua vida, eventualmente enfrentando vários obstáculos para correr atrás de Dina; ou Jack escolheria ir atrás dela e ver o circo pegar fogo (mesmo que de forma inconsciente). No caso, Craig opta pelo dois, construindo uma cronologia sem qualquer sentido e que, com a chegada do terceiro ato, morre na praia de modo bastante fragmentado e sem as necessárias transformações que uma obra do gênero pede.

Hayley pede para que o irmão coloque um poderoso sedativo na bebida de Marc, colocando-o para dormir enquanto a festa continua, mas as coisas não saem como o planejado: cuidadosamente colocada na taça destinada ao invasor, a medicação acaba mudando de lugar quando um grupo de crianças muda a identificação dos assentos (sem explicação, é claro) e mexe na configuração inicial. E antes que Jack possa consertar esse pequeno erro, seu amigo Bryan (Joel Fry) vira a taça com o leniente minutos antes de seu discurso para o casal – e, bom, já podemos imaginar o que acontece.

O problema é que esse enredo clássico das dramédias familiares é pressionado com tantos furos que chega a ser difícil acreditar mesmo na mais singela irreverência que o longa faz ao público: afinal, Jack poderia ter misturado o sedativo com a champagne e ter entregue a taça pessoalmente para Marc; Hayley poderia ter dado um jeito de impedir que Marc permanecesse no casamento, talvez contribuindo para a construção de seu arco “vilanesco”; e até Marc poderia ter um pouco mais de protagonismo, fugindo dos estereótipos que lhe foram destinados desde o princípio (e retirados gratuitamente numa tosca reviravolta). Mais nada se compara a uma transgressão da continuidade narrativa que ocorre em um inesperado final, na qual o diretor nos convida a alguns possíveis cenários que poderiam ter se desenrolado – escolhendo um em que tudo dá certo para, talvez, mostrar os dois lados tão diferentes de uma mesma moeda.

Craig tenta o máximo que consegue flertar com produções similares e que conseguiram entregar o que prometeram – fazendo questão de trazer os clássicos aspectos da commedia dell’arte para um grupo de pessoas que não demonstra o mínimo interesse em se relacionar ou em criar laços sólidos o bastante para nos guiarem nessa desleixada trama. E o mais frustrante é que as personas são promissoras com suas personalidades divergentes, como o egocêntrico Sidney (Tim Key), a ácida Amanda (Freida Pinto) e o complexado Chaz (Allan Mustafa). Mas nenhum deles tem densidade suficiente (na verdade, qualquer indício de profundidade que nos faça ansiar pelos twists e pelos plots que virão a seguir).

Um Amor, Mil Casamentos é uma aventura sem pé nem cabeça que, ao ser mascarada por um fofo elenco, se torna ainda mais insípida por almejar a algo que sabe que não pode alcançar. Mas é sempre válido dizer que, caso você seja fã de enredos falhos e formulaicos como este, é capaz de encontrar uma camada de prazer a mais – mesmo crendo que essa seja uma tarefa quase impossível.

Um Amor, Mil Casamentos (Love, Wedding, Repeat – Reino Unido, EUA, 2020)

Direção: Dean Craig
Roteiro: Dean Craig
Elenco: Sam Claflin, Olivia Munn, Freida Pinto, Eleanor Tomlinson, Jack Farthing, Aisling Bea, Joel Fry, Allan Mustafa, Tim Key
Duração: 100 min.

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Publicado por Thiago Nolla

Thiago Nolla faz um pouco de tudo: é ator, escritor, dançarino e faz audiovisual por ter uma paixão indescritível pela arte. É um inveterado fã de contos de fadas e histórias de suspense e tem como maiores inspirações a estética expressionista de Fritz Lang e a narrativa dinâmica de Aaron Sorkin. Um de seus maiores sonhos é interpretar o Gênio da Lâmpada de Aladdin no musical da Broadway.

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