Crítica com Spoilers | O Poderoso Chefão: Parte II - A Queda de Michael Corleone
Dois anos após O Poderoso Chefão ter mudado não só a história dos filmes de gangsters, como do próprio Cinema em si, Francis Ford Coppola nos trouxe uma segunda obra-prima. O Poderoso Chefão: Parte II – cujo título fora uma das exigências do diretor para fazer o filme – nunca fora algo planejado. Coppola realizou a obra inicial como um filme único, cujo enredo se fecha em si mesmo, trazendo à tela um ciclo que inicia com o pai e termina com o filho. Mas é claro que a Paramount não deixaria de lado a óbvia fonte de renda que seria uma continuação de uma das produções mais bem-sucedidas até então. A escolha dos executivos, portanto, foi trazer de volta Francis, que agora contaria com uma muito maior liberdade criativa, algo que causaria nele até certo estranhamento, considerando a problemática produção do primeiro longa-metragem.
O Poderoso Chefão: Parte II é, evidentemente, uma obra muito mais íntima para o diretor. A metáfora do capitalismo na América do primeiro filme continua, mas aqui enxergamos a nítida tentativa de Coppola em retratar a imigração italiana no princípio do século XX. O jovem Vito Corleone, é claro, é o elemento central desta parte da história e as situações pelas quais o futuro Don Corleone passa são momentos emblemáticos pelos quais milhares de outros italianos passaram em Ellis Island. Com uma fotografia envelhecida e planos de cobertura em movimento, o diretor de fotografia Gordon Willis nos transporta totalmente para o passado e tais imagens assumem a notável intimidade desejada através da, mais uma vez, inesquecível trilha de Nino Rota, que, aqui, já demarca um dos temas a ser trabalhado ao longo da projeção.
Antes de entrarmos no passado, contudo, vemos uma única curta cena de Michael, já como Don, tendo suas mãos beijadas, com uma expressão facial de quase total apatia. Estamos diante do mesmo homem que deixamos em O Poderoso Chefão, uma pessoa abalada por todos os eventos que o colocaram em um caminho que ele jamais quis trilhar. Francis, então, sabiamente insere um claro elemento que se mantém durante toda a narrativa. As cenas onde assistimos a ascensão de Vito são sempre precedidas ou sucedidas por instantes de contemplação de seu filho, Michael já no presente, como se esse olhasse momentaneamente para o passado a fim de buscar alguma possível salvação para a situação na qual ele se encontra agora.
Não, o atual Don Corleone não se encontra em um sério perigo de vida – para o espectador ele é tido como uma figura praticamente invencível. O verdadeiro temor de Mike é perder sua família, algo que deixa claro em um marcante diálogo com sua mãe, na qual ela o reconforta ao dizer: “você jamais poderá perder sua família”. É interessante notar que, desde sua transformação nessa figura monstruosa é a primeira vez que o vemos realmente com medo. Por mais que sua sociopatia aparente dominar sua disposição em relação ao mundo na grande maioria das cenas, o trabalho de Al Pacino garante que enxerguemos o cuidado com que este homem tem em relação ao sangue de seu sangue. A progressão do enredo, porém, continua a transformar o personagem – dessa vez de forma mais sutil que no primeiro filme, é claro – levando-o de uma figura implacável até um homem ainda mais traumatizado, que opta pelo escuro e pelo silêncio, abandonando praticamente todo o calor que demonstrava em relação a seus familiares.
O primeiro dos impactos em Mike no filme, evidentemente, vem da traição de seu irmão Fredo e a descoberta desse fato praticamente tira todo o ar de Michael. O interessante, contudo, é a forma como o roteiro de Francis e Mario Puzo não deixam esse fator somente no preto e branco. Fredo não sabia que eles tentariam matar seu irmão e ele claramente se arrepende depois. John Cazale, que contava com um personagem de segundo plano na obra anterior, dá um verdadeiro show. “Eu deveria cuidar de você” ele repete para seu irmão mais novo, ao mesmo tempo que praticamente treme na cadeira reclinável e balança suas mãos sem a menor força no punho. Temos aqui a mesma figura frágil e infantilizada do primeiro filme, deixando conosco nada mais que uma verdadeira pena pelo seu destino final, o maior pecado de Michael Corleone.
O segundo impacto vem da separação com Kay e a revelação de que ela abortou seu filho. Al Pacino é um ator que notadamente gosta de realizar cenas nas quais seu personagem explode em ira e aqui temos a melhor de toda a trilogia. Vale notar que a perda de sua calma nesses momentos reitera sua preocupação com a família. O monstro que Michael se torna é praticamente desfeito aqui, quando em sua expressão conseguimos sentir toda sua raiva transparecendo. Há um humano por traz dessa figura e chega a ser triste constatar que, após essa explosão, ele cai ainda mais, quase que enterrando por completo aquele jovem veterano que conhecemos no princípio de O Poderoso Chefão.
A tensão gerada no espectador, contudo, não se limita à queda de Michael. Coppola sabe trabalhar com precisão o suspense desses duzentos minutos de projeção. Desde as problemáticas iniciais não sabemos quem o protagonista realmente considera o culpado pelo atentado contra sua vida. Seria Hyman Roth (Lee Strasberg, ator sugerido por ninguém menos que Pacino) ou Frank Pentangelli (Michael V. Gazzo)? Ou os dois? A audiência é deixada no escuro por grande parte do longa e, ironicamente, quando o vilão se revela o outro também se torna um, nos levando para as audiências buscando incriminar os Corleone, elemento que é inserido magistralmente na história pelo uso da narrativa paralela, que oscila entre Vito e Mike.
Um ponto interessante desta Parte II é notar a diferença entre os principais antagonistas daqui e do primeiro filme. Enquanto na obra original tínhamos gangsters e policiais corruptos como vilões, aqui temos uma escala ainda maior. Primeiro, o próprio governo, através do Senador Pat Geary (G.D. Spradlin), mas que, surpreendentemente, se revela como um “peixe pequeno”. Entra em cena, então, Hyman Roth, inspirado em Meyer Lanski, um dos principais responsáveis pela criação do que conhecemos como Cosa Nostra, junto de Charlie Luciano (ambos são retratados em Boardwalk Empire). A presença de Roth evidencia a ênfase no dinheiro do filme, algo sustentado pela direção de arte, que preenche cada sequência (do presente) com elementos dourados, e a fotografia, que adota tons amarelados, seguindo uma lógica visual já apresentada no primeiro filme nas sequências de Los Angeles e Las Vegas.
Através de Hyman as grandes corporações entram em jogo e passamos a ver a Família Corleone como uma delas – “somos maiores que a U.S. Steel”, famosa frase dita por Lanski, é repetida por Roth e traz um nítido vínculo com o final do primeiro filme. Um dos objetivos centrais de Michael é legitimar os Corleone e o investimento pesado em ações e hotéis corrobora isso. Assistimos a Família ganhar uma maior transparência, algo evidente pelo próprio escritório do Don, que agora dispensa cortinas e vidros escurecidos em favor de uma visibilidade tanto por dentro quanto por fora. Mas os vínculos não param por aí. O roteiro trabalha, enfim, as consequências dos assassinatos durante o batismo da obra original, trazendo para primeiro plano a morte de Moe Greene como um dos grandes causadores do conflito Hyman x Michael. Impossível não se deixar levar pela inesquecível atuação de Lee Strasberg, que consegue garantir em nós a tensão ao mesmo tempo que oferece uma notável contraposição entre a simplicidade e a ostentação de seu personagem – um homem que sabe exatamente o valor do dinheiro, como podemos ver pelo seu desdém em relação à cena do telefone de ouro (algo notado pelo próprio Michael).
Por fim o último antagonista a ser firmado é Frankie Pentangelli, cujo papel na trama seria originalmente exercido por Peter Clemenza, mas que, devido a conflitos com Richard Castellano, não foi possibilitado. Felizmente o trabalho de Michael V. Gazzo nos faz esquecer de tal fato, ao passo que seu personagem, por mais que tenha sido introduzido nesta Parte II, conta com uma evidente profundidade, que reitera o conflito entre o novo e o antigo, algo que se faz presente do início ao fim da projeção. O fato de um importante membro da Família se aliar com as autoridades é emblemático dentro da narrativa da trilogia, demonstrando o quão diferente é esse “regime” de Michael.
Mas que elemento melhor para evidenciar tais mudanças que a história paralela de Vito? A fotografia cada vez mais fria do presente contrasta diretamente com a sensação de aconchego das calorosas imagens do passado. O Padrinho que conhecemos no filme anterior aqui está em formação e cabe a Robert De Niro desempenhar o praticamente impossível papel de estar à altura da retratação de Marlon Brando. Surpreendentemente, contudo, De Niro dá conta do recado magistralmente, utilizando nuances da atuação de Brando (como movimentar das mãos, tom de voz e olhar) para compor esse futuro Don Corleone. Não é preciso muito tempo para enxergarmos nessa figura o homem que conhecemos em O Poderoso Chefão. E, de forma interessante, o roteiro gera um paralelismo entre ele e Michael ao tornar sua jornada muito similar à de seu filho muitos anos depois. Vito passa a se tornar Don Corleone (ou Don Vito, como ouvimos da maneira correta dessa vez) com a morte de Fanucci (Gastone Moschin)- assim como Mike atravessou o ponto sem retorno ao assassinar Solozzo e McCluskey.
A opção de Coppola em deixar as sequências no passado e no presente mais longas funciona perfeitamente, tornando o ritmo da obra fácil de se acompanhar. Cada cena atua como um capítulo dentro da narrativa, nas palavras do próprio diretor, como um curta-metragem. A fragmentação da projeção é, então, disfarçada pelos já mencionados momentos contemplativos que perfeitamente unem o passado e o presente. Desgostar de um lado da história é praticamente impensável, ao passo que ambos conseguem nos engajar do princípio ao fim. A perspectiva de Michael dá continuidade à sua triste queda enquanto que a de Vito introduz elementos que aprendemos a amar no primeiro filme, além de oferecer bem-posicionados alívios cômicos dentro do pesado clima que se instaura desde os minutos iniciais da projeção.
Seria correto, então, afirmar que O Poderoso Chefão: Parte II possui dois protagonistas ou que Vito é o personagem principal aqui? Não e não. A parte da narrativa centrada em Vito atua a fim de construir não só a Família, como para complementar a história de Michael. Sua transformação ganha uma dimensão ainda maior através desse passado dos Corleone que agora conhecemos, as mudanças ganham um propósito ainda maior, ao mesmo tempo que enxergamos as diferenças e similaridades entre o protagonista e seu pai. Além disso, cada sequência no passado permite uma elipse temporal mais discreta dentro do presente, nos distanciando do princípio da obra e oferecendo uma maior sensação de fluidez narrativa.
A queda de Michael Corleone se faz completa em O Poderoso Chefão: Parte II, o personagem que era “fora da Família” se torna o líder dela e aqui acaba se isolando de todos a seu redor. Com uma cena que simboliza tal acontecimento – a festa surpresa de Vito – Coppola encerra esta segunda parte de sua trilogia. Diante de todos os elementos que dialogam com o primeiro filme, esta continuação, ainda assim, se sustenta como obra separada, única. Trata-se de um relato mais íntimo sob diversos aspectos, que garante uma maior sutileza não só no desenvolvimento do enredo, como na lenta transformação de cada personagem. Francis Ford Coppola não queria continuar a história de O Poderoso Chefão e acaba nos trazendo mais uma verdadeira obra de arte.
O Poderoso Chefão: Parte II (The Godfather: Part II – EUA, 1974)
Direção: Francis Ford Coppola
Roteiro: Francis Ford Coppola, Mario Puzo
Elenco: Al Pacino, Robert De Niro, Robert Duvall, Diane Keaton, John Cazale, Talia Shire, Lee Strasberg, Michael V. Gazzo, G.D. Spradlin, Richard Bright
Gênero: Drama
Duração: 200 min.
Crítica | Os Pássaros - O Último Grande Filme de Hitchcock
Ao longo de sua extensa e prolífica carreira no Cinema, Alfred Hitchcock merecidamente conquistou seu título como Mestre do suspense, gênero com o qual trabalhara desde os primórdios de sua carreira, lá nos anos 1920. Tendo nos entregado verdadeiras obras-primas, indo desde o perversamente divertido Festim Diabólico até o angustiante Intriga Internacional, o realizador deixou sua eterna marca na Sétima Arte, tendo encontrado sua linguagem, identidade e as despejado em diversas de suas obras que já venceram o teste do tempo.
Independente de seu talento, ou importância para o Cinema, contudo, todo diretor pode perder seu contato com sua musa de inspiração, resultando em obras que não condizem, de fato, com o status de lenda pelo qual tanto trabalhara. Hitchcock não foi exceção e chega a ser poético que seu último grande filme tenha sido justamente Os Pássaros, longa que possivelmente rivaliza apenas com Psicose em termos de fama, contando com pelo menos uma cena que todo ser humano, que não more em uma caverna (ou equivalente), conheça. Aliás, se você não conhece sequer um plano qualquer de Os Pássaros, sugiro que repense o que anda fazendo com essa tela através da qual lê esta crítica.
Seguindo adiante, é importante saber o porquê dessa emblemática obra do Mestre do Suspense ser tão conhecida, por mais que esteja longe de ser o seu melhor filme. Certamente não é por seu ineditismo - ainda que não seja todo dia que vemos aves assassinas em uma história - afinal, os pássaros poderiam ser substituídos por outras criaturas que já foram contempladas em filmes. O que, de fato, diferencia essa obra de qualquer outra é a sua execução, sua atmosfera meticulosamente construída por alguém que, por mais de quarenta anos, aprendeu a arquitetar o suspense.
Um clássico imperfeito
Os Pássaros gira em torno de Melanie Daniels (Tippi Hedren), uma mulher independente e decidida, que, após tentar pregar uma peça em Mitch Brenner (Rod Taylor), em uma loja de animais, e ver o tiro saindo pela culatra, acaba indo para a pequena cidade de Bodega Bay a fim de entregar os periquitos que Brenner desejava comprar na dita loja. Ao chegar lá, estranhos acontecimentos envolvendo pássaros locais começam a acontecer, enquanto tais aves, independente da espécie, passam a ficar mais violentas. A situação se torna aterrorizante quando centenas desses animais começam a atacar os moradores locais indiscriminadamente, chegando a levar alguns à morte. Daniels, Brenner e as outras pessoas de Bodega Bay precisam, então, sobreviver, de alguma forma, a esses ensandecidos animais.
Para um bom roteiro de filme de suspense se faz necessário o devido tempo de construção da atmosfera e da antecipação do espectador - tudo que leva ao fato central pode e deve ser tão angustiante quanto ele em si, aumentando, dessa forma, exponencialmente a tensão da audiência. O grande problema e Os Pássaros é que o texto de Evan Hunter, baseado no livro de Daphne Du Maurier, acaba introduzindo ou dilatando alguns acontecimentos inteiramente desnecessários à trama geral. Uma história de noventa minutos acaba se estendendo por duas horas, gerando uma grande e indevida lentidão nos trechos iniciais, que contam com abordagens dispensáveis de certos personagens, que ganham histórias pregressas, apenas para serem subutilizados ou descartados posteriormente.
Dito isso, esse é um filme que demora mais do que deveria para chegar no ponto certo e mesmo a construção do suspense somente começa a acontecer alguns bons minutos após o início da projeção, o que não chega a destruir a obra por completo, mas certamente a impede de atingir o mesmo nível de algumas produções anteriores de Hitchcock. Felizmente, quando o clima de tensão é firmado, nos vemos tão presos a ele, que dificilmente tiramos nosso olhar da tela, permanecendo absolutamente imersos na narrativa que se constrói principalmente através da direção de Hitchcock.
Antes de chegar lá, no entanto, precisamos abordar outra questão que bastante incomoda em Os Pássaros: o desenvolvimento da protagonista, Melanie Daniels. Quando introduzida, a vemos como uma personagem forte, independente, como já foi dito - ela sabe se virar por conta própria (como mostra quando decide alugar um barco) e, em momento algum, conseguimos enxergá-la como alguém que depende de outros para fazer o que seja. Conforme avançamos na história, no entanto, essa abordagem muda, Daniels se torna altamente dependente de Brenner, cuja única função narrativa, além de levar e manter a protagonista naquela cidadezinha, é a de salvar o dia.
Daniels, portanto, acaba sendo reduzida à figura da donzela em perigo, culminando em uma extremamente artificial sequência da personagem não conseguindo sair de um quarto repleto de pássaros, gritando para que o homem salve a sua vida. Sim, estamos falando de um filme da década de 1960, mas é simplesmente indesculpável a súbita transformação da personagem, que muda da água para o vinho sem qualquer motivo aparente. O fato de Brenner unicamente só servir como salvador não ajuda essa construção equivocada. Aliás, chega a ser engraçado que todas as personagens femininas do longa giram em torno de Brenner, que, por sua vez, não ganha um centímetro de profundidade do início ao fim.
O poder da sugestão
Hitchcock, no entanto, depende menos de seus personagens nesse seu filme do que da atmosfera em si e quase que integralmente através de sua direção, aliado da hábil montagem de George Tomasini, claro, ele constrói esse clima constante de tensão. O que o diretor faz aqui é trabalhar todo o seu poder de sugestão, encadeando planos que lentamente nos preparam para o que está por vir. Vez ou outra vemos os pássaros aglomerando, já outras vemos algum personagem observando esses animais com suspeitas de que há algo errado ali. Tais suspeitas, claro, passam para o espectador, que não demora muito a antecipar o que está por vir.
A trama segue e a sensação de perigo somente aumenta, potencializada pelos inicialmente pontuais ataques dessas criaturas. O diretor não precisa de muito para isso, vemos o rosto de alguém, os pássaros pousando em algum lugar ou se aproximando, e a ideia já está formada. Evidente que o bom uso das figuras pretas dos corvos ajuda nessa construção, imediatamente criando a ideia de morte conforme seus números crescem mais e mais em tela em certas sequências, enquanto em outras vemos gaivotas, principalmente nos planos mais próximos.
Assim sendo, Hitchcock cria a perfeita ilusão de que todos esses animais estão de fato ali, ao lado dos personagens, recorrendo a efeitos especiais em trechos específicos, alguns dos quais acabam transmitindo maior artificialidade, especialmente na primeira vez que as criaturas entram na casa de Brenner e podemos ver claramente que elas e os atores estão em planos diferentes. Felizmente vemos isso bastante pontualmente e mesmo quando o diretor aproxima sua câmera o realismo se mantém, mantendo, pela maior parte do filme, nossa imersão intacta.
A constância do tempo nublado, contrastando com as silhuetas dos pássaros sobrevoando essa anteriormente pacífica cidade faz muito para a construção dessa sensação de ameaça constante. Não somente é perturbadora a aglomeração dessas criaturas, como todo o quadro que elas compõem juntas. O diretor, através desses contrastes cria planos verdadeiramente aterradores, perfeitamente acompanhados pelos constantes sons emitidos por esses animais, que, em determinados trechos, chegam a ser a única coisa que escutamos, ampliando nosso desconforto consideravelmente.
Presos pela angústia
Nada melhor para ilustrar o poder da sugestão de Hitchcock, claro, que a emblemática sequência do posto de gasolina, que conta com um dos mais famosos usos do Efeito Kuleshov, enquanto vemos a personagem principal se desesperar com a iminente explosão. Ainda que Tippi Hedren esteja longe de ser uma boa atriz e que suas reações sejam exageradamente dramáticas (ao lado daquelas de Jessica Tandy), a cena funciona pela nossa rápida percepção do que está para acontecer, o que pode soar batido hoje em dia, uma explosão em um posto de gasolina, mas que mostra o quanto o diretor sabia brincar com a nossa expectativa, nos preparando para o que está por vir sem a necessidade de qualquer diálogo expositivo.
Vemos algo similar em outra brilhante sequência do filme, ainda que aqui não estejamos diante do Kuleshov. Vemos a protagonista sentada em um banco do lado de fora de uma escola, enquanto crianças cantam e pássaros pousam, um a um, atrás da personagem, sem seu conhecimento. Hitchcock trabalha, claro, com o campo sonoro e a imagem para construir a tensão, nos faz saber o risco ali presente e a vida de quem, precisamente, está em jogo - ele não trabalha com a quebra de expectativa, a surpresa, muito pelo contrário, ele nos prende em uma situação aparentemente sem solução, estabelecendo uma forte angústia que nos impede de enxergar qualquer final feliz para essa história - algo coroado pelo final em aberto, mantendo, dessa forma, o suspense em seu auge.
A influência da Nouvelle Vague francesa se faz evidente nessas escolhas artísticas do diretor. Não temos o Cinema clássico hollywoodiano no qual os cortes são todos mascarados, com planos seguindo o ponto de vista dos personagens. Aqui a montagem é evidente, não há temor na quebra de certos padrões, ocasionalmente o aparente desconforto visual trabalha junto da já falada sugestão do diretor a fim de nos tirar de nossa zona de conforto. O que facilmente poderia ser um tiro saindo pela culatra se torna uma das maiores marcas dessa obra do diretor.
Uma despedida
No fim, fica bastante claro, portanto, o porquê de Os Pássaros ter se tornado essa tão conhecida obra de Alfred Hitchcock. Não chega a ser uma de suas melhores obras, mas certamente é uma das mais impactantes, principalmente em virtude de todo o desconforto que gera no espectador, seja pela sugestão de ideias através de planos encadeados, ou do uso pontual da violência, do sangue, que sedimenta, de uma vez por todas, o perigo pelo qual os personagens passam.
Problemas no roteiro, envolvendo a dilatação desnecessária da trama e deslizes na construção dos personagens, portanto, não diminuem esse grande suspense do mestre do gênero, que mostrou novamente tudo que aprendeu nesses muitos anos de experiência. Sua prolífica carreira, claro, não acaba aqui, mas Os Pássaros não deixa de ser uma despedida, como o último dos grandes filmes desse lendário diretor.
Os Pássaros (The Birds - EUA, 1963)
Direção: Alfred Hitchcock
Roteiro: Evan Hunter (baseado no livro de Daphne Du Maurier)
Elenco: Tippi Hedren, Rod Taylor, Jessica Tandy, Suzanne Pleshette, Veronica Cartwright, Ethel Griffies, Charles McGraw
Gênero: Suspense
Duração: 119 min.
https://www.youtube.com/watch?v=lCxR7dlavwg
Crítica | O Poderoso Chefão - Uma Verdadeira Aula de Cinema
Baseado na obra homônima de Mario Puzo, O Poderoso Chefão ficou conhecido, ao longo dos anos, não só como a obra-prima de Francis Ford Coppola, mas como um dos melhores filmes já realizados. Estudar os diferentes aspectos da narrativa do padrinho é, por si só, estudar o Cinema como um todo – fotografia, montagem, roteiro, design de produção, trilha sonora, todos inclusos. Antes, porém, de entrarmos no longa-metragem em si, caminhemos, brevemente, pela sua conturbada produção.
Com o estrondoso sucesso do livro de Puzo, a Paramount logo adquiriu os direitos de sua adaptação, tentando repetir a mesma estratégia utilizada em Love Story (mesmo sendo duas histórias com públicos alvos completamente diferentes). Coppola, por ter origens ítalo-americanas foi contratado como diretor e desde cedo teve toda sua liberdade criativa rigidamente controlada pelo estúdio. Qualquer decisão do diretor, desde o elenco até a montagem foi contestada de forma veemente pelos executivos da Paramount. Felizmente, Coppola emergiu vitorioso de todos os impasses (uma verdadeira raridade em Hollywood) nos possibilitando ter a obra que conhecemos hoje.
Puzo assinou como roteirista do filme e Francis atuou em conjunto com o autor. A primeira versão apresentava maior fidelidade ao material original, mas aqui foi realizado o que deveria ser feito em qualquer adaptação: a conversão da linguagem literária para algo que realmente se encaixe com o Cinema, por meio de um texto mais livre, mas que ainda respeita o tom estabelecido pelo material fonte. O resultado é o fim dos inúmeros flashbacks e pensamentos dos personagens, oferecendo não só fatos melhor inseridos dramaticamente, como uma ênfase no trabalho de cada ator.
Iniciamos a projeção em um escuro quase que absoluto. “Eu acredito na América“, ouvimos enquanto o rosto de Bonasera, em close, aparece em tela. Não há qualquer som externo, somente esse monólogo do homem que pede um favor ao Padrinho. Lentamente a câmera se distancia, demonstrando a fragilidade do personagem, seu “tamanho pequeno” dentro daquela sala mal iluminada. As costas de Vito Corleone (Marlon Brando) começam a preencher o quadro e um simples movimento de sua mão já transmite uma ordem, deixando claro onde o poder se encontra ali. O primeiro corte vem pouco depois e, enfim, vemos o rosto de Brando, repleto de uma maquiagem perfeita, que transforma um homem de quarenta e oito anos em um senhor de quase sessenta.
Somente por intermédio de O Poderoso Chefão conseguimos verdadeiramente enxergar o porquê de Marlon ser considerado um dos maiores atores da história, que chega ao ponto de dirigir outros atores em cena. Sua retratação de Vito é rica em detalhes que garantem nossa identificação com o personagem. Ao mesmo tempo que ele, o Padrinho, é um homem temível, que utiliza uma sutil movimentação a fim de compor sua figura inabalável, ele é um homem de família, devoto a sua esposa e filhos e que realiza pequenas e quase imperceptíveis interações com todos a seu redor. É uma pessoa calorosa que atrai qualquer um e que não precisa demonstrar abertamente, em nenhum momento, seu poder.
Esta, porém, não é a história de Vito e sim de Michael Corleone (Al Pacino), o real protagonista da obra, por mais que muitos acreditem o contrário. É ele quem passa pelo maior arco dramático que altera substancialmente sua personalidade. Mike começa na trama como o membro menos conectado da família, um herói de guerra que deixa claro sua vergonha em relação aos negócios de seu pai – sua disposição em relação à sua namorada Kay Adams (Diane Keaton) evidencia o quanto ele quer se afastar de toda aquela vida de crime. Com a progressão da trama, contudo, Michael vai sendo levado, passo a passo, em direção aquilo que mais repudia, sendo forçado a defender o pai, a matar por ele e, enfim, sucedê-lo. E como enxergamos a mudança do personagem? Não só através do óbvio, o roteiro, como das nuances de atuação de Pacino e o excepcional trabalho de direção de arte e maquiagem da produção.
Os tons escuros, acinzentados de Nova York, os ternos e carros pretos, as salas mal iluminadas que tão bem representam o “por baixo dos panos” daquele modo de vida, perfeitamente contrastam com Michael e Kay. O primeiro, com seu cabelo ainda mais jovial, mais desarrumado e com franja, veste marrom ou verde, fugindo do preto e branco da Família. Ao seu lado, sua namorada em tons ainda mais vivos demonstrando a alienação da moça, sua marginalização em relação àquele meio. Al Pacino, em tais momentos, ainda demonstra feições mais humanas, ele sorri com os olhos e deixa claro sua ainda presente inocência.
Seu exílio na Itália nos traz um choque evidente. A fotografia escurecida de Gordon Willis dá lugar a tonalidades quentes – o amarelo da terra e o verde da vegetação ocupa cada quadro e harmonicamente representam a disposição atual de Michael. Lá ele se apaixona e lá ele dá adeus a grande parte de sua humanidade. Os cortes para Nova York, nessa narrativa simultânea, nos trazem um notável desconforto: a guerra entre as cinco famílias estourou e permanecemos em constante tensão. Novamente a fotografia de Willis vem à tona, utilizando enquadramentos clássicos, planos médios que não fogem do padrão hollywoodiano, mas que destaca cada elemento do design de produção. Nada e repito – absolutamente nada – está em quadro por acaso – da rosa no peito de Don Corleone até o quadro acima da lareira temos elementos simbólicos que reiteram a violência velada daquelas conversas e a instabilidade das inúmeras relações retratadas.
E tais relações, em constante fluxo, do início ao fim, são a beleza de O Poderoso Chefão. Não temos afirmações didáticas, diálogos que explicitam o rumo da projeção através de inúmeras explicações. Trata-se de uma economia narrativa que apresenta o que deve apresentar no momento certo e confia na capacidade do espectador em realizar as devidas conexões através de rimas temáticas, com o clássico “uma oferta que ele não pode recusar”. O que assistimos são conversas realistas que trazem nas entrelinhas a disposição de cada personagem em relação ao outro. Com um simples levantar de sobrancelha ou um tique no olho conseguimos identificar a desconfiança de alguém e, nesse quesito, cada um dos atores realiza um trabalho invejável. Brando, com um simples hesitar na respiração nos transmite o sofrimento de um pai roubado de seu filho; Pacino deixa claro toda sua apatia nos minutos finais da projeção através de seu olhar vazio e sem emoção; James Caan, no papel de Santino Corleone, evidencia sua disposição selvagem, incontrolável através de gestos constantes, alguns animalescos.
Esse cuidado com cada representação ainda nos traz a um ponto notável do roteiro. Cada um dos filhos de Vito (incluindo Tom Hagen, vivido magistralmente por Robert Duvall) herda do pai uma característica marcante, como se fossem, cada um, um diferente fragmento da figura imponente que é o pai. É claro que Michael é, de fato, o melhor sucessor, mas ainda assim ele é incompleto e a morte de sua primeira esposa, Apollonia (Simonetta Stefanelli), é uma das principais causas disso. Lembremos que Vito, como já dito anteriormente, é um homem caloroso e demonstra isso através de sua humildade, amor e respeito – suas ações não são frias como as de Michael, que é implacável em relação a seus inimigos.
Apesar dessa falha do novo Padrinho, contudo, ele é o futuro da Família e isso é deixado claro naquela que considero a melhor cena de toda a obra, com planos emblemáticos, um dos quais, utilizei nesta crítica. A sequência em questão é a logo anterior à morte de Vito. Michael conversa com seu pai no jardim da casa e discutem os planos que se desenvolveriam no clímax do filme. Em um ponto específico, o filho olha para a direita e o pai para esquerda, ilustrando, de uma vez por todas, o passado e o futuro dos Corleone. A tristeza no olhar de Brando é colocada em contraposição ao ódio velado de Mike. E por que digo ódio? Palmas novamente a Pacino que evidencia, em cada entonação, a vergonha que ainda sente de si mesmo, o quanto detesta fazer parte daquilo – “em cinco anos a família Corleone será completamente legítima” – essa é sua meta, fugir dos negócios da família, moldá-la, como se uma parte de si mesmo implorasse pela salvação que deixou de lado quando matou Sollozzo (Al Letieri) e o Capitão McCluskey (Sterling Hayden).
Isso, contudo, não consegue distanciar o protagonista de sua transformação em uma espécie de vilão – algo que a própria fotografia torna evidente, ao fazê-lo sair das sombras nos momentos finais, assim como fez com os diversos antagonistas ao longo da projeção – de Virgil Sollozzo a Don Barzini – trazendo à tona uma lógica quase que de um pesadelo. Michael é, portanto, uma nítida antítese de si mesmo, um homem perdido, mas que, ainda assim, se mantém no controle de absolutamente tudo – mesmo sentado Pacino consegue demonstrar o poder de seu personagem. Essa característica marcante do personagem ainda se encaixa idealmente com seu nome e o clímax da obra. Michael/Miguel, o anjo que derrotou satã e o baniu para o Inferno. No filme temos o homem que se livra de todos os inimigos da família e o faz durante nada menos que um batismo. “Você renuncia satã? Eu renuncio” – e um a um os líderes das famílias criminosas são assassinados em um violento espetáculo que reitera toda a contraposição sagrado x profano, família x Família ao longo do filme.
Mas a trajetória do protagonista e dos Corleone em si só é completada com a morte de Carlo (Gianni Russo). Nos minutos iniciais da obra acompanhamos o casamento de Connie (Talia Shire) e nos finais a mesma personagem se tornando viúva. A melancolia da narrativa não poderia ser criada de maneira mais óbvia e ela se estabelece trazendo consigo uma notável coesão da trama como um todo. Temos a nítida sensação de um longo período de tempo se passou desde que ouvimos “eu acredito na América” e, de fato, dez anos se passaram – novamente, sem a necessidade do didatismo.
Cada transição temporal é realizada discretamente, mas colocando diversos fatores para percebermos, mesmo que inconscientemente, tal mudança. Seja através da neve que cai e deixa de cair, ou de fusões e fade-outs, a montagem, a fotografia e o design de produção atuam em conjunto para garantir todo o realismo dessa trajetória. Ao fim da projeção, enxergamos claramente que nenhum dos personagens é o mesmo do início. Toda a sobriedade da fotografia parece ter passado para o âmago de cada um deles, transformando desde o mais amável indivíduo em uma melancólica caricatura.
Preenchendo, dando vida, a toda essa rica narrativa, temos a emblemática trilha sonora de Nino Rota e Carmine Coppola (nas músicas diegéticas). Cada melodia reitera perfeitamente o que vemos em tela, desde o romance de Michael na Itália, com tons intimistas, até as mais notáveis tensões construídas, como a inesquecível sequência da cabeça do cavalo. A progressão da trama, é claro, também é bem representada pela música, conforme a música tema escutada nos segundos iniciais vai ganhando um tom que ressalta a solidão que se instaura com o avançar da projeção. A frieza adquirida do protagonista é reiterada com melodias que se tornariam o leit-motif do segundo filme.
Com todos esses fatores em mente fica fácil enxergar o porquê de O Poderoso Chefão ser considerado um dos melhores filmes já feitos, influenciando centenas de outras produções, com elementos como o tratamento mais familiar da máfia. De Família Soprano até A Vingança dos Sith, as mais diversas produções beberam desta obra-prima de Francis Ford Coppola. Seja no elenco, no design de produção, roteiro, fotografia ou trilha sonora, cada um dos elementos que compõem essa obra audiovisual merece um cuidadoso estudo. A mágica, porém, está aqui: mesmo não entendendo o porquê podemos e somos cativados pelo filme, solidificando, de uma vez por todas, a harmonia de cada aspecto desta inesquecível obra. Como já dito: estude O Poderoso Chefão e você estará estudando o Cinema em si.
O Poderoso Chefão (The Godfather – EUA, 1972)
Direção: Francis Ford Coppola
Roteiro: Mario Puzo, Francis Ford Coppola
Elenco: Marlon Brando, Al Pacino, James Caan, Robert Duvall, Diane Keaton, Richard S. Castellano, Sterling Hayden, John Marley, Richard Conte, Al Lettieri, Abe Vigoda, Talia Shire, Gianni Russo, John Cazale
Gênero: Drama
Duração: 175 min.
Review | Castlevania II: Simon's Quest - Uma Falha Experimentação
Lançado em 1986, o primeiro Castlevania foi um sucesso imediato e até hoje é reconhecido como um dos grandes clássicos do Nintendo Entertainment System (NES). Naturalmente que a Konami, responsável pelo desenvolvimento do game, não deixaria a oportunidade de criar uma franquia em cima de sua obra passar, algo que já havia sido, em termos, iniciada, já que Vampire Killer, do MSX2 chegara às lojas apenas um mês depois do primeiríssimo da série. Esse, porém, é enxergado como uma espécie de spin-off, ou simplesmente uma diferente versão do jogo original – eis que, em 1987, é lançada a primeira sequência propriamente dita, Castlevania II: Simon’s Quest.
Assim como o já citado Vampire Killer, esse segundo game da série principal dispensa a estrutura episódica, típica de arcades, de seus antecessor. Claramente a Konami decidira se apoiar em obras como Metroid, criando um universo bidimensional a ser explorado, compondo o jogo com elementos como o backtracking, puzzles e diversos elementos de rpgs, especificamente os níveis de experiência, ganhos através da coleta de corações, os quais são derrubados pelos inimigos após a morte. Além disso, temos aqui o primeiro Castlevania que nos possibilita equipar e desequipar itens, clara evolução de um dos fatores de Vampire Killer.
O interessante de acompanhar a trajetória da franquia cronologicamente é enxergar como a Konami ainda experimentava com suas fórmulas. Qualquer um que tenha jogado tanto o game original quanto Vampire Killer irá perceber Simon’s Quest como uma grande amálgama dessas duas obras. Infelizmente, nessa junção, os desenvolvedores acabaram, também, incluindo determinados notáveis defeitos presentes nos anteriores, além de trazer alguns aspectos negativos novos, que tornam esse um game extremamente datado, com escolhas de design que chegam a ser surreais de tão problemáticas.
O maior deslize, sem a menor sombra de dúvidas, é a completa ausência de qualquer didática dentro do jogo. A forma como devemos progredir na história não é nada intuitiva e devemos depender de diálogos com npcs a fim de descobrir detalhes sobre os objetivos. O grande problema é que esses mesmos npcs mentem e, para piorar, a tradução do japonês para o inglês foi feita nas coxas, com inúmeras das dicas, se não a maior parte delas, perdidas no processo. Isso tudo faz de Simon’s Quest um game que, obrigatoriamente, requer um “detonado”/ walkthrough para ser “zerado”, ou, ao invés disso, muita sorte por parte do jogador.
Esse grande defeito, que certamente pesa em nossa percepção da obra como um todo, porém, não consegue apagar os pontos positivos do jogo, muitos dos quais foram essenciais para a evolução da franquia, abrindo espaço para que, anos mais tarde, ganhássemos o icônico Symphony of the Night. O primeiro desses elementos é a presença de mais sub-armas, como o cristal. Outro é a introdução de determinadas habilidades adquiridas através de itens, que acabaria se desenvolvendo nos inúmeros sistemas diversos de magia ao longo da franquia.
Além disso, não temos como descartar a excelente trilha sonora – aliás, esse padrão fora introduzido no primeiríssimo game da série e se manteria por todos eles. Ainda que essa continuação conte com um número menor de músicas, temos algumas de destaque, como a icônica Bloody Tears, a qual se tornaria um dos temas da série, ganhando diversas versões com o passar dos anos.
No lado dos gráficos, a obra apresenta uma nítida melhoria em relação ao seu antecessor, com sprites mais detalhados e uma paleta de cores mais diversa. Claro que a similaridade entre as diferentes telas não ajuda, mas isso fica a cargo do game design, que consegue nos confundir tanto quanto os npcs, questão que apenas se agrava em razão da ausência de um mapa (!!!). Dito isso, deixando tais deslizes de lado, é interessante observar como esse Castlevania demonstra ser muito mais sombrio que seu antecessor, ponto evidenciado pelas cores e iluminação – mais um elemento herdado de Vampire Killer.
Digno de nota, também, é a dificuldade consideravelmente reduzida desse em relação ao jogo anterior. Ainda que, para os padrões atuais, Castlevania II seja um game difícil, os chefes se tornaram consideravelmente mais fáceis que aqueles enfrentados no original, mudança essa, que, sim, era mais do que necessária (Morte, estou olhando para você). Tal característica, evidentemente, pode atrair mais jogadores, ainda que esses mesmos certamente serão afastados pela estrutura nada didática da obra.
Castlevania II: Simon’s Quest é, portanto, um game de muitos acertos e muitos erros. Trata-se de uma clara tentativa da Konami em unir o primeiro Castlevania a Vampire Killer. Nesse processo de experimentação, contudo, os desenvolvedores pecaram na forma como devemos alcançar nossos objetivos dentro do jogo, deixando tudo extremamente críptico, requerendo do jogador que esse se apoie em walkthroughs para avançar na história. Apesar disso, é um jogo que merece ser experimentado, nem que seja para entender a evolução da franquia.
Castlevania II: Simon’s Quest
Desenvolvedora: Konami
Lançamento: 28 de agosto de 1987
Gênero: Ação, plataforma
Disponível para: Famicon Disk System, NES, Virtual Console
Crítica | Conta Comigo - O Definitivo Conto Sobre a Amizade
e pensarmos na história do cinema podemos pescar algumas obras que, sem a menor sombra de dúvida, marcaram não somente uma década, como gerações inteiras – Conta Comigo, baseado no romance de Stephen King, é um desses filmes impossíveis de se esquecer. Pensamos nos anos oitenta, ao menos os cinéfilos, e a imagem dos meninos andando pelos trilhos do trem vem quase que de imediato à cabeça. Mas até que ponto podemos considerar o longa-metragem de Rob Reiner como algo que excede as barreiras de seu tempo? Podemos considerar a mensagem do filme como universal e atemporal? A resposta, evidentemente, é sim.
A trama gira em torno de um grupo de quatro jovens, de doze anos, todos com algum tipo de problema ligado à família. Após Vern (Jerry O’Connell) ouvir falar sobre a localização do cadáver de um garoto da idade deles pela região, os meninos decidem ir em uma excursão a fim de ver esse corpo – sem nenhum motivo aparente, apenas pelo espetáculo sensorial. O caminho até lá, contudo, se prova como uma verdadeira jornada de autoconhecimento e mais que uma aventura, isso se prova como uma maneira de lidar com a dura realidade que os cerca e os oprime.
Conta Comigo certamente não é um filme fácil de se assistir. Não por não nos sentirmos engajados pela história e sim pelo peso de sua atmosfera. Apesar de estarmos diante de crianças, seus problemas refletem aqueles de nosso impiedoso mundo e pouco a pouco enxergamos como as ações dos adultos profundamente afetam esses garotos, até moldando-os no que podem ser quando amadurecerem. Desde o tratamento dos pais de Gordie (Wil Wheaton) em relação a ele (tanto antes, quanto depois da morte do irmão), até o preconceito da sociedade acerca de Chris (River Phoenix), vemos meninos profundamente feridos emocionalmente, ocasionando não somente em lágrimas, como em alguns comportamentos não condizentes com os de uma criança (apesar destes, também, certamente estarem presentes).
Aqui o título demonstra toda sua relevância dentro do contexto apresentado. Nesse mundo cruel, esses quatro garotos escapam da realidade através de seus amigos – são eles com quem realmente podem contar, como já é deixado claro na canção de Ben E. King, reproduzida tanto no início quanto no fim da projeção. Essa vivência é ainda essencial e enxergamos isso com clareza nos minutos finais, quando descobrimos que Chris escapou de seu “destino selado” e se tornou um advogado. Você pode ir para onde quiser, Gordie diz a ele e tais palavras repercutem no futuro do jovem, nos deixando com um desfecho que mistura a nostalgia, o otimismo e a tristeza do naturalismo tudo de uma vez.
De forma interessante, o roteiro ainda trabalha seu protagonista, Gordie, como se estivesse em uma verdadeira estrada de superação em relação a morte de seu irmão, única figura que, de fato, o conhecia dentro da família. A relação entre o menino e seu melhor amigo mostra como ele se apoiou em Chris, que genuinamente o ajuda a superar essa difícil fase. A química entre os dois chega a ser palpável e a melancolia do autor, anos depois, que escreve sobre sua infância consegue ser perfeitamente transmitida a nós espectadores.
Naturalmente, a escolha do elenco e, é claro, a direção de atores, teve um papel essencial aqui. Poucas vezes assistimos uma obra audiovisual, com um elenco principal formado unicamente por crianças, que funciona de maneira tão orgânica. Enxergamos neles aspectos de nossas próprias infâncias e o mais desconcertante é reconhecer que muitos dos problemas que encaramos na vida adulta, eles precisam enfrentar aqui, evidentemente que de uma maneira menos madura e com todo aquele olhar jovem sobre o mundo – ainda que a ingenuidade de todos eles já tenha sido abalada inúmeras vezes. De fato, o que vemos aqui é um caminhar de cada um deles para a vida adulta.
A direção de Rob Reiner ainda constrói o suspense do roteiro de maneira sufocante. Um perfeito exemplo disso é quando estão atravessando a ponte nos trilhos do trem. A câmera faz questão de mostrar a altitude que se encontram e como qualquer deslize pode leva-los à morte ou a um acidente gravíssimo, visto que precisam passar por cima dos vãos entre as tábuas de madeira. Ao mesmo tempo não sabemos quando o trem irá chegar e se conseguirão atravessar a tempo. A perspectiva ora alterna entre grandes planos abertos, mostrando a pequenez deles em relação ao mundo, ora nos mostra o olhar do protagonista, que constantemente checa para ver se a fumaça da locomotiva aparece à distância, criando em nós uma angústia que chega a ser palpável.
Estratégia similar é utilizada através da montagem paralela, que nos mostra o grupo de Ace (Kiefer Sutherland) se aproximando do local para onde os garotos estão indo, evidenciando que veremos um conflito em breve, mas não sabemos o que, de fato, irá acontecer. A tensão somente aumenta conforme testemunhamos a loucura e até maldade do personagem, que, claramente, não irá pegar mais leve somente porque irá lidar com jovens de doze anos. Essa construção lentamente nos leva para o clímax, que é resolvido de maneira que, ao mesmo tempo é simples e orgânica, mas que consegue nos deixar sem fôlego até sua resolução.
Quando Conta Comigo encerra seu flashback, iniciado no prólogo do longa, nos pegamos verdadeiramente exaustos, como se houvéssemos acompanhados esses meninos em sua aventura e da mesma maneira que o protagonista, já mais velho, se pega pensativo em relação a seu passado, somos deixados na introspecção, refletindo não só sobre o que o filme representou, ou o marco que representa dentro da História do Cinema, como em nossas próprias vidas, nossas amizades deixadas para trás e até que ponto acreditamos em nossa capacidade de ir para onde quisermos. Não consigo pensar, portanto, como a mensagem desta obra não seria universal e atemporal.
Conta Comigo (Stand by Me – EUA, 1986)
Direção: Rob Reiner
Roteiro: Raynold Gideon, Bruce A. Evans (baseado no romance de Stephen King)
Elenco: Wil Wheaton, River Phoenix, Corey Feldman, Jerry O’Connell, Kiefer Sutherland, Casey Siemaszko, Gary Riley, John Cusack
Gênero: Aventura, Drama
Duração: 89 min.
Crítica | Hellraiser II – Renascido das Trevas
Tendo faturado, nas bilheterias, catorze vezes o seu orçamento, Hellraiser – Renascido do Inferno, naturalmente acabou sendo classificado como um grande sucesso, apesar das muitas críticas negativas que a obra recebera na época. Dito isso, pouco mais de um ano depois sua sequência, Hellraiser II – Renascido das Trevas, chegou aos cinemas, continuando a história de Kirsty (Ashley Laurence) e seu envolvimento acidental com os cenobites.
A trama se passa pouco tempo após os eventos do primeiro filme, de tal forma que o longa já é aberto com uma sequência que resume os eventos da obra anterior. Em seguida vemos o surgimento do icônico Pinhead (Doug Bradley), que, para nossa surpresa, era uma pessoa comum, que desvendara o segredo de um dos cubos. O foco, então, alterna para Kirsty, agora internada em um hospital psiquiátrico, visto que, como em todo bom filme de terror, ninguém acredita em sua história – algo que, nesse caso, temos de aceitar, afinal, quem acreditaria em alguém dizendo que tivera sua família morta por sado-masoquistas do Inferno, invocados por um cubo mágico? O que Kirsty não esperava é que sua história com os cenobites ainda não acabou.
Hellraiser nunca chegou a ser um ótimo filme, na verdade, ele, por pouco, pode ser classificado como “bom”, já que seus muitos problemas são dificilmente ignorados. Ainda assim, trata-se de uma obra sustentada quase que exclusivamente pelo seu visual, esse sim digno de entrar para a história do cinema como uma das representações mais assustadoras do submundo. Esse é o fator que torna o primeiro filme algo emblemático e muito disso se deve às poucas informações fornecidas pelo roteiro de Clive Barker. Em essência, tudo o que sabemos é que o misterioso cubo invoca essas criaturas demoníacas e nada mais. Tal questão, claro, possibilita que a atmosfera de terror seja instaurada de maneira envolvente, deixando muito à cargo da imaginação do espectador.
Hellraiser II, por sua vez, muitas vezes ignora esse aspecto de seu antecessor, nos trazendo detalhes que prejudicam a mitologia criada por Barker – detalhes esses que jamais pedimos para ver. Ao mostrar como o emblemático Pinhead surgiu, além de revelar que todos os outros cenobites, também, já foram humanos, sua figura misteriosa perde grande parte de seu brilho, já que agora, de alguma forma, é possibilitada a relação do espectador com o vilão. Em determinados pontos o enxergamos como vítima, da mesma forma que Kirsty o é – sua curiosidade fora sua ruína e o nosso conhecimento acerca disso força limites à nossa imaginação.
Esse grande deslize, porém, não chega a fazer dessa continuação algo totalmente execrável, ainda que seja inferior ao original, mesmo que muitos dos problemas da obra anterior foram corrigidos. Tony Randel, tendo esse como seu primeiro longa-metragem, demonstra ser um diretor muito superior a Barker, utilizando sua decupagem para brincar com a percepção do espectador, tirando nossa noção de espaço nas muitas sequências passadas no mundo dos cenobites. É criada a sensação de claustrofobia, conforme nos vemos tão perdidos naquele local quanto a própria protagonista. Além disso, é preciso notar como o filme não peca em suas mudanças de foco da mesma maneira que o anterior, sabendo trabalhar com tempos paralelos mais organicamente.
O roteiro de Peter Atkins, contudo, apresenta nítidas falhas, como toda a construção e uso da personagem Tiffany (Imogen Boorman), que é apresentada logo no início do filme, esquecida por um bom tempo e, em seguida, resgatada pelo texto, oferecendo péssimas justificativas para seu envolvimento na trama geral, nenhuma delas verdadeiramente nos convencendo. O fato de Kirsty não ter ficado nem um pouco traumatizada por tudo o que vira anteriormente, também, é algo difícil de se acreditar, questão que apenas piora com a pouca relutância da protagonista em retornar para aquela dimensão distorcida.
Ao menos, tudo isso consegue ser contrabalanceado pelo excelente design de produção, que mais uma vez acerta em cheio em seu retrato do Inferno. Elogios esses, porém, que não se aplicam ao principal antagonista da obra, caracterizado de forma extremamente exagerada (até para os padrões desse universo), sendo capaz de provocar risadas, por exigir demais de nossa suspensão do senso de ridículo. Tal criatura carece da simplicidade sádica dos outros cenobites e chega a nos proporcionar uma execrável sequência de combate entre esses seres, algo que preferimos esquecer de tão artificial.
Hellraiser II – Renascido das Trevas, portanto, é uma daquelas sequências que parcialmente destroem a mitologia do original, fornecendo informações desnecessárias, ao invés de simplesmente mostrar aspectos diferentes desse conceito de Inferno. Salvo o principal antagonista, o visual, felizmente, permanece um espetáculo sombrio à parte, com composições de cenário verdadeiramente assustadoras. Uma pena que todo o filme não reflita essa qualidade.
Hellraiser II – Renascido das Trevas (Hellbound: Hellraiser II — Reino Unido/ EUA, 1988)
Direção: Tony Randel
Roteiro: Peter Atkins (baseado em história de Clive Barker)
Elenco: Doug Bradley, Ashley Laurence, Clare Higgins, Kenneth Cranham, Imogen Boorman, Sean Chapman, William Hope, Barbie Wilde, Simon Bamford, Nicholas Vince, Oliver Smith
Gênero: Terror
Duração: 97 min.
Crítica | Anime Death Note - A Corrupção da Alma pelo Poder
O sucesso imediato do mangá de Death Note certamente não passou despercebido pela Madhouse, que rapidamente adquiriu os direitos para sua adaptação em anime, que estreou em 2006, mesmo ano no qual fora publicado o último capítulo da obra original de Tsugumi Ohba e Takeshi Obata. Como a história já estava acabada quando o anime foi ao ar, sua trama segue basicamente pelo mesmo caminho que o material base, com apenas alguns cortes, principalmente a partir do arco da Yotsuba, fator que, infelizmente, torna essa uma obra inferior à original. Isso contudo, não deve distanciar quem nunca teve contato algum com Death Note ou até mesmo aqueles que leram todos os capítulos – afinal, essa série animada traz seus próprios notáveis méritos.
Para quem viveu em uma caverna pelos últimos catorze anos, Death Note nos conta a história de um estudante japonês, Light Yagami, que acaba encontrando um misterioso caderno cujas instruções, escritas no interior da capa, dizem que o ser humano que tiver seu nome escrito nesse objeto irá morrer. Após testar e confirmar a veracidade do Death Note, o garoto inicia uma cruzada para se livrar dos criminosos do mundo, os matando de parada cardíaca a fim de que percebam a intervenção de alguém na criminalidade do mundo. Após ficar conhecido como Kira, o assassino passa a ser investigado por um habilidoso e excêntrico detetive conhecido apenas como L. Yagami precisa, então, se livrar de seus obstáculos para que possa construir o seu novo mundo.
Um dos maiores percalços de adaptar Death Note é como transpor a enorme quantidade de diálogos e balões de fala para outra mídia de forma que, ainda assim, a história mantenha sua dinâmica. Tetsurô Araki, que coordenou a direção do anime soube muito bem trabalhar com esse fator, mesmo com esse lado da história tendo sido mantido praticamente intacto. Sua decupagem traz constantes movimentos de câmera, uns mais rápidos, outros mais lentos, dependendo do tom almejado, alternando o foco entre os diferentes personagens, objetos em cena e até utilizando closes bastante específicos a fim de manter o espectador atento. Um bom exemplo disso são os enquadramentos nos pés de L ou nos doces que sempre estão perto dele.
Além disso, há de se notar a dinâmica utilização das cores para representar o que está em jogo naquele momento. As vitórias de Kira costumam ser acompanhadas de tonalidades vermelhas, o que invariavelmente contrapõe-se com os tons de azul utilizados para L em determinados pontos da história. É interessante observar como Light ora é retratado como uma figura divina pela iluminação em cima de seu personagem, ora como um demônio justamente pelo escurecimento da imagem. Tais fatores ainda dialogam com o fluido trabalho de montagem, que transforma a simplicidade de alguém escrevendo em um caderno em uma verdadeira sequência de ação. Claro que alguns exageros se fazem presentes, como a maneira alucinada de Mikami escrever em seu Death Note, mas nada que atrapalhe a obra como um todo (apenas traz algumas inevitáveis risadas por parte do espectador). Felizmente os traços respeitam completamente os personagens e, ainda que o grau de detalhes não chegue aos pés das ilustrações de Takeshi Obata, a essência da obra é mantida intacta.
Como dito antes, em determinado momento, o roteiro começa a cortar certos trechos presentes no mangá, alterando alguns fatos (certas mortes são suavizadas em razão da classificação indicativa). Isso não chega a atrapalhar nosso entendimento da história, mas invariavelmente prejudica alguns trechos, como o arco da Yotsuba e, principalmente, toda a história de Mello, que aparece em uma versão bastante resumida. Esse ponto acaba prejudicando toda a fluidez do anime, com notáveis tropeços na segunda metade da história, mas, felizmente, a série recupera todo o seu fôlego perto do fim, mesmo com o excesso de twists, característica herdada do mangá original.
Ouso dizer que um dos maiores méritos do seriado animado é a sua trilha sonora. Estamos falando de uma trama que claramente se divide em diversos atos, cada um com atmosferas bastante distintas (ainda que a identidade de Death Note seja mantida). Sentimos tais mudanças na primeira transmissão de L, no surgimento do segundo Kira, quando é iniciado o arco da Yotsuba, dentre outras várias ocasiões e, mesmo assim, a trilha de Yoshihisa Hirano e Hideki Taniuchi consegue habilmente representar na música o tom certo para cada situação. Estamos falando de uma obra que não estaria completa sem suas melodias, que tão bem definem a emoção de determinadas cenas, além de representarem com precisão os diversos personagens centrais com seus temas específicos. Destaco aqui o tema de L e Low of Solipsism, além do emblemático tema principal, que são capazes de, verdadeiramente, transformar uma sequência. É preciso notar como Hirano e Taniuchi dialogam com todo o imagético religioso ocidental em suas composições, empregando o latim para tal, com trechos tirados do Requiem de Mozart para determinadas músicas.
No fim, apesar de seus notáveis deslizes, o anime de Death Note continua sendo uma excelente adaptação do mangá original, sabendo muito bem trabalhar com os diversos tons explorados pelo material base. Trata-se de uma obra diferente, mas que traz os mesmos dilemas, nos fazendo torcer, ora por Light, ora por L, mesmo que não concordando com suas ações. Com seus méritos próprios, esse é uma série animada que merece ser assistida e reassistida algumas vezes.
Death Note (idem - Japão, 2006/07)
Direção: Tetsurô Araki, Tomohiko Itô, Hiroyuki Tsuchiya, Mitsuhiro Yoneda, Eiko Nishi, Makoto Bessho, Shinji Nagamura, Oyunamu, Naoyasu Hanyu, Hisato Shimoda, Yukio Okazaki, Kei Tsunematsu, Hironobu Aoyagi, Naoto Hashimoto, Takayuki Hirao, Hideki Ito, Mitsuyuki Masuhara, Ryôsuke Nakamura, Tetsuhito Saitô, Tomio Yamauchi
Roteiro: Gracie P. Aylward, Toshiki Inoue, Tomohiko Itô, Yasuko Kobayashi, Shôji Yonemura
Elenco (vozes originais): Mamoru Miyano, Ryô Naitô, Naoya Uchida, Keiji Fujiwara, Kappei Yamaguchi, Aya Hirano, Shidô Nakamura
Duração: 37 episódios de aprox. 20 min.
Crítica | Tubarão - Uma Obra-Prima do Suspense
O pai dos blockbusters, hoje tido como um dos maiores exemplares do gênero do suspense no Cinema, Tubarão, poderia ter sido um filme completamente diferente, não fossem os extensos problemas na produção enfrentados por Steven Spielberg e sua equipe. O ainda jovem diretor, nesse seu segundo longa-metragem a ser lançado nos cinemas, tinha ambiciosas intenções em relação a essa adaptação do romance de Peter Benchley, incluindo filmar diversas sequências no mar e trabalhar com tubarões mecânicos a fim de realmente poder mostrar a criatura em tela.
Felizmente, alguns males vêm para o bem e as dificuldades da produção, especialmente no que diz respeito às criaturas mecânicas que apresentaram mal-funcionamento em repetidas ocasiões, transformaram o que poderia vir a ser um filme B no atemporal suspense que conhecemos hoje. Tirando páginas do livro de Hitchcock, Spielberg construiu mais com menos, apoiando-se no som, no silêncio e no não-visto para criar essa que se tornaria uma das mais importantes produções do Cinema, que revolucionaria a indústria, dando origem à Hollywood que conhecemos hoje.
Simplicidade acima de tudo
O roteiro de Peter Benchley e Carl Gottlieb reflete a intenção do diretor em simplificar a trama o máximo possível. Spielberg queria tirar as subtramas do livro original e focar quase que exclusivamente nos ataques do tubarão e na caçada à criatura e é justamente isso o que vemos na obra. Tubarão não abre espaço para devaneios ou até mesmo construção de personagens que não sejam aqueles estritamente imprescindíveis para a trama geral. Trata-se de uma obra extremamente linear cujo óbvio e principal objetivo é criar a tensão no espectador - o que há de revolucionário aqui não é a trama e sim a maneira como ela é apresentada na trama.
Dito isso, podemos resumir o longa-metragem de maneira bastante simples: quando um tubarão ataca uma mulher em Amity, uma ilha cuja principal fonte de renda é o turismo no verão, o chefe de polícia, Martin Brody (Roy Scheider) logo anseia por fechar as praias. Contrariado pelo prefeito (e outras figuras políticas), que se preocupa com a renda do local nesse período do feriado de 4 de Julho, Brody só consegue o que quer quando mais pessoas são atacadas por essa violenta criatura. Acompanhado pelo oceanógrafo Matt Hooper (Richard Dreyfuss) e o capitão Quint (Robert Shaw), ele deve caçar o tubarão e acabar com o animal antes que ele tire a vida de mais pessoas.
Assim sendo, o texto jamais permite que o espectador distancie seu pensamento da criatura-título, em todo e qualquer momento ela aparece nos diálogos dos personagens, seja direta ou indiretamente. Ponto esse utilizado para gerar aquela angustiante raiva em relação aos personagens que se preocupam mais com a renda da cidadezinha do que com a segurança dos banhistas, aspecto que, claro, somente aumenta ainda mais a sensação de perigo gerado pelo animal. Além disso, Spielberg precisava mostrar algumas mortes e ataques para criar o medo no espectador, além de sedimentar a linguagem usada durante o filme, ponto crucial para o funcionamento do clímax, que depende quase que exclusivamente do silêncio e da “tranquilidade” para ser tão efetivo.
Importante notar, também, como a obra é construída a partir de atos muito bem definidos, o que poderia gerar uma narrativa fragmentada, nas mãos de um menos talentoso diretor, mas que acaba sendo essencial para a renovação dessa experiência. Quando vemos que a fonte está prestes a secar, o filme nos leva para o alto mar, tendo sua atmosfera significativamente transformada, de tal forma que nossa atenção é recobrada antes mesmo de ser perdida - deixando bem claro o quanto Spielberg entende sua audiência.
A construção do suspense
Chegamos, pois, ao que torna Tubarão o que ele é: a magia do Cinema. Como dito antes, Spielberg foi forçado a fazer mais com menos, ele não poderia mostrar muito a criatura em razão dos inúmeros problemas com os tubarões mecânicos e a maneira encontrada para contornar esse percalço foi justamente fazer um filme de suspense, que apenas dá a entender que a criatura está perto, mostrando-a muito pontualmente, sempre em perseguição, similarmente ao que fizera em Encurralado.
Com planos ponto-de-vista do animal, alternando entre focos nos banhistas ignorantes ao perigo, Spielberg deixa bem claro o que está para acontecer. Logo na cena inicial sabemos que o ataque é iminente, tamanha a eficaz simplicidade da direção. Quando os ataques, enfim, ocorrem, também não vemos o ser, apenas a vítima se debatendo ou sendo tragada pelo mar, seguido de um literal banho de sangue, com o vermelho, praticamente não utilizado em qualquer outro contexto (seja no figurino ou nos cenários) do filme, sobressaindo, gerando, assim, o impacto necessário na audiência, que automaticamente assimila o tubarão ao perigo.
Importante notar, também, como o diretor entende que a reação, tanto dos personagens centrais, quanto dos secundários e figurantes é essencial para toda essa construção. Retomamos as influências de Hitchcock e o óbvio paralelismo com Psicose, que em sua mais emblemática sequência mostra somente a vítima e jamais o assassino, transferindo o terror da personagem para o espectador, que logo se coloca no seu lugar. No caso de Tubarão ainda há o agravante de estarmos lidando com a natureza e o próprio teor de mistério do fundo do mar - o desconhecido, o não-visto como fundamental medo do ser humano.
É, portanto, através da reação do chefe de polícia Martin Brody que Spielberg o define como protagonista - ele é um dos únicos a reconhecer o perigo ali presente e nos faz enxergá-lo como uma das únicas pessoas sensatas daquela ilha, algo que chega a ser exprimido em diálogo entre ele e o oceanógrafo Matt Hooper.
Não por acaso, o diretor dedica o que talvez seja o mais emblemático plano da obra para esse personagem, quando ele, sentado na praia, vê o segundo ataque acontecendo, enquanto a profundidade do campo se altera, basicamente colocando em palavras ‘eu estava certo’. Um plano de se arrepiar, que delineia o caminho a ser seguido no restante da obra e que, ao mesmo tempo, define perfeitamente o medo do policial em relação ao mar.
O coup de grâce na audiência é o fato de tudo isso soar extremamente real, fruto da escolha por atores não tão conhecidos à época. Spielberg notadamente fugiu de grandes astros de Hollywood para os papéis nesse seu filme, possibilitando que o espectador enxergue cada um dos personagens como pessoas, de fato e não atores desempenhando seus respectivos papéis, permitindo que, ao ver aquela praia sendo atacada, vejamos qualquer outro lugar mais próximo de nossas individuais realidades, aumentando, portanto, o impacto da obra.
A trilha sonora como personagem
Como dito pelo próprio Spielberg, Tubarão não seria nem metade do que é sem a impactante trilha sonora de John Williams e sua música tema minimalista, que não somente representa a criatura, ela é o tubarão em si. Acompanhando os já mencionados planos ponto-de-vista, a emblemática melodia substitui perfeitamente o ser que não aparece, na maioria das vezes, na imagem e ensina o espectador, logo cedo, que quando ouvimos tais tons, quer dizer que o animal está próximo.
Trata-se de um processo até bastante didático, ao passo que Spielberg passa a minimizar o uso desses planos e deixa nas mãos de Williams a ideia desse terror marinho estar chegando, por vezes colocando na imagem apenas a barbatana do tubarão, que, a esse ponto, já traz consigo toda a necessária tensão à narrativa. Curioso, pois, observar como a simplicidade da imagem se estende para a trilha, que também trabalha com menos para atingir o melhor dos resultados, oscilando entre duas notas musicais para criar um dos temas mais facilmente reconhecíveis da Sétima Arte.
Observamos, então, a subversão de nossas expectativas, quando, no clímax, o diretor faz uso do silêncio para gerar o inesperado. Sem a presença do tema, vemos o tubarão atacar repentinamente, elevando a tensão às alturas, conseguindo o que qualquer jump scare nos terrores contemporâneos não consegue: deixar o espectador simplesmente paralisado, tudo enquanto praticamente ouvimos o tema sendo tocado, embora, na realidade, ele não esteja presente nesses específicos momentos.
Temos, aqui, uma verdadeira sensação de urgência e o completo discernimento de que qualquer um dos três personagens que saíram na caçada podem, de fato, morrer - o que, claro, acaba acontecendo com um deles, mimetizando o destino do capitão Ahab em Moby Dick, claramente uma das fontes de inspiração do romance original e do próprio filme, levando em conta a caracterização e a própria maneira de falar e agir de Quint., que alterna entre o marinheiro rabugento, velho brincalhão e o homem com um doloroso e traumático passado.
Uma obra de arte atemporal
São todos esses elementos que nos engajam tanto à narrativa, permitindo que relevemos os pontuais planos, ao término da obra, que mostram mais do que deveriam, evidenciando as falhas dos tubarões mecânicos construídos. Nesse ponto, claro, Spielberg precisava mostrar a criatura e, em geral, tudo funciona plenamente, à exceção de alguns momentos que podemos ver nitidamente que não se trata de uma criatura viva. Nossa imersão, no entanto, é tamanha que não nos deixamos levar por isso, fruto daquela já falada urgência que veio sendo construída desde a primeira vítima.
Dito isso, Tubarão consegue se manter atual até os dias de hoje e, por mais que repetidas tentativas de replicar esse excepcional suspense tenham sido realizadas, nenhuma, de fato, conseguiu capturar a alma desse angustiante longa-metragem de Steven Spielberg. Trata-se de um fruto de todas as circunstâncias que envolveram sua produção e, claro, da visão de seu diretor, que soube nos proporcionar mais com menos, garantindo, assim, a atemporalidade de sua obra, que pavimentou o caminho da Hollywood atual.
De fato, alguns males vem para o bem e Tubarão é uma das maiores provas disso.
Tubarão (Jaws - EUA, 1975)
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Peter Benchley, Carl Gottlieb (baseado no livro de Peter Benchley)
Elenco: Roy Scheider, Robert Shaw, Richard Dreyfuss, Lorraine Gary, Murray Hamilton, Carl Gottlieb, Jeffrey Kramer, Susan Backlinie
Gênero: Suspense
Duração: 124 min.
Review | Vampire Killer - O Castlevania Esquecido
De todos os games da série Castlevania, Vampire Killer certamente é um dos mais esquecidos. Lançado um mês após o Castlevania original, do “nintendinho” o game pode parecer, à princípio, um port do jogo para NES, até mesmo o nome original é o mesmo (Akumajō Dracula), mas, na realidade, ele é substancialmente diferente de seu primo da Nintendo. A título de curiosidade, Vampire Killer foi lançado antes da série principal no Brasil e Europa, tendo jamais chegado aos EUA. Claramente datado, com inúmeros problemas de gameplay, fica fácil entender o porquê dessa obra ter sido deixada de lado – ainda assim, é crucial, para o entendimento da progressão da série principal, que visitemos esse jogo lançado para o MSX2.
O game segue o mesmo princípio de Castlevania, temos de percorrer o castelo de Drácula, derrotando criaturas, chefes até chegar no conde em si. No processo podemos adquirir sub-armas as quais ajudam em nosso progresso, possibilitando matar os inimigos de maneiras diferenciadas. As similaridades das mecânicas dos dois, contudo, para por aí. Vampire Killer adota um estilo que possibilita a exploração, permitindo que voltemos às telas anteriores, e percorramos outros caminhos. Isso, claro, tem a ver com a própria formulação do jogo, que pede que encontremos diversas chaves para abrir baús (com itens como escudos e botas) e portas, as quais possibilitam nosso progresso nos estágios.
É bastante comum dividirmos a franquia Castlevania em duas fases: antes e depois de Symphony of the Night. O mais famoso game da franquia introduziu a exploração à la Metroid, alterando substancialmente a maneira como jogamos tais obras. É interessante, portanto, observar como, desde os primórdios da série, ela já flertava com tais mecânicas – aliás, o que vemos aqui em Vampire Killer é a base do problemático Castlevania II: Simon’s Quest, que seria lançado alguns anos mais tarde, para o NES. Mesmo que a fórmula ainda esteja longe do ideal, são esforços como esse que abrem caminho para a melhoria, possibilitando a evolução dessa fórmula, que se tornaria muito querida no SNES, através de Super Metroid e, claro, o próprio Symphony of the Night no Playstation.
Agora vamos aos fatores que nos fazem querer esquecer esse jogo completamente e, possivelmente, queimá-lo em uma fogueira. De início ele soa consideravelmente mais fácil que seu “primo”, Simon (o sprite que controlamos) conta com uma vida consideravelmente maior, além de se locomover levemente mais rápido, além disso, os controles parecem os mesmos até aí, e, de fato, eles não precisavam mudar. Tudo isso muda quando atravessamos algumas telas e os inimigos demonstram ser imperdoáveis, se movimentando em uma velocidade infinitamente maior que a nossa, praticamente impossibilitando que os acertemos (pantera maldita, estou olhando para você). Alguns pulos e chicotadas precisas, porém, podem contornar tal fator. Isso é, até morrermos e percebermos que o jogo não traz qualquer forma de continuar nosso progresso, motivo suficiente para irmos até a janela mais próxima e contemplarmos nossa existência, além da perda de preciosos minutos de nossas vidas.
Quando avançamos alguns níveis, um dos elementos que nos incomodava passa a se tornar mais do que um empecilho: não existe mapa em Vampire Killer, portanto precisamos lembrar o que existe em todas as telas para que retornemos a elas posteriormente, isso sem falar no caminho a ser percorrido até lá. Tal característica funciona perfeitamente em games como Dark Souls, que traz um design verdadeiramente invejável. Agora, quando todas as telas são extremamente parecidas e o grau de estresse já está lá no alto em razão dos outros problemas do game, percorrer um castelo sem mapa prova ser uma tarefa verdadeiramente confusa, que nos faz perguntar exatamente o que tinha na cabeça a Konami quando desenvolveu essa obra.
Lembram-se quando eu disse que os controles parecem os mesmos de Castlevania? Vamos agora abordar as pequenas diferenças as quais aumentam a dificuldade dessa versão de MSX2 consideravelmente. De fato, somente há um ponto distante do jogo de NES: a utilização das sub-armas. Enquanto que no “nintendinho” podíamos apenas apertar a seta para cima em conjunto com o botão do chicote, aqui precisamos pular e apertar um dos direcionais. Parece um mero detalhe, mas já perdi a conta de quantas vezes morri acidentalmente tentando jogar uma água benta ou machado em um inimigo. Vale lembrar que você não quer ir para a frente quando está à beira da água! Isso sem falar nos golpes acidentais que tomamos dos inimigos – especialmente chefes – tentando realizar tais feitos.
Existe, porém, um aspecto nesse jogo que consegue superar o Castlevania original. Seus gráficos são notavelmente melhores, um pouco menos (muita ênfase no pouco) pixelados, com sprites dos inimigos e de nosso personagem sendo mais limpos e com detalhes mais discerníveis. Além disso, o game traz uma paleta de cores consideravelmente mais escura, tornando toda a atmosfera do jogo mais ameaçadora, muito similar ao que veríamos anos mais tarde em Circle of the Moon, para o Game Boy Advance. A trilha também traz sutis diferenças – são as mesmas BGMs, mas em tons menos “alegres” – a percussão da versão de NES, contudo, prova ser mais acertada, permitindo maior engajamento do jogador.
Vampire Killer, portanto, serve mais como objeto de estudo do que como fonte de entretenimento em si – a não ser, é claro, que o jogador tenha fortes tendências masoquistas. Introduzindo, desde cedo, o elemento da exploração na franquia Castlevania, o game abriria caminho para, anos mais tarde, testemunharmos o aperfeiçoamento dessa fórmula. Em razão das limitações do console (e algumas péssimas escolhas de design), contudo, tal estilo simplesmente não funcionou no MSX2, fazendo dessa uma experiência desgastante e muito aquém do Castlevania original, lançado apenas um mês antes.
Vampire Killer (idem - Japão, 1986)
Desenvolvedora: Konami
Lançamento: 30 de outubro de 1986
Gênero: Ação, plataforma
Disponível para: MSX2
Crítica | Jessica Jones: 2ª Temporada - 12 Horas de Tortura
Contém spoilers
Com início promissor, através da primeira temporada de Demolidor, a parceria entre Marvel e Netflix aparentava trazer grandes frutos, com séries de qualidade, com atmosfera diferente do que vemos nos seus longas-metragens. Pouco a pouco, no entanto, essa promessa foi por água abaixo, com a fraca primeira temporada de Jessica Jones, Luke Cage e os desastrosos Punho de Ferro e Defensores. Não foi com grandes expectativas, portanto, que chegamos a esse segundo ano da heroína / detetive particular e, para nossa surpresa, a temporada conseguiu ser ainda pior do que nossos maiores temores em relação a ela.
Uma boa premissa permeava o primeiro ano de Jessica Jones - toda a questão envolvendo o estupro faz do seriado bastante relevante - o grande problema está em sua execução e na típica enrolação que vimos nas séries da Marvel-Netflix. Essa segunda temporada vai ainda além, sendo ela toda praticamente uma grande barriga, com poucos pontos que, de fato, se salvam - fazendo dessa não somente uma série dispensável, como verdadeiramente insuportável, não sendo capaz de, sequer, proporcionar momentos de entretenimento (especialmente quando temos no mercado atual de séries produções como The Handmaid’s Tale ou Better Call Saul).
Claro que a tarefa de seguir para um segundo ano de Jessica Jones não é algo fácil, considerando que o carismático e, ao mesmo tempo, assustador, Killgrave de David Tennant não está mais no elenco (ao menos não da maneira tradicional). Seria preciso criar algo potente a fim de produzir aquela sensação de urgência tão necessária para nosso envolvimento e, considerando que o subtexto do estupro já foi trabalhado na primeira temporada, era de se esperar que veríamos algo diferente aqui.
A escolha tomada pela showrunner Melissa Rosenberg foi a de trabalhar o passado da protagonista: como ela conseguiu seus poderes, quem fez experimentos nela, o que aconteceu com seus pais e por aí vai. De certa forma, temos a história de origem que não vimos na temporada inaugural, uma bela inversão e bastante promissora, mas que acabou caindo no mesmo problema dos seus “primos”, Punho de Ferro e Defensores - mas chegaremos lá mais adiante. Assim sendo, é bastante condizente que o antagonismo aqui caia sobre os ombros da mãe de Jessica, que a protagonista descobre estar viva, também com poderes, todos esses anos depois.
Em paralelo, núcleos distintos são trabalhados. Primeiro Malcolm (Eka Darville), assistente de Jones, que mostra, desde o princípio, sua recuperação das drogas e que está disposto, até mais que sua chefe, em trabalhar e ajudar as pessoas. Em segundo, temos Trish Walker (Rachael Taylor), cujo arco gira em torno de suas aspirações profissionais, pessoais e sua insegurança, sempre querendo ser especial de alguma forma. Por fim, temos a subtrama de Jeri Hogarth (Carrie-Anne Moss), que descobre ter uma grave doença e que conta com poucos anos (na melhor das hipóteses) de vida.
Rosenberg, sem dúvidas, foi ousada em trabalhar esses núcleos separadamente da trama principal - ainda que todos sejam unidos por certos elementos, eles, em geral, não afetam uns aos outros, com pontuais exceções. O grande problema dessa escolha é que é criada uma narrativa fragmentada, uma grande novela que parece deixar todos os frutos de tais histórias para uma futura terceira temporada. Ainda que a conclusão do arco de Hogarth seja extremamente gratificante, capaz de nos deixar com aquele sorriso no canto da boca, nada justifica a lentidão que recai sobre a narrativa em razão dessas divisões e trocas de foco constantes.
Mas, sendo justo, o problema central não está na exploração paralela desses personagens, isso gera rupturas, mas o que há de mais grave é o inchaço de cada uma dessas tramas e aqui incluo a principal. O que poderia ser desenvolvido em uma ou duas horas, na íntegra, acaba levando capítulos e mais capítulos, em um eterno vai e vem que faz parecer como se as roteiristas não confiassem no espectador, como se precisassem bater na mesma tecla infinitas vezes para entendermos o que está acontecendo. Essa repetição incessante ainda impede que tais arcos sejam desenvolvidos de maneira apropriada e permanecem, do início ao fim, no mesmo lugar, apenas para que, nos dois episódios finais, algo de relevante aconteça.
Exemplo disso é a relação entre Jessica e sua mãe, que mantém o mesmo pressuposto, variando entre a necessidade de prender a mãe e a vontade de ajudá-la de alguma forma. Não ajuda, claro, o fato de todos os personagens serem extremamente voláteis, mudando de opinião, da água para o vinho, após um breve “papinho”, com diálogos que não dizem nada, além do óbvio. Tudo isso gera uma gigantesca artificialidade, que nos faz enxergar os personagens como construções fictícias e não, de fato, pessoas - a magia cinematográfica se esvai e, assim, somos mais e mais distanciados dessa narrativa que parece ter medo de sair do mesmo lugar.
Sem grandes atrativos no roteiro, caberia à imagem em si de nos proporcionar algo capaz de cativar nosso interesse, seja através da direção, fotografia ou direção de arte. Infelizmente, nenhum desses é capaz de entregar algo minimamente atraente, visto que seguem por um caminho mais básico que o mero ‘arroz com feijão’. Mas vamos por partes.
Estamos falando de uma série que busca criar uma atmosfera noir, como é deixado bem claro pela introdução e a ocasional voz em off da protagonista. Isso, no entanto, jamais aparece na imagem, com sequências que se passam, majoritariamente durante o dia e sem qualquer filtro. Não há aquele aspecto de mistério de filmes de detetive, o que vemos é algo nada inspirado que teme até em utilizar os tons roxos que vimos durante a primeira temporada - apenas em breves momentos, de fato, chegamos a ver isso, mas de forma tão pontual que acaba soando como um ponto fora da reta.
Sequer entrarei em maiores detalhes sobre o design de produção, que cria ambientes extremamente esquecíveis, jamais ousando, ou fazendo com que as casas, ou salas reflitam a personalidade dos personagens ou até mesmo o clima que o roteiro buscava construir. De fato, parece que não existe a mínima preocupação com direção de arte, a tal ponto que precisamos dos diálogos para entendermos, em certos momentos, onde os personagens estão. Nem mesmo o laboratório da IGH se destaca - poderia facilmente aprender algumas lições com Stranger Things, que sabe criar a necessária tensão em volta do laboratório no qual Eleven foi cobaia de experimentos.
Já a direção, mesmo passando por diversas mãos, parece seguir uma mesma cartilha, insistindo nos péssimos enquadramentos over the shoulder nos quais a cabeça da personagem de costas ocupa metade da tela, algo que vemos em todas as séries da Marvel-Netflix. Para piorar, não é criado qualquer suspense através da imagem, visto que, quando algo de diferente ocorre, isso é feito de uma hora para a outra, sem que diferenciados enquadramentos deem a entender que algo está prestes a ocorrer, algo mais condizente com filmes de ação e não com algo que busca recriar o tom noir.
Ao menos, os esforços de todo o elenco, de uma forma geral, são capazes de, ao menos um pouco, nos impedir de desligar a televisão e jamais assistir Jessica Jones novamente. Krysten Ritter é uma que demonstra estar totalmente à vontade no papel, decididamente mergulhando na protagonista, entregando emoções genuínas, conseguindo nos envolver mais que qualquer outro elemento dessa produção. As coadjuvantes, porém, não devem nada a Ritter - Carrie-Anne Moss é o retrato de uma mulher empoderada, que mesmo em situação de fragilidade, não aguenta desaforo de ninguém, com uma atuação tão envolvente que nos faz imaginar o quão mais interessante seria uma série de sua personagem do que a da protagonista em si. Já Rachael Taylor, como Trish, soa tão verdadeira que nos faz odiá-la em certos pontos e amá-la em outros, parecendo, de fato, como uma pessoa de verdade. Uma pena que o texto a impeça de sair do mesmo lugar.
Não podemos esquecer, claro, de Eka Darville, como Malcolm e Janet McTeer, como Alisa, mãe de Jessica. O primeiro segue um caminho similar à Taylor, entregando uma atuação bastante sincera, que nos faz entender as motivações artificiais de seu personagem. Já a segunda encarna perfeitamente o caos de sua personagem, sempre instável, impulsiva e imprevisível - mais importante, porém, é como ela, de fato, age como se fosse mãe de Jessica, nos fazendo acreditar nessa relação entre as duas.
O formidável elenco do seriado, no entanto, não é capaz de fazer milagres e, de fato, somente uma intervenção divina salvaria essa desastrosa temporada de Jessica Jones, que parece ter sido feita nas coxas, almejando única e exclusivamente o lucro e não contar uma boa história. Aliás, o pouco que tinham para contar é dilatado em quase treze horas, tornando essa uma jornada insuportavelmente longa, que parece nos deixar sempre no mesmo lugar.
Ao menos, nos momentos finais, temos alguma substancial mudança, que pode tirar Jessica Jones desse status quo caso o seriado seja renovado para seu terceiro ano. Caso permaneçamos no mesmo lugar no qual fomos deixados durante toda essa temporada, porém, estaremos diante de mais uma tortura de quase doze horas, que deixa bem claro que aquele início promissor da parceria entre Marvel e Netflix foi totalmente por água abaixo.
Jessica Jones – 2ª Temporada (Idem, EUA – 08 de março de 2017)
Showrunner: Melissa Rosenberg
Direção: Anna Foerster, Minkie Spiro, Mairzee Almas, Deborah Chow, Millicent Shelton, Jet Wilkinson, Jennifer Getzinger, Zetna Fuentes, Rosemary Rodriguez, Neasa Hardiman, Jennifer Lynch, Liz Friedlander, Uta Briesewitz
Roteiro: Melissa Rosenberg, Aida Mashaka Croal, Lisa Randolph, Jack Kenny, Jamie King, Raelle Tucker, Hilly Hicks, Jr., Gabe Fonseca, Jenny Klein, Aida Mashaka Croal, Jesse Harris (baseado em quadrinhos de Brian Michael Bendis e Michael Gaydos)
Elenco: Krysten Ritter, Rachael Taylor, Eka Darville, Carrie-Anne Moss, J.R. Ramirez, Terry Chen, Leah Gibson, Janet McTeer, Callum Keith Rennie, Hal Ozsan, John Ventimiglia, Lisa Tharps, Maury Ginsberg, Angel Desai, Daniel Marcus, Rebecca De Mornay, Elden Henson, Wil Traval, David Tennant, Jay Klaitz
Episódios: 13
Duração: 55 min. cada episódio (aprox.)