Crítica | O Justiceiro - 1ª Temporada
Depois de cinco séries preparando o terreno para a grande reunião dos Defensores, a colaboração da Marvel com a Netflix começa a expandir seus horizontes. Com novas temporadas atualmente em desenvolvimento para Demolidor, Jessica Jones, Luke Cage e até mesmo a criticada Punho de Ferro, o serviço de streaming agora aposta na primeira série que não estava no planejamento oficial: O Justiceiro. Tendo sido um dos grandes destaques na segunda temporada de Demolidor, o vigilante Frank Castle ganhou uma encomenda de 13 episódios para uma aventura solo, trazendo de volta Jon Bernthal para dar vida a este personagem tão querido pelos fãs - que não protagoniza sua própria história desde as fracassadas versões para o cinema, com Dolph Lundgren em 1989, Thomas Jane em 2004 e Ray Stevenson em 2008, com Zona de Guerra. Porém, O Justiceiro acaba vítima de praticamente todos os males que afetaram as produções anteriores dessa linha da Marvel no Netflix: redundância.
A trama começa com Frank seguindo sua missão ao final da segunda temporada de Demolidor, com o vigilante usando a identidade do Justiceiro para rastrear e exterminar o restante da gangue de motoqueiros e máfia italiana responsáveis pela morte de sua família. Com a missão completa, Frank abandona a caveira no peito e se esconde por 6 meses, vivendo em Nova York sob um pseudônimo e levando todos a acreditarem em sua morte. Mas quando um ex-analista da NSA, David Lieberman (Ebon Moss-Bachrach) aparece com evidência incriminadora sobre uma missão oculta envolvendo sua antiga divisão do exército, Frank é forçado a voltar à ativa e entender a conspiração por trás da dita missão, e como isso pode ter influenciado o assassinato de sua família.
Sendo bem sincero, e falando como alguém com pouco conhecimento dos quadrinhos, nunca vi tanto potencial na figura do Justiceiro. Sua introdução na série do Demônio de Hell's Kitchen foi perfeita, justamente pelo personagem agir como codajuvante naquele universo, já que sua grande força motriz é vingar a morte de sua família e exterminar os responsáveis. Quando li a notícia de que a Netflix faria uma série inteira sobre Castle - e, ainda pior, uma de 13 episódios de 1 hora cada - temi que a trama não tivesse para onde ir. E realmente, a série cuidada por Steve Lightfoot é arrastada e parece deliberadamente enrolar para avançar os acontecimentos, que tentam construir uma trama muito mais complexa do que realmente é, jogando conspirações governamentais, equipes do exército que agem fora do protocolo e outros clichês desse subgênero; leia-se Zona Verde, de Paul Greengrass, o ótimo A Hora mais Escura, de Kathryn Bigelow e - no que diz respeito à maneira como a violência da guerra afeta a mente dos soldados - Sniper Americano, de Clint Eastwood.
São diversos temas espinhosos, que ainda exploram a questão do armamento civil nos EUA, e que a série acaba usando para construir uma grande narrativa. Funciona em alguns momentos, mas por 13 horas de duração, o ritmo definitivamente será lento, e a equipe de roteiristas infelizmente não é das mais eficazes. Por exemplo, o detestável arco da detetive Marion James (Mary Elizabeth Mastrantonio) é um festival de clichês do gênero policial (pense na série de crime mais genérica possível, é o que temos aqui) e alguns dos piores exemplos de exposição que vi recentemente, com seu caricato parceiro sempre resumindo a trama e a função de novos personagens. Isso pra não mencionar a dinâmica risível de Frank com os colegas de uma construção civil, que interagem como se fossem o grupo de bullies do colégio ao importunar Frank, chutar seu almoço e fazer constantes piadas com seu silêncio. Tudo isso no primeiro episódio, que é facilmente uma das piores coisas que a Marvel Netflix já produziu - não vou nem entrar em detalhes sobre a ridícula cena em que um personagem descobre a identidade do outro após sua carteira cair no chão e abrir de cara em seus documentos com foto...
Nunca um fator forte nas séries da Marvel Netflix (com exceção de Demolidor, claro), as cenas de ação em O Justiceiro cumprem sua função, e o time de diretores felizmente não se acovarda na hora de retratar o comportamento violento de Castle e suas consequências gráficas e sangrentas. A ausência de muitas lutas corporais também justifica a presença de uma coreografia menos elaborada, já que temos muitos tiroteios e confrontos mais brutais, e diversas vezes exibidos em locais escuros e claustrofóbicos - a cena em que vemos a operação de Castle no episódio Kandahar, por exemplo, é um ótimo atestado da brutalidade assustadora daquele universo. Porém, os problemas "vêm na pós". A montagem de algumas cenas de ação são amadoras e perdem completamente o ritmo, como quando acompanhamos Frank enfrentando um antigo contato em sua casa, e os cortes estupidamente oscilam entre o confronto direto, junto aos dois ali, e tomadas externas da casa onde seguimos assistindo a briga pelas janelas. Não há a menor lógica nessa decisão, e cada corte parece uma decisão aleatória. E, claro, temos a equivocada trilha sonora incidental, que sempre traz rock pesado ou músicas pop para quebrar a tensão ds cenas de ação.
Se há um aspecto que definitivamente merece elogios, é Jon Bernthal. O ator já havia se mostrado uma força monstruosa com toques surpreendentemente dóceis em sua participação em Demolidor, e aqui tem mais tempo (muito, como bem apontei) para explorar ainda mais suas capacidades de atuação e tornar Frank Castle uma figura extremamente complexa e multidimensional. O retrato de um homem que ainda lamenta pela perda de sua família e também todo o estresse pós-traumático da guerra e da violência é impressionante, e gosto como o ator exagera no tom de voz na hora dos gritos, e mantém as linhas de diálogos quase sempre baixas e relutantes, como se Frank estivesse sendo forçado a interagir com outras pessoas - como fica claro na embaraçosa cena em que conversa com um colega de trabalho, no arco da construção civil. E ainda que não seja um personagem excepcionalmente bem escrito, vale mencionar a presença de Ben Barnes como um dos membros do pelotão de Frank, e que vai ganhando um arco muito interessante ao longo da temporada. Um dos poucos que valem a menção.
Não tenho dúvidas de que o principal problema é a estrutura. 13 episódios são simplesmente coisa demais para um personagem como Frank Castle, e a experiência de se maratonar O Justiceiro é exatamente isso. Arrastada, inchada e com uma narrativa enrolada que simplesmente não engata, talvez fosse melhor ter deixado o vigilante como coadjuvante, ou até mesmo diminuir o número de episódios. O clássico exemplo de "menos é mais", e a Netflix já deveria ter aprendido essa lição com Os Defensores.
O Justiceiro - 1ª Temporada (Marvel's The Punisher - Season 1, EUA - 2017)
Showrunner: Steve Lightfoot
Direção: Andy Goddard, Tom Shankland, Antonio Campos, Kevin Hooks, Marc Jobst, Jim O’Hanlon, Kari Skogland, Stephen Surjik, Dearbhla Walsh, Jeremy Webb, Jet Wilkinson
Roteiro: Ross Andru, Gerry Conway, Ken Kristensen, Angela LaManna, Steve Lightfoot, Felicia D. Henderson, Dario Scardapane, Christine Boylan, Michael Jones-Morales, Bruce Marshall Romans
Elenco: Jon Bernthal, Amber Rose Revah, Ebon Moss-Bachrach, Ben Barnes, Jaime Ray Newman, Kobi Frumer, Paul Schulze, Michael Nathanson, Ripley Sobo, Daniel Webber, Jason R. Moore, Kelli Barrett, Deborah Ann Woll, Shohreh Aghdashloo, Mary Elizabeth Mastrantonio
Emissora: Netflix
Episódios: 13
Gênero: Ação, Aventura
Duração: 50 min
https://www.youtube.com/watch?v=6m3DvnsSxt8
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Crítica | Lanterna Verde - Um fracasso intergaláctico
Parando para avaliar agora, 2011 foi um ano de transição curioso para todas as principais produtoras de filmes de super-heróis. Caminhando ainda sob a alcunha da Paramount Pictures, a recém-instalada Marvel Studios seguia o sucesso dos primeiros longas do Homem de Ferro com apostas arriscadas em personagens, naqueles tempos obscuros, considerados B e sem apelo comercial: Thor e Capitão América: O Primeiro Vingador, que seriam as peças finais para o grande evento de Os Vingadores, que definiria o futuro do MCU e a consagração dos universos compartilhados no cinema; além de estabelecerem o método da produtora em apostar em personagens desconhecidos, fazendo-os cair na graça do público.
Ainda na casa de Stan Lee, mas passando para os estúdios da Fox, a franquia dos X-Men sofria um reboot poderoso com X-Men: Primeira Classe, e que viria a estabelecer o novo elenco da franquia, liderado por James McAvoy, Michael Fassbender e Jennifer Lawrence, e também a nova linha de adaptações "de época"; que deu um novo rumo ao estúdio após as pedradas de X-Men Origens: Wolverine, que mataram a ideia de apostar em filmes solo de origem para os mutantes. E antes de partir para a DC, ainda que a Sony não tenha lançado nada, foi no final de 2011 que o primeiro trailer de O Espetacular Homem-Aranha veio ao mundo, com a promessa de uma nova pegada ao grande super-herói da Marvel. O resultado, como sabemos, não vingou.
Mas foi realmente com a Warner Bros e a DC que tivemos algo realmente digno da expressão "não vingar", que enfim iria tentar iniciar seu próprio universo compartilhado, mesmo que ainda à sombra da fantástica trilogia do Cavaleiro das Trevas de Christopher Nolan, que já caminhava para seu capítulo derradeiro. Estamos falando, é claro, do agora infame Lanterna Verde, primeira aposta da DC em algum personagem da Liga da Justiça que não fosse o Batman ou Superman, e que foi o primeiro raio de esperança para iniciar uma nova franquia para a editora. Ainda que não considere a catástrofe monumental que a maioria parece ter pintado, é necessário admitir que Lanterna Verde não é um bom filme.
A trama nos apresenta a Hal Jordan (Ryan Reynolds), um piloto de caças americano que balança sua vida rotineira com as responsabilidades de cuidar de seu sobrinho, parecer bem na fita para sua ex-namorada (Blake Lively), por quem ainda é apaixonado, e também superar o medo deixado pela traumática morte de seu pai. Tudo vira de ponta cabeça quando Hal encontra um alienígena moribundo, Abin Sur (Temuera Morrison), e é escolhido para se tornar parte da Tropa dos Lanternas Verdes, uma polícia intergaláctica composta por diferentes espécies alienígenas, e que combatem o mal por todo o universo. Enquanto treina para ser o novo Lanterna do planeta Terra, o grupo se prepara para o ataque de uma misteriosa e maligna entidade conhecida como Parallax.
The Green Mile
No papel, é difícil pensar como um filme com uma proposta dessas poderia dar errado. Parte Star Wars, parte Flash Gordon, as possibilidades para se introduzir um super-herói intergaláctico são das mais ambiciosas possíveis, e ainda que estejamos vivendo um pouco disso atualmente com Guardiões da Galáxia, o Lanterna oferece algo ainda mais interessante, especialmente se a ênfase dos realizadores estivesse na ficção científica. Infelizmente, o que vemos no inchado roteiro de Greg Berlanti, Michael Green (que hoje encontra-se melhor com projetos como Logan e Blade Runner 2049), Marc Guggenheim e Michael Goldenberg, é uma ausência de qualquer tipo de ênfase ou foco narrativo. A trama oscila entre todo o vasto universo espacial dos Lanternas, o treinamento de Hal Jordan e todas as questões confusas envolvendo seu trauma de infância clichê, todas as relações humanas descartáveis e a obrigatória subtrama governamental para deixar esse roteiro vazio, paradoxalmente, ainda mais lotado.
Não temos a tradicional jornada do herói de Joseph Campbell, que é substituída por uma construção preguiçosa e sem uma catarse poderosa o bastante: o "medo" de Hal Jordan nunca é bem explorado, e na subsequente superação do mesmo (quando a trama o requer) é fraco e apressado, e não há a menor transformação na personalidade do personagem se compararmos o início com o fim; nenhuma construção. E mesmo que carismático, Reynolds não convence totalmente como o protagonista, e o tom infelizmente acaba levando tudo para a piada e uma entrega majoritariamente sarcástica - o humor desse filme é do pior nível possível, que nem mesmo Esquadrão Suicida foi capaz de superar em ruindade. Nem mesmo com os demais personagens, tendo um núcleo amoroso péssimo com a apagada Carol Ferris de Blake Lively, e é de se espantar que Reynolds e Lively estejam juntos na vida real, já que não há qualquer sinal de química entre os dois aqui.
Isso sem falar também no apagado arco de Hector Hammond (Peter Sarsgaard), que é potencialmente o melhor personagem do longa, carregando o manto do vilão incompreendido que é praticamente uma versão negativa do herói, ao ter sua amada Carol Ferris indo para seu rival, Hal, e ter um pai (Tim Robbins) que o subestima terrivelmente. Sarsgaard consegue transmitir bem essa persona do "patinho feio", e até conseguimos sentir algum afeto a ele quando o acompanhamos em sua rotina. Quando Hammond é contaminado por uma amostra alienígena durante a autópsia de Abin Sur, o personagem ganha um arco de transformação que tenta ser um misto do terror psicológico de Darren Aronofsky com o body horror de David Cronenberg, com o aumento monstruoso de sua cabeça e os poderes psíquicos, mas que acaba mais perto de um desenho animado de má qualidade. Felizmente, Sarsgaard permanece divertido de assistir, já que claramente abraça a galhofa da situação; algo bem expresso pelo hilário grito agudo de Hammond.
O quarteto de roteiristas até faz um bom trabalho em explicar a gigantesca mitologia do personagem e seu vasto universo, e também o fascinante conceito do anel que transforma pensamento em realidade, mas tudo através do batido setor da exposição, quando Hal é guiado por Tomar-Re (voz de Geoffrey Rush) em Oa, centro de reunião dos milhares de Lanternas Verdes do universo - e também é redundante, visto que o filme abre como uma narração que já introduz alguns desses mesmos conceitos para o espectador. Há até mesmo o velho clichê do treinamento com o instrutor durão, com um ótimo Mark Strong perfeitamente caracterizado como Sinestro, e uma tímida montagem de treinamento explorando o poder do anel, que enfraquece também graças a um James Newton Howard nada inspirado, cujos acordes eletrônicos/rock parecem sugerir que está compondo música para um videogame dos anos 90.
Vômito visual
Defeituoso em seu roteiro, Lanterna Verde apresenta um problema pior, e que geralmente é uma qualidade nesse tipo de fracasso: o visual. É um filme feio de se olhar, e que apresenta um design inexplicavelmente brega e pouco imaginativo plasticamente. A começar pela fotografia de Dion Beebe, que realmente não precisava levar o personagem ao pé da letra e deixar todo o filme sob filtros verdes. Todas as cores do filme acabam recebendo algum toque de verde, até mesmo quando estamos mergulhados em algum ambiente mais escuro, ou mais clean, tornando tudo isso simplesmente horroroso de se olhar, além do filtro de Beebe trazer um péssimo grão que torna a experiência visual ainda mais decadente.
O design alienígena é outro demérito, com as criaturas até garantindo algo interessante no papel ou artes conceituais (o primeiro vislumbre de Parallax é muito interessante), mas que soam toscos e artificiais em suas renderizações; não ajuda que o trabalho de efeitos visuais seja muito abaixo da média, e isso interfere diretamente no uniforme do herói. A abordagem de Ngila Dickson para o traje do protagonista é até inventiva, com a energia verde do anel formando linhas por todo o seu corpo, e a decisão de criá-lo através de CGI também é válida, mas, novamente, acaba saindo tosco. Não só pela cabeça de Ryan Reynolds sempre parecer "flutuando" quando em movimento, mas também pela horrorosa máscara (também em CGI) que parece deformar o rosto do ator ao cobrir a metade superior de seu rosto, tornando simplesmente impossível de levá-lo a sério quando em cena. Sério, é como se um saco de lixo estivesse na cara de Reynolds.
E, por fim, que decepção por parte de Martin Campbell. Saindo do sucesso do excepcional Cassino Royale, filme que tem algumas das melhores cenas de ação que este par de olhos já viram, o diretor perde a mão completamente aqui. Talvez pelo excesso de CGI ruim e poucos efeitos práticos, todas as cenas de ação são genéricas e carecem da imaginação sem limites que o herói conceitualmente possui (um autorama gigante? Mas hein?), nunca sendo capaz de empolgar ou surpreender. Não só isso, todas as batalhas e perseguições trazem soluções fáceis, com destaque para a péssima derrota do monstruoso Parallax, que é tão apressada e simplificada que exibe as marcas de refilmagem, na veia do clímax horroroso do Quarteto Fantástico de Josh Trank. Aliás, vale mencionar que Campbell, por diversos conflitos com o estúdio, perdeu o corte final do longa e diversas cenas acabaram deletadas e inseridas de última hora, além das já mencionadas refilmagens - o clímax seria muito mais grandioso, mas o orçamento estourado requiriu algo mais... sem graça.
No que diz respeito a oportunidades perdidas, poucas são mais frustrantes do que este Lanterna Verde. Mesmo que tenha um vasto e rico universo à disposição, o filme de Martin Campbell erra no tom e na concepção visual, que rende um dos longas mais feios do gênero. Mas, pior, falha em ter um protagonista com o qual possamos nos identificar e pelo qual possamos torcer.
Lanterna Verde (Green Lantern, EUA - 2011)
Direção: Martin Campbell
Roteiro: Greg Berlanti, Michael Green, Marc Guggenheim e Michael Goldenberg
Elenco: Ryan Reynolds, Blake Lively, Peter Sarsgaard, Tim Robbins, Taika Waititi, Jay O. Sanders, Angela Bassett, Mark Strong, Geoffrey Rush, Michael Clarke Duncan, Temuera Morrison
Gênero: Aventura, Ficção Científica
Duração: 114 min
https://www.youtube.com/watch?v=fLNntriNci4
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Crítica | Watchmen: O Filme - A obra-prima de Alan Moore nos cinemas
Durante décadas foi discutida uma adaptação de Watchmen, a graphic novel essencial de Alan Moore. A ideia já enfrentou cancelamentos, discussão sobre séries de TV e quase saiu do papel pelas mãos de Paul Greengrass, que planejava uma adaptação contemporânea do material. Uma longa jornada que acabou culminando na entrada de Zack Snyder no projeto, saído de seu sucesso com a adaptação de 300. Obviamente, com um material tão importante e controverso, seria impossível que Snyder agradasse a todos com Watchmen: O Filme, mas o resultado não deixa de ser impressionante.
O roteiro de David Hayter e Alex Tse comprime todas as 12 edições assinadas por Moore (que, como de costume, removeu seu nome dos créditos e amaldiçoou a produção com seus poderes místicos…) e desenhadas por Dave Gibbons, onde somos apresentados a uma versão distópica dos EUA em 1985. Outrora protegido por vigilantes e super-heróis, uma lei proibiu que qualquer indivíduo do tipo interferisse na sociedade e na segurança pública, forçando todos a se esconderem e manterem identidades normais. Quando o homem conhecido como Comediante (Jeffrey Dean Morgan) é misteriosamente assassinado, o paranóico Rorschach (Jackie Earle Haley) vai atrás de sua antiga equipe para alertá-los sobre um possível matador de heróis.
Há poucos casos de adaptações cinematográficas onde podemos atestar fidelidade com F maiúsculo. O texto traz praticamente todas as linhas de diálogo de Moore, e a direção de Snyder milimetricamente recria diversos quadros de Gibbons com impressionante cuidado estético. É uma narrativa pouco habitual para um longa do gênero, com a história indo e voltando no tempo com flashbacks, flashfowards, voice over e longas sequências que se concentram no passado dos heróis. Segue exatamente o ritmo explorado na graphic novel, só que comprimido para caber às já extensas 2h42 de projeção. É um ritmo incomum, que certamente vai afastar muita gente.
Porém, quem ficar vai se impressionar com o trabalho de Snyder. A produção é massiva e sentimos todo o mundo e a atmosfera dessa distopia através do grandioso design de produção de Alex McDowell, a fotografia de cores vibrantes de Larry Fong e a trilha sonora com apropriados toques de Vangelis e Blade Runner que Tyler Bates entrega. Os efeitos visuais que possibilitam a criação do Dr. Manhattan (em uma performance serena de Billy Crudup) e a expansão de suas habilidades – incluindo uma memorável viagem à Marte – são impressionantes, e sua gritante luz azul ajuda a confeccionar um longa visualmente impecável, do tipo que Snyder nunca mais foi capaz de superar nesse quesito.
Uma das mudanças temáticas consideráveis, porém, é que Snyder optou por enfatizar e exacerbar a ação. Se no quadrinho tinhamos mais um thriller psicológico, o que vemos no filme é, definitivamente, um filme de ação. Isso nos garante sequências empolgantes como a da luta do Comediante contra seu misterioso assassino, a fuga da prisão e uma brutal briga em um beco. Minha única ressalva é o exagero nas habilidades dos personagens, que saltam, caem de grandes alturas e até quebram paredes com a força de seus punhos; algo que foge da essência mais realista da história.
Mas todos os personagens estão perfeitamente representados. A começar pelo excelente Jackie Earle Haley, que absorve a obsessão quase psicopata de Rorschach em uma performance forte e movida por uma voz rouca incômoda, certamente merecendo aplausos. O sempre competente Patrick Wilson oferece um Coruja bem humano e convincente em seu drama de impotência, ao passo em que Billy Crudup agrada em sua performance bem controlada de Manhattan. Jeffrey Dean Morgan tem pouco tempo em cena, mas é a perfeita encarnação do sadismo e ironia do Comediante, sobrando apenas para Malin Akerman oferecer uma performance “OK” como a Espectral, sendo perceptível encontrar momentos de pura inexpressividade e falta de carisma. Por fim, Matthew Goode traz um Ozymandias diferente do quadrinho, mas cujas motivações e ações são bem transportadas em uma performance um tanto mais irônica e debochada.
Por fim, acho injusto falar de Watchmen e não comentar sua inspirada escolha de trilha sonora incidental. Temos a classuda “Unforgettable” de Nat King Cole para pontuar a brutal luta inicial, a atemporal “The Times Are A-Changing” de Bob Dylan para uma das melhores sequências de créditos de abertura de todos os tempos, “I’m Your Boogie Man” de KC & The Sunshine Band” para a violenta interação do Comediante com uma multidão enfurecida e “Pruit Igoe & Profecies” de Philip Glass para a incrível montagem sobre a origem do Dr. Manhattan; para citar apenas os melhores exemplos. A menção desonrosa fica com “Hallelujah”, de Leonard Cohen, que transforma a catártica relação sexual de Coruja e Espectral em uma piadinha bem desnecessária.
Além de uma obra-prima no quesito visual, Watchmen: O Filme é um esforço incrível e uma experiência muito interessante, seja pelo exercício de fidelidade ao transportar uma graphic novel considerada infilmável até a desconstrução do mito dos super-heróis que o diferencia da maioria dos exemplares do gênero.
Director’s Cut
Mesmo que os 162 minutos que vimos na versão de cinema sejam muito eficientes em transportar todas as 12 edições da história, havia ainda mais material em Watchmen – Director’s Cut, que traz 24 minutos adicionais. Em termos de ritmo, permanece a mesma narrativa sinuosa e complexa do filme, mas temos muito mais tempo para respirar. O montador William Hoy estende alguns pontos de corte e garante que tenhamos sequências mais fluidas: um ótimo exemplo é a fracassada primeira reunião dos Watchmen, que no corte do cinema já se iniciava com o Comediante indo contra Ozymandias, e aqui tem mais tempo ao começar com calma na chegada dos heróis à sala de reunião. O diálogo do Dr. Manhattan com Laurie em Marte também ganha mais alguns minutos, só enriquecendo o belo texto de Hayter e Tse e acho muito importante que o Comediante tenha um pequeno diálogo com a multidão enraivecida antes de sair na porrada durante a sequência dos tumultos.
Em termos de cenas totalmente novas, há muito o que observar. De cara, o grande destaque é a expansão do arco de Hollis Mason (Stephen McHattie), o primeiro Coruja, que tem um diálogo estendido com Dan Dreiberg e a famosa cena em que sua casa é atacada por membros de uma gangue; momento triste da HQ que Snyder adapta com estilo ao usar “Intermezzo”, de Pietro Mascagni (música famosa por seu uso em Touro Indomável) para pontuar o desfecho trágico do herói aposentado.
Em muitos aspectos, é uma versão superior à de cinema, ainda que também não seja um filme perfeito. A mão pesada de Snyder para momentos mais dramáticos permanece, mas temos novos pequenos momentos que enriquecem muito a experiência e os arcos de seus personagens.
Ultimate Cut
O quê?! Mais uma versão? Sim! E se já tinham achado que 186 minutos eram mais do que o bastante para toda a experiência cinematográfica de Watchmen, acomodem-se para os inacreditáveis 215 minutos de projeção do Ultimate Cut! O que temos aqui é basicamente o Director’s Cut do filme remontado com a animação Contos do Cargueiro Negro, que adapta o “quadrinho dentro do quadrinho” de Watchmen, que um personagem secundário lê enquanto os eventos principais da trama se desenrolam.
Nela, acompanhamos a sombria saga de um Capitão (dublado por Gerard Butler) que tem seu navio atacado por piratas do navio Cargueiro Negro e acaba ilhado sozinho enquanto os agressores seguem para sua cidade. Em meio a muitas reflexões e atos repreensíveis, ele procura uma forma de sobreviver e retornar à sua cidade a fim de salvar sua família.
Essa é a maior representação de Watchmen ganhando vida, com suas 3 horas e meia de projeção abordando praticamente todo o material dos quadrinhos de Moore (com exceção dos ensaios, entrevistas e documentos epistolares, mas fica a recomendação do documentário Sob o Capuz), sendo uma narrativa com ritmo ainda mais ousado do que a versão dos cinemas. Pessoalmente, a entrada das cenas de animação atrasam bastante o andamento da história, e o desenho de não é dos mais inspirados. Mas sou supeito pra falar, já que não era um grande fã da história extra mesmo durante a leitura da graphic novel.
Porém, o que gosto é da interação entre os dois Bernies: o jornaleiro Bernard (Jay Brazeau) e o adolescente Bernie (Jesse Reid), que interagem bastante com os eventos principais. São justamente esses momentos, o espanto, o choque e até as aparições de Jackie Earle Haley como um freguês frequente que expandem com maestria o universo da história. Quando o Dr. Manhattan desaparece, são os Bernies que trazem mais peso à história, assim como o explosivo atentado que move o clímax da narrativa. Sem falar que a interação dos dois é muito divertida, merecendo créditos às performances de Brazeau e Reid e ao – mais uma vez – excelente design de Alex McDowell, que acerta pelo visual sujo, movimentado e realista de uma rua nova-iorquina dos anos 80.
Se ao menos existisse um Super Mega Blaster Cut, com o Director’s Cut, as cenas dos Bernies e a exclusão do Cargueiro Negro e “Hallellujah”, talvez tivéssemos em mãos a experiência cinematográfica definitiva de Watchmen. Até a já anunciada série da HBO com Damon Lindelof estrear, o esforço de Zack Snyder é mais do que digno para esta história incrível.
Watchmen: O Filme (Watchmen, EUA – 2009)
Direção: Zack Snyder
Roteiro: David Hayter e Alex Tse, baseado na obra de Alan Moore e ilustrada por Dave Gibbons
Elenco: Jackie Earle Haley, Patrick Wilson, Malin Akerman, Jeffrey Dean Morgan, Billy Crudup, Matthew Goode, Carla Gugino, Matt Frewer, Stephen McHattie, Laura Mennell, Rob LaBelle, Gerard Butler
Gênero: Ação, Drama
Duração: 162 min/180 min/210 min
https://www.youtube.com/watch?v=PVjA0y78_EQ
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Crítica | Liga da Justiça - O futuro da DC é otimista
O caminho da nova fase da DC nos cinemas foi turbulento, para dizer o mínimo. Após a bem sucedida trilogia de Christopher Nolan chegar a seu desfecho em 2012, a Warner Bros confiou a Zack Snyder a tarefa de iniciar um universo cinematográfico que pudesse bater de frente com a Marvel Studios, com filmes interligados e grandes reuniões dos heróis na mesma produção. Mas não foi um sucesso de imediato. A versão sombia e intimista de Snyder para o Superman com O Homem de Aço foi polarizante, e não rendeu o dinheiro ou o amor do público que o estúdio esperava.
Desesperados para seguir a Casa das Ideias, o estúdio apostou nessa narrativa e aprovou a produção de uma nova linha, que continuaria a história de Snyder em Batman vs Superman: A Origem da Justiça, um longa ainda mais controverso e que gerou críticas negativas expressivas ao projeto. Mesmo assim, a Warner seguiu no ringue e apostou em algo diferente com Esquadrão Suicida, que concentrava-se em vilões da DC e também em um pouco mais de humor; mas, graças a uma direção fraca e refilmagens danosas, o filme foi um verdadeiro desastre. Foi só neste ano, com Mulher-Maravilha, que o estúdio conseguiu agradar tanto ao público quanto a crítica, entregando um longa redondo e que definitivamente acertava onde todos os outros falhavam.
Agora, seguindo o sucesso do tom mais leve e aventuresco do filme de Patty Jenkins, a Warner trabalha arduamente para entregar uma versão eficiente de Liga da Justiça, contando com Joss Whedon para comandar uma série de refilmagens e até finalizar o filme ele próprio, após Snyder se afastar do projeto por uma tragédia familiar. Um resultado como Batman vs Superman não é uma opção aqui, ou todo esse já frágil DCEU vai desmoronar como um castelo de cartas. E, no fim, por incrível que pareça, o resultado final é uma das melhores coisas que essa nova safra da DC foi capaz de oferecer.
O Fio Fantasma
A trama começa com o impacto da morte do Superman (Henry Cavill) sobre o mundo, com taxas de criminalidade subindo, um desespero maior tomando conta da população e também o alerta de Bruce Wayne/Batman (Ben Affleck) a respeito de uma vindoura ameaça: o Lobo da Estepe (Ciarán Hinds), uma poderosa entidade cósmica que procura na Terra por três artefatos conhecidos como Caixas Maternas. A fim de impedir os planos do Lobo e uma catástrofe mundial, Batman, Diana Prince/Mulher-Maravilha (Gal Gadot) e o fiel mordomo Alfred (Jeremy Irons) formam um grupo com pessoas especiais pelo planeta, contando com Barry Alllen/Flash (Ezra Miller), Arthur Curry/Aquaman (Jason Momoa) e Victor Stone/Ciborgue (Ray Fisher).
Evidentemente, há muitas comparações entre este filme e Os Vingadores, que também serviu como a primeira união do principal super-grupo de heróis da editora. E, da mesma forma, não é sábio esperar que este filme pudesse ser tão bom quanto o filme de Whedon. Isso porque todos os personagens naquele longa tiveram suas respectivas aventuras solo anteriormente, já tendo o terreno sendo preparado para a união por 4 anos e 5 filmes, enquanto o filme de Snyder ainda precisa apresentar alguns de seus protagonistas e os respectivos arcos dramáticos de cada um; apenas Batman, Superman e Mulher-Maravilha são personagens inteiramente apresentados, a menos que você considere aquelas cameos ridículas via email em Batman vs Superman.
Dessa forma, o primeiro ato de Liga da Justiça é claramente problemático, com o roteiro de Chris Terrio e Joss Whedon (apesar de dirigir as refilmagens e finalizar, o sindicato só permitiu que Whedon ganhasse um crédito como roteirista) precisando rapidamente lidar com as consequências de BvS, situar cada um dos personagens, que literalmente parecem saídos de filmes diferentes com visuais e tons distintos, e também introduzir a nova grande ameaça global que reuni os heróis. Tudo parece um pouco apressado e costurado nessas cenas iniciais, com Bruce Wayne dando um pulo na Islândia para visitar o Aquaman como se a viagem fosse uma simples volta no bairro; não temos a noção do esforço ou da viagem do personagem para aquele ambiente, e a montagem de David Brenner, Richard Pearson e Martin Walsh peca em não oferecer tempo o bastante de contemplação ali, e a introdução do personagem de Momoa é outro fator apressado.
Nesse quesito, essa pressa e inchaço narrativo faz com que tenhamos um vilão completamente sem motivação, e que é de longe o pior fator da produção. Não só o Lobo da Estepe é uma figura unidimensional que só se expressa através de frases patéticas como "eu sou o destruidor de mundos", mas carece de qualquer tipo de motivação ou contexto para que possamos compreendê-lo. Não ajuda também que o arauto de Darkseid seja uma criação de péssimos efeitos visuais, que jamais convencem ou tornam sua figura minimamente ameaçadora - e Ciarán Hinds parece nem se esforçar para criar uma voz interessante ao antagonista, que ganha também um rosto genérico e sem expressão, criado sem a ajuda de motion capture. Facilmente um dos piores vilões da história do gênero de quadrinhos no cinema, e sua presença sempre enfraquece o filme a cada vez que a narrativa desvia sua atenção para ele.
Aurora da Justiça
Mas agora que tiramos os principais deméritos da frente, posso falar sem medo: Liga da Justiça é o meu filme preferido do DCEU. Claro, isso não quer dizer que é o melhor. Nesse quesito, Mulher-Maravilha ainda assume o posto por ser o longa mais correto e sem qualquer tipo de problema muito grave, mas pessoalmente Liga foi o que mais entreteu e divertiu durante o tempo de exibição. Existe um efeito contagiante de se ver todos esses heróis icônicos agindo juntos em tela, e Snyder compreende como utilizar suas diferentes habilidades em meio a ótimas cenas de ação, que têm o obrigatório toque do diretor com a slow motion; que aqui faz mais sentido dada a presença do Flash e sua habilidade de enxergar o tempo mais devagar, o que garante cenas visualmente impressionantes (ainda que não cheguem aos pés do trabalho de Bryan Singer em X-Men: Dias de um Futuro Esquecido) e com um bem-vindo alívio cômico. Ainda nesse quesito do efeito, o fato de que a trilha sonora de Danny Elfman resgate os temas clássicos do Batman e Superman é algo que parece transcender esse universo próprio, e ajuda a tornar as cenas de ação muito empolgantes e e divertidas.
E tendo a presença de dois diretores com estilos distintos no comando do longa, um dos temores era de que teríamos uma obra esquizofrênica com identidades diferentes. Felizmente, a transição Snyder-Whedon é sutil e não surge como um grande Frankenstein, já que a mão de Snyder está mais relacionada com grandes setpieces e cenas de ação, enquanto Whedon cuida de diálogos e novas interações entre os personagens. No que diz respeito à espetáculo, os fãs de Zack Snyder não se decepcionarão, e confesso que apreciei bem mais do que em BvS, onde critiquei a condução dos efeitos visuais em cenas como a batalha com Apocalipse. Aqui, sequências que merecem destaque são as batalhas da Liga contra o exército dos Parademônios e a invasão do Lobo em Temiscira, onde Snyder explora com criatividade as habilidades das Amazonas para esconder um artefato do vilão.
O toque Whedon nessas cenas, e é algo facilmente identificável como algo de seu feitio, é a inserção de um pequeno núcleo familiar em Chernobyl, onde o clímax do longa acontece. Mesmo que sejam personagens com os quais nunca criemos algum tipo de apego, são elementos que forçam os heróis a terem algum cuidado com civis e demonstrarem um lado mais heróico, ao invés de simplesmente encherem o vilão de porrada e deixar uma trilha de destruição. Aliás, é hilário imaginar como Zack Snyder deliberadamente escolheu uma cidade deserta para situar seu grand finale, justamente para evitar as críticas à destruição civil de O Homem de Aço, e aí ver Joss Whedon chegar e enfiar pessoas ali.
Outro dos medos que circulava a bolha nerd após o anúncio da entrada de Joss Whedon era de que o filme seguiria uma linha mais próxima da Marvel Studios, que traz piadas irritantes durante praticamente o filme todo. Felizmente, o humor surge como algo mais pontual aqui, e as sacadas que Terrio e Whedon desenvolvem são mais ligadas ao personagem do Flash, e também complementam a sua psique: um jovem assustado, e de comportamente histérico graças à sua habilidade de aceleração. De forma similar, as piadas ajudam a criar um clima confortável e divertido para a interação de todos os heróis, e é justamente aí que reside a grande qualidade do filme: seus personagens.
A união faz a força
É de se admirar como Zack Snyder escalou bem os protagonistas da Liga, algo que, anos após o anúncio oficial, enfim se comprova como o maior acerto dessa franquia até então. Desde as caracterizações (o figurinista Michael Wilkinson, como sempre, impressiona com a confecção dos uniformes) até as atuações, temos um elenco que simplesmente queremos acompanhar por mais filmes no futuro. Ben Affleck surge como um Batman mais leve e arrependido após os eventos de BvS, e é admirável ver sua química com a sempre carismática Mulher-Maravilha de Gal Gadot, que, sendo sincero, vai melhorando como atriz a cada projeto. Vê-se muito da influência de Whedon aí, com os dois tendo mais interações do que qualquer outro membro da equipe, e também pela nítida tensão sexual entre os dois, que tanto o texto quanto os atores incorporam muito bem.
Dentre os novos personagens, Ezra Miller certamente é o que acaba chamando mais atenção, pelo claro motivo de ser o alívio cômico e o personagem mais chamativo. O entusiasmo de Barry Allen por fazer parte de uma situação absurda dessas é divertido de se assistir, mas Miller incorpora também o aspecto mais introspectivo do personagem. Parece uma fala boba quando vemos durante trailers e comerciais, mas ao atestar que "precisa de amigos", vemos que Barry é uma pessoa com dificuldade de se relacionar, e temos ótimas pequenas nuances disso, especialmente com Ciborgue, e felizmente fica claro que o Flash não é uma mera metralhadora de piadas. Seu medo de em entrar em combate é outro ótimo momento, iniciando ali um pequeno arco de crescimento onde o personagem acaba precisando encontrar seu herói interno.
A grande surpresa fica por conta de Ray Fisher, que surge com metade de seu rosto (e todo o corpo) removido digitalmente para dar vida ao Ciborgue. É a estreia de Fisher nos cinemas, e mesmo com toda essa parafernalha CGI tomando conta de suas feições, o jovem ator mostra-se muito carismático e com presença em cena, sendo também um dos personagens que ganha maior peso dramático; ainda mais porque embora seja definitivamente um longa mais leve do que Batman vs Superman, o drama não se perdeu, e todo o dilema de Victor Stone ser formado por uma inteligência artificial alienígena rende bons frutos. Claro, bem menos do que poderia (isso entra no tempo comprimido do primeiro ato), mas garante uma catarse recompensadora quando o personagem resolve abraçar sua anormalidade e se juntar à Liga após tanta resistência.
Por fim, o Aquaman de Jason Momoa acaba sendo o personagem mais apagado, mas nem por isso um demérito. Na função de oferecer uma imagem mais digna e badass para um dos super-heróis mais ridicularizados pelo público geral, Momoa se sai bem ao criar um Arthur Curry praticamente "de saco cheio" de tudo e de todos, rendendo um bom diálogo com a Mera de Amber Heard, que já estabelece um contexto interessante para o filme solo do herói que James Wan prepara para o ano que vem. Sim, acaba sendo uma performance que soa como nota única, mas que funciona pelo carisma do ator.
E por mais que ele tenha morrido em BvS e tenha ficado oculto de praticamente todo o marketing, você sabe muito bem que o Superman está nesse filme. Confesso que a solução para trazê-lo de volta foi muito interessante e diferente do que imaginava, e Henry Cavill se sai muito bem ao incorporar uma versão confusa e fascinante do herói, que acaba sendo um dos pontos altos da produção. É algo que acaba indo mais próximo do Superman clássico dos quadrinhos, e também da versão de Christopher Reeve, e a mudança não é brusca se considerarmos que o personagem literalmente morreu e voltou à vida; mesmo que, novamente, esse aspecto da ressurreição não tenha tanto tempo para um desenvolvimento sólido, garantindo bons momentos com a Lois Lane de Amy Adams (demorou três filmes, mas esse romance finalmente é capaz de comover) e com o Bruce Wayne de Affleck. Infelizmente não há, também, muito tempo para que o Super interaja com todos os membros da Liga, mas as sequências estão aí pra isso.
Ah, e como não poderíamos deixar de comentar o polêmico bigode... É de longe a pior coisa do filme. Caso não saibam, Henry Cavill gravou algumas cenas novas do Superman usando um bigode que contratualmente era proibido de ser raspado, dado o compromisso do ator com o vindouro Missão: Impossível 6, da Paramount, e que forçou a equipe de efeitos visuais a removê-lo digitalmente. O resultado é simplesmente catastrófico, e vergonhoso de se olhar. Em diversos momentos, a boca de Cavill parece inchada e aumentada, sendo possível identificar o que é refilmagem e o que não é através do rosto deformado do ator. Assustador, e ainda mais artifical do que qualquer tomada envolvendo o Lobo da Estepe. Só espero que ao menos um dia tenhamos a imagem de um Superman de bigode vindo a público, porque mais ridículo do que essa barbearia digital, impossível.
Liga da Justiça é uma fera estranha. Tem problemas de ritmo e desenvolvimento em seu apressado primeiro ato, e também um dos piores vilões de quadrinhos que já vi na vida, mas compensa essas questões graças ao excelente entrosamento da equipe e a caracterização destes personagens icônicos. É uma experiência divertidíssima e que oferece um novo rumo para a DC, que parece mais interessada no otimismo e na exploração do heroísmo. Pela primeira vez em muito tempo, estou empolgado pelo futuro dessa editora.
Liga da Justiça (Justice League, EUA - 2017)
Direção: Zack Snyder
Roteiro: Chris Terrio e Joss Whedon, baseado nos personagens da DC
Elenco: Ben Affleck, Gal Gadot, Jason Momoa, Ezra Miller, Ray Fisher, Henry Cavill, Jeremy Irons, J.K. Simmons, Connie Nielsen, Amy Adams, Diane Lane, Amber Heard, Ciarán Hinds, Billy Crudup, Joe Morton, Jesse Eisenberg
Gênero: Aventura
Duração: 121 min
https://www.youtube.com/watch?v=AkPVYhf5ZeI
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Liga da Justiça | Saiba quais as cenas dos trailers que não estão no filme
Todos sabemos que Liga da Justiça passou por complicações em sua pós-produção. O filme sofreu uma série de refilmagens após o diretor Zack Snyder se afastar do longa para cuidar de problemas familiares, deixando Joss Whedon no comando para escrever e gravar novas cenas, além de finalizar o corte final do filme.
Com isso, tendo assistido ao filme, não pudemos deixar de notar como MUITAS cenas vistas nos trailers acabaram de fora da versão final, e reunimos aqui todos os momentos cortados que conseguimos encontrar.
Confira:
Prévia Especial da Comic-Con 2016
Aquaman na água
Uma cena que Jason Momoa deve ter ficado triste de não ver no produto final... Nela, o ator foi realmente bombardeado por ondas de água, sendo uma das primeiras imagens que tivemos de sua versão badass do Aquaman. Pena.
Victor Stone pré-acidente
Muito material de Ray Fisher como um Victor Stone antes de sua transformação foi cortado. Aqui, vemos o jovem atleta andando com um blusão da universidade de Gotham City.
"Mais pra menos ou mais pra mais?"
Uma cena com Bruce e Diana comentando sobre o recrutamento da Liga, com a Amazona indagando sobre a resposta de Aquaman.
Reunião no Túnel
Todo esse diálogo da Liga antes de embarcar na batalha nos túneis foi cortado, com Ciborgue conversando diretamente com Batman pela primeira vez.
Trailer Oficial
Bruce na Islândia
A chegada de Bruce Wayne na Islândia, onde ele busca pelo Aquaman, ainda está no filme, mas todos estes lindos planos infelizmente acabaram de fora. Lamentável, pois teriam servido como boas tomadas de estabelecimento de cena.
Caixa Materna descontrolada
Um take da Caixa Materna dos humanos, escondida com as coisas de Victor Stone. Este take específico não está no filme, mas vemos as consequências desse descontrole do artefato quando o Dr. Silas Stone chega no apartamento, um pouco depois.
"Onde eles estão?"
Mais uma interação entre Bruce e Diana e cortada, com ela perguntando onde estão os novos recrutas da Liga.
Ciborgue em ação
Duas cenas do Ciborgue acabaram cortadas: quando ele usa sua arma de raios para salvar os cientistas no túnel, e quando salva um policial de ser atingido por um veículo em chamas.
Liga da Justiça Sem Limites
É... Essa bela tomada dos heróis que parece uma homenagem ao desenho Liga da Justiça Sem Limites (pela cor do céu), foi outra que ficou no chão da ilha de edição.
Aquaman vs Parademônios
Muitas cenas de luta do Aquaman acabaram ficando de fora também. A única grande cena é aquela onde o herói enfrenta os Parademônios pelos céus, incluindo o já famoso "surf" pelo prédio.
Rasteira da Mulher-Maravilha
Pequeno golpe de luta que acabou cortado da cena de introdução de Diana, durante o atentado ao museu em Londres.
Ciborgue coberto e voando
Em um take muito bacana, o Ciborgue cobre a metade humana de seu rosto, mas isso não acontece no filme. A bela tomada em que o herói biônico voa próximo da lua também acabou de fora.
Flash vs Parademônios
Outro ótimo momento de ação acabou de fora, com o Flash usando a força de aceleração para derrotar os Parademônios ao seu redor.
"Minha vez"
A frase de efeito do Batman enquanto aborda o Nightcrawler ficou de fora.
Victor jogando futebol
Em uma tomada mais Zack Snyder impossível, com um jogo de futebol em slow mo e no meio da neve, vemos Victor Stone como atleta da Universidade de Gotham City.
Lois Lane
Uma das poucas tomadas da Lois Lane de Amy Adams nos trailers... E não está no filme.
"Vamos lá?"
A tomada e a frase estão no filme, quando Diana prepara-se para enfrentar o Lobo da Estepe. Porém, na versão final ela está sozinha, sem a presença de Aquaman e Ciborgue no quadro.
Trailer da Comic Con 2017
Batman entrega o Tridente à Aquaman
Um take bem rápido em um dos trailers, onde o Batman entrega a arma de Atlântida à Arthur Curry.
O mundo sem o Superman
Algumas tomadas de Metrópolis após a morte do Superman, com takes da estátua destruída e manchetes de jornais pessimistas do Planeta Diário.
Batman sendo o Batman
Tecnicamente essa cena ainda está no filme, mas inexplicavelmente foi substituída por um enquadramento muito pior, e que não chega nem aos pés dessa belezinha.
Ciborgue na janela
Esse take também está no filme, mas nele o Ciborgue está usando um moletom com capuz para esconder seu corpo metálico.
Superman Holográfico
Muitos se perguntavam se era o Superman ou a Supergirl a figura holográfica que Bruce Wayne observava no trailer. Certamente era o Homem de Aço, mas não faz diferença agora, já que a cena foi cortada.
A Força de Aceleração
Barry Allen usando seus poderes para atravessar uma vidraça. Lindo efeito visual...
Lobo da Estepe e os Parademônios
Sinistra tomada do Lobo da Estepe no ninho dos Parademônios, que infelizmente acabou de fora.
"Faremos isso juntos"
Mais um trecho de diálogo da cena do túnel, onde a Mulher-Maravilha alerta aos outros membros do grupo para que lutem juntos.
Hero shot
Tomada bacana com os heróis reunidos, provavelmente em uma das instalações de Bruce Wayne.
QUEM ERA?!
Você que ficou teorizando até altas horas sobre o visitante misterioso que conversava com Alfred no final desse trailer... Era o Superman? Asa Noturna? Lanterna Verde? Conforte-se com o fato de que NUNCA saberemos quem era, pois esta cena não está no filme.
Trailer Heroes
A aliança
Essa cena entre Lois e Clark está no filme, mas não há menção sobre a aliança de casamento.
"Algo mais sombrio"
Junto com Diana Prince, Bruce teme que algo pior que o fim do mundo esteja chegando à Terra. Um dos melhores momentos de Ben Affleck nos trailers, e infelizmente acabou de fora.
O elenco de Liga da Justiça traz Ben Affleck, Gal Gadot, Henry Cavill, Ezra Miller, Jason Momoa e Ray Fisher como a primeira formação do supergrupo da DC nos cinemas. Temos ainda Ciarán Hinds, Amber Heard, Amy Adams, Jeremy Irons, Diane Lane e Jesse Eisenberg completando o elenco.
Zack Snyder dirige a partir do roteiro de Chris Terrio (Batman vs Superman), mas Joss Whedon finalizará o filme.
Liga da Justiça estreia em 15 de novembro no Brasil.
Crítica | Superman: O Retorno - Uma carta de amor não correspondida
Obs: alguns spoilers
Superman estava morto. Após o fracasso do tenebroso Superman IV: Em Busca da Paz, facilmente um dos piores filmes de super-heróis da História da Humanidade, a Warner Bros deixaria o Homem de Aço descansar das telonas por um bom tempo. Teríamos a série Smallville, centrada na adolescência de Clark Kent e seu futuro crescimento para tornar-se o herói de Metrópolis, mas Kal-El só retornaria aos cinemas quase 20 anos depois.
A ressurreição do Superman passou pelas mãos de diferentes cineastas, em um longo caminho de projetos cancelados e roteiros descartados, que incluíram a passagem de Tim Burton, Kevin Smith, Wolfgang Peterson, J.J. Abrams, McG e até um filme que colocaria o Batman contra o Superman, antes de Zack Snyder enfim concretizar essa ideia em 2016. E, claro, temos aquelas fotos bizarras de Nicolas Cage cabeludo com o uniforme do herói, que seria a versão abortada de Burton - e muito bem explorada no eficiente documentário The Death of Superman Lives, que fica recomendado. No fim, o escolhido para levar o Homem de Aço de volta aos céus foi Bryan Singer, que na época estava no auge graças ao sucesso de sua visão para os X-Men no cinema. Assim, nascia um dos mais incompreendidos e injustiçados filmes de super-heróis já feito: Superman: O Retorno.
Parte reboot, parte continuação do filme original de Richard Donner, o roteiro de Michael Dougherty e Dan Harris abraça a metalinguagem e nos apresenta a um mundo onde o Superman (vivido por Brandon Routh) está desaparecido da Terra. Após um período de 5 anos, onde havia partido para encontrar vestígios de seu planeta natal, Krypton, Kal-El retorna para o mundo, atraindo a atenção da mídia, de sua outrora amante Lois Lane (Kate Bosworth) e também do megalomaníaco vilão Lex Luthor (Kevin Spacey), que arquiteta um plano para destruir o herói e sacudir a Ordem Mundial, após encontrar a Fortaleza da Solidão e se apoderar dos cristais Kryptonianos do herói.
Superman Lives
É incrível assistir a Superman: O Retorno e pensar em como ele dificilmente seria realizado hoje, mesmo tendo sido lançado a pouco mais de uma década. A menos que fosse lançado sob a agora revolucionária linha da Fox, que aposta em filmes de gênero mais isolados com seus personagens de quadrinhos (ver Logan, Deadpool ou o trailer de Novos Mutantes), este Superman sairia como um estranho perto da atual linha de produção intensa da Marvel Studios ou do estrabalhado Universo Cinematográfico da DC. Isso porque o trabalho de Singer é muito mais humanista e romântico, não se preocupando muito com a ação, explosões ou outros elementos que vêm jogando o gênero em um desgaste preocupante. Isso também explica como o filme foi tão mal nas bilheterias em sua época de lançamento, eliminando qualquer chance desta versão do personagem virar uma franquia; e, sinceramente, talvez tenha sido a melhor decisão, já que o filme funciona melhor como algo único.
Da mesma forma como O Despertar da Força é uma grande homenagem ao primeiro Star Wars, O Retorno é uma verdadeira carta de amor ao filme de Richard Donner, chegando a repetir praticamente todos os beats da história, e também o plano principal de Lex Luthor - no original, a versão de Gene Hackman queria uma ilha, aqui ele almeja por um continente. Essa reciclagem da trama foi outro elemento muito criticado na época, mas que, vendo nos dias de hoje onde esse jogo seguro de repetir a estrutura do original é mais comum do que nunca, envelhece bem e se mostra, estranhamente, "à frente de seu tempo" nessa questão. Claro, isso pode ser considerado um "defeito" se considerarmos a forte semelhança entre os dois roteiros, mas a partir dessa leitura da homenagem, o experimento de Singer funciona muito bem.
Isso porque, apesar de ser o filme-gênese para heróis de quadrinhos no cinema, o filme de Donner era simples e ingênuo demais; se compararmos com a linha que o gênero segue hoje. Por isso, é ousado que Singer aposte em uma abordagem romântica e sem muita ação para um dos seres mais superpoderosos da cultura pop, e também explica como o longa não se conectou com o público mais jovem; afinal, o Superman não soca ninguém nesse filme. No lugar disso, temos um estudo sobre o impacto que o Superman provoca no mundo com seu retorno, e também sobre as dificuldades em suas relações pessoais, especialmente Lois Lane, que agora encontra-se noiva do sobrinho de seu patrão (vivido por James Marsden) e mãe de um garotinho asmático (Tristan Lake Leabu). Singer aposta muito em cenas sobre o relacionamento dos dois, sobre a pressão que White sente com o retorno do herói na vida de sua noiva, e também sobre a extrema rejeição da jornalista com o reaparecimento do Superman; por este ter ido embora sem avisar e retornar do mesmo jeito, inclusive tornando seu artigo vencedor do Pulitzer (um grande texto sobre como o mundo não precisa de um salvador) uma hipocrisia, considerando a histeria da população em receber o herói de volta.
Esse aspecto do Superman como indivíduo e a reação do mundo a sua presença é o aspecto mais interessante. Todo o romance e triângulo amoroso entre Clark, Lois e Richard não é dos mais estimulantes, além de termos uma deficiência no casting (que falaremos mais à frente) e acabar caindo em clichês, mas que compensam com a ótima reviravolta envolvendo a paternidade de um dos personagens. Quanto ao retorno, é um tema que acaba sendo muito bem explorado graças ao fantástico trabalho de world building, conceito que cada vez mais vai se perdendo em novas adaptações de super-heróis. Ao termos o núcleo do Planeta Diário e a presença da mídia, todas as ações do Superman ganham repercussão e parece palpáveis, com a simples fala do jornalista Perry White (Frank Langella, ótimo) em disparar uma série de perguntas para sua equipe ("é uma roupa nova?", "como vão fazer pra tirar o avião do campo de beisebol?") sendo uma forma perfeita e eficiente em tornar os personagens - e aquele universo - tridimensionais, algo que o design de produção do grande Guy Hendrix Dyas (de A Origem) faz maravilhosamente bem ao transformar Metrópolis em uma cidade real.
Um homem pode voar
Mas ainda que este não seja um filme de ação, todas as sequências de Superman: O Retorno que abraçam o espetáculo são incríveis. Bryan Singer talvez seja o diretor que melhor já transpôs super-poderes às telas, como fica bem claro em seu excepcional trabalho nos filmes dos X-Men (cenas de Noturno em X-Men 2 e Mercúrio em Dias de um Futuro Esquecido e Apocalipse mandam lembranças) e também em seu tratamento com o Homem de Aço. Para Singer, uma habilidade extraordinária sempre requer ser tratada como tal, e sinceramente... o potencial cinematográfico do Superman nunca foi tão bem aproveitado como aqui, ainda que Richard Donner tenha feito um trabalho revolucionário em seu primeiro filme e Zack Snyder não tenha feito feio com sua versão mais sombria do personagem, com Henry Cavill.
A primeira grande set piece é também um dos melhores momentos que um super-herói já teve nas telas. Com um set up tipicamente quadrinesco, um avião jumbo carrega um ônibus espacial para realizar um lançamento econômico e, claro, as coisas dão errado quando uma falha no acoplamento acaba levando o avião junto com o veículo espacial. O Superman vem ao resgate em uma sequência eletrizante, que permanece envolvente mesmo com o nítido envelhecimento dos efeitos visuais, que transformam Superman em um claro boneco digital borrachudo, no melhor (?) estilo Matrix Reloaded. Porém, Singer é um diretor que entende de câmera e fotografia virtual como poucos, e valoriza o escopo da geografia espacial (com as nuvens, a vista do planeta Terra) e também a velocidade de ambos os objetos, com o avião em queda livre, e girando no próprio eixo, sendo perseguido pelo herói. O som da cena é muito importante, e garante um design poderoso e minucioso, com um detalhe que parece irrelevante, mas que faz toda a diferença para que o público creia nessa bonecão digital: o som da capa sendo balançada ao vento durante o voo.
Ao contrário dos irmãos Russo ou Taika Waititis da vida, Singer mantém uma câmera elegante e que nunca cai nos vícios contemporâneos de tremedeira ou cortes rápidos. E por falar em cortes, a montagem de John Ottman (que também assina a trilha sonora) e Elliot Graham é inteligente ao intercalar a ação externa de Superman com todos os tripulantes do avião se segurando e em desespero, expondo ao espectador os riscos e as vidas em jogo - e Singer é hábil em usar a câmera para passar entre os corredores e janelas, conectando os passageiros com Superman na asa do avião através de seus olhares. A sequência ainda é avalancada pela excepcional trilha sonora de Ottman que mantém o suspense, o terror e finaliza com uma retomada emocionante do tema clássico de John Williams, no momento espetacular em que o herói pousa o avião em um estádio de beisebol. Uma cena que é a pura definição de heroísmo, e não seria a única amostra.
Em outra excelente amostra das habilidades de Kal El, temos um ótimo e intimista momento onde Superman paira sobre a Terra, e a câmera lentamente faz um giro em 360º sobre o corpo do herói, que parece em transe enquanto ele escuta absolutamente TUDO o que está acontecendo no planeta, deixando a mixagem de som tomar conta da narrativa e catapultar uma nova sequência de acontecimentos, com todos os sons paralelos sendo ofuscados por uma sirene policial. É aí que temos uma sequência quase episódica, com o Superman resolvendo alguns crimes da cidade - ainda que pareça pura distração e não mova à trama, ela complementa o world building da história, com a presença do herói sendo sentida entre os cidadãos de Metrópolis. Temos o Superman impedindo um assalto à banco, com a imagem impressionante do herói sendo atingido por uma rajada de balas de uma poderosa metralhadora giratória, e ele simplesmente caminhando como se nada estivesse acontecendo (culminando naquela tomada da bala se amassando em seu olho) e no resgate de um carro desgovernado - na verdade, uma distração provocada por Lex Luthor - que rende um belo fan service com a recriação da capa de Action Comics #1, primeira aparição do Superman nos quadrinhos.
O clímax mantém toda essa exploração magnífica, com momentos que traduzem visualmente a superforça do herói, sua visão de calor e também o super sopro, tanto na ótima sequência do terremoto em Metrópolis, como no deliciosamente over the top confronto com Lex Luthor e seu novo "continente" de kryptonita. Aliás, em meio a esse dramático clímax, Singer oferece um dos momentos mais frios de todo o gênero, quando o Superman perde seus poderes ao pisar no terreno construído por Luthor, e toma uma surra homérica e brutal do vilão e todos os seus capangas. É uma verdadeira humilhação, e poucas vezes vi um herói sofrer tanto em tela como nessa cena, e o efeito é ainda mais forte por termos o uniforme mega colorido e cartoon em meio a uma paisagem inóspita e mergulhada em tons de cinza opressores.
Ainda nessa linha, o terceiro ato do filme vai por caminhos ainda mais melancólicos ao trazer ares de A Morte do Superman, com o herói extremamente debilitado e fraco devido ao contato pela Kryptonita. Em mais um atestado de heroísmo e grande escala pelas lentes de Singer, o herói levanta UM CONTINENTE inteiro, levando a criação mortal de Luthor para o espaço (novamente, a desproporção entre o pequeno boneco digital e o gigantesco pedaço de terra é incrível), ao mesmo tempo em que sua energia vai sendo sugada. Superman empurra a construção para o espaço, e cai em pleno centro da cidade. É quando o filme inesperadamente transforma-se em um "hospital movie", com o herói sendo levado às pressas para a UTI, e é uma ironia trágica ver como seu corpo indestrutível não pode ser perfurado por agulhas ou suportar o efeito de desfilibradores, que simplesmente explodem em seu contato. É uma cena em que realmente tememos pela destruição de um ícone, com Singer usando o assassinato de John F. Kennedy como uma referência na criação da urgência e o sentimento de luto coletivo por parte da população.
Herdeiros de Krypton
Até a estreia de Superman: O Retorno, apenas um ator havia interpretado o herói nos cinemas: Christopher Reeve, que é, e sempre será, a performance definitiva do Homem de Aço. Dessa forma, é um desafio para qualquer um que ouse adotar o papel de Kal-El e seu alter ego de Clark Kent, e o fascínio de Singer por Donner e Reeve acabou levando-o a encontrar praticamente um sósia do ator: Brandon Routh. Infelizmente, apenas a semelhança do ator com o ícone não é o suficiente, e a performance de Routh acaba saindo inexpressiva e sem muito brilho: mesmo quando percebe o roubo de seus cristais, Routh é incapaz de oferecer um Superman realmente PUTO, limitando-se a uma cara fechada. Além disso, falha em criar o equilíbrio entre o Superman seguro e o Clark Kent fragilizado; estranhamente, o Clark de Routh surge quase como um creep, e nem de longe passa a empatia que esperaríamos. É um dos motivos pelo qual a trama romântica não funciona tanto, e Kate Bosworth como Lois Lane é outro erro, já que a atriz surge com uma performance sistemática e quase robotizada, raramente passando alguma expressão além de total sarcasmo e ranzinza.
De longe, e é um tanto difícil falar disso diante de toda a polêmica envolvendo a vida pessoal do ator, Kevin Spacey é o grande destaque entre o elenco principal. Seu Lex Luthor é uma bela continuação daquele introduzido por Gene Hackman na franquia original, e ouso dizer que um aperfeiçoamento notável, já que Spacey torna seu Lex mais calculista e humano, além de mais sinistro do que nunca. Ver como o ator varia de uma reação quase entediada ao ser surpreendido por Lois Lane enquanto escova os dentes, até seu discurso quase esquizofrênico quando explica seu plano de dominação mundial (com mapinha e tudo, como todo bom vilão de matinê), finalizando com um escandaloso grito de "Wrong!" ao negar a interferência de Superman. Mas, claro, este Lex não é um lunático qualquer, e Spacey acerta ao retratar a inteligência e o bom gosto cultural do vilão, que está sempre ouvindo alguma música clássica linda ou buscando um livro para oferecer referências.
O elenco de apoio também merece um destaque. Sam Huntington, em especial, faz um ótimo Jimmy Olsen e acerta ao trazer todo o entusiasmo e fala rápida do jovem fotógrafo do Planeta Diário; e adoro como a figurinista Louise Mingenbach tenha lhe designado uma gravata borboleta muito característica. Na pele da namorada de Lex (ainda que essa relação nunca fique explícita), Parker Posey agrada pelas tiradas humorísticas pontuais, e também por seu arco surpreendentemente relevante para a resolução da trama, e que é bem sucedido justamente pelas reações de Kitty a toda a violência e atos de Luthor, que fazem a personagem questionar se realmente está do lado certo. Já James Marsden está esforçado como de costume, mas pessoalmente não consigo ter nenhum apego ao bem intencionado Richard White, que não passa muito além do papel de "o outro cara". E não que o ator tenha uma grande presença, mas nunca imaginei que fosse ver Kal Penn dando uma surra no Superman.
Um filme mais romântico e sem muita preocupação com universos cinematográficos ou pancadaria, Superman: O Retorno é uma bela carta de amor ao herói clássico de Richard Donner, e também um dos filmes de super-heróis mais elegantes e incompreendidos dos últimos anos. Mesmo que tenha uma escolha equivocada de protagonista, a visão apaixonada de Bryan Singer faz valer toda a experiência, capturando o espírito inspirador e heróico do maior super-herói de todos os tempos.
Superman: O Retorno (Superman Returns, EUA - 2006)
Direção: Bryan Singer
Roteiro: Michael Dougherty e Dan Harris
Elenco: Brandon Routh, Kevin Spacey, Kate Bosworth, James Marsden, Parker Posey, Sam Huntington, Kal Penn, Eva Marie Sant, Frank Langella, Tristan Lake Leabu
Gênero: Aventura
Duração: 154 min
https://www.youtube.com/watch?v=bRqAUqAFhNw
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Crítica | O Agente da U.N.C.L.E. (2015)
É impressionante como 2015 tem se mostrado um ótimo ano para o gênero da espionagem.
Já em fevereiro, a comédia de ação Kingsman: Serviço Secreto pegou todos de surpresa ao apostar numa abordagem refrescante e empolgante. Dois meses depois, Melissa McCarthy nos fez crer que era realmente engraçada com A Espiã que Sabia de Menos, que também funciona como uma eficiente sátira dos clichês do gênero. Aí o maluco Tom Cruise chega com Missão: Impossível – Nação Secreta, que traz algumas das melhores cenas de ação do ano e um ritmo vibrante, mesmo em se tratando do quinto filme da série. E, agora, é a vez de Guy Ritchie brincar com O Agente da U.N.C.L.E., revelando-se uma divertida homenagem ao espião dos anos 60.
A trama começa em plena Guerra Fria, quando o agente da CIA Napoleon Solo (Henry Cavill) é forçado a se unir com o agente da KGB Illya Kuryakin (Armie Hammer) para uma missão que envolve impedir remanescentes nazistas de lançar uma bomba nuclear. Com diferentes estilos e ideologias, a dupla ainda precisa proteger um importante contato, a mecânica Gaby Teller (Alicia Vikander).
De todos os filmes citados ali em cima, U.N.C.L.E. certamente é o que segue a fórmula mais tradicional. Um roteiro que traz situações simples e sem muita profundidade, mas que funcionam graças a estereótipos consagrados (a femme fatale de Elizabeth Debicki é visualmente hipnotizante, mas vazia como uma bexiga) e a deliciosa atmosfera retrô. A fotografia em película de John Mathieson captura com perfeição o look dos anos 60, com a imagem levemente granulada e cores dessaturadas, enquanto a trilha sonora absolutamente genial de Daniel Pemberton (um nome para ficarmos de olhos bem abertos) fornece uma identidade sonora única; ao mesmo tempo em que a seleção incidental de Richie oscila inteligentemente entre Nina Simone e Tom Zé.
O próprio Solo de Cavill é uma versão mais debochada e malandra do James Bond de Sean Connery, o que rende uma excelente performance do ator e um contraponto visível com o Illya de Hammer. A irreverência de Solo chega no ponto em que este simplesmente se abriga em um caminhão e toma vinho, enquanto o parceiro enfrenta uma mortal perseguição de lancha, ou quando percebe ter sido drogado, e logo se deita no sofá de seu captor para evitar bater a cabeça no chão. Já Hammer é o exato oposto, e isso já fica evidente em seu figurino mais “capanga”, contra o impecável terno de Solo, e o esforçado ator entrega um sotaque russo convincente e que diverte por seu constante comportamento carrancudo. Ver os dois agindo juntos rende os momentos mais ricos da produção, que também não precisa apelar para um bromance estranho – como o próprio Ritchie fizera com Sherlock Holmes e Watson em suas versões do detetive de Arthur Conan Dyle.
Como diretor, Ritchie encontra-se bem mais contido do que suas surtadas cômicas em Snatch ou Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes. Tudo bem que o diretor e roteirista insiste em apostar em sua batida técnica de repetir cenas para nos revelar “um truque de mágica” escondido ali (mesmo que este seja bem perceptível algumas vezes, como a primeira aparição de Hugh Grant), mas, no geral, é uma condução segura e elegante, especialmente em sequências como o encontro inicial entre Solo e Illya no Muro de Berlim ou uma corrida contra o tempo claramente inspirada em Curtindo a Vida Adoidado. Só deixo registrado aqui que U.N.C.L.E. tem a perseguição de carro mais estranha que já vi na vida, como se Goddard resolvesse bagunçar toda a disposição espacial e cinematográfica desse tipo de cena.
O Agente da U.N.C.L.E. é entretenimento de primeira, promovendo uma palpável reconstrução da atmosfera da Guerra Fria e uma química divertidíssima entre seus protagonistas, que fazem valer qualquer absurdo ou clichê. Em um bom ano para agentes secretos, agora é esperar que James Bond não decepcione…
O Agente da U.N.C.L.E. (The Man from U.N.C.L.E., EUA/Reino Unido – 2015)
Direção: Guy Ritchie
Roteiro: Guy Ritchie, Lionel Wigram, baseado na obra de
Elenco: Henry Cavill, Armie Hammer, Alicia Vikander, Elizabeth Debicki, Hugh Grant, Luca Calvani, Sylvester Groth, Jared Harris, Christian Berkel, Misha Kuznetsov, Guy Williams
Duração: 116 min
https://www.youtube.com/watch?v=himZTt-mhFA
Crítica | Batman: O Cavaleiro das Trevas - Partes 1 e 2 (2012-2013)
Em 1986, a DC comics publicou uma das melhores graphic novels da história da indústria: Batman – O Cavaleiro das Trevas, escrita e ilustrada por Frank Miller (com co-ilustrações de Klaus Jason). Quase três décadas depois e o material continua sendo reverenciado e, aos olhos de Hollywood, uma obra “infilmável” – ainda que adaptações ao cinema do personagem tragam diversos elementos da narrativa. Em 2012 e 2013, Jay Oliva dirige uma animação que adapta toda a obra de Miller, e o resultado é bem decente.
A trama, caso não conheça, é ambientada em um futuro sombrio onde não existem mais super-heróis (um universo bem parecido com aquele visto em Watchmen, de Alan Moore) e o crime domina as ruas de Gotham City. Não suportando o nível de violência alcançado pela cidade, o Batman (voz do RoboCop, Peter Weller) abandona a aposentadoria e retorna mais violento e com a ajuda de um novo Robin (uma menina, dublada por Ariel Winter). Na saga para retomar o controle da cidade, o Cavaleiro das Trevas reencontrará velhos inimigos, aliados e até sairá na mão com o Superman (Mark Valley).
Esta adaptação foi lançada diretamente para DVD, em dois volumes (o primeiro no final de 2012, e o segundo no começo deste ano), pela DC Universe Animated, que também já havia cuidado de uma versão animada para Batman – Ano Um. Em termos de fidelidade, o roteiro de Bob Goodman transpõe toda a genial história de Frank Miller em 2h40 em uma narrativa empolgante e que mantém o tom pesado da HQ. Todos os momentos icônicos estão aqui e alguns deles, graças a recursos que apenas o audiovisual é capaz de oferecer, ganham ainda mais impacto do que no papel: o homérico confronto entre o Morcego e o Superman é um deles, que fica mais longo e impressiona pela ação, e também deve-se créditos ao compositor Christopher Drake, que elabora temas eficientes e que permeiam a história com perfeição – vide sua abordagem minimalista (algo também explorado por Hans Zimmer na trilogia de Christopher Nolan) para o Coringa homicida de Michael Emerson, uma decisão que só ajuda a tornar o personagem mais assustador.
O grande problema reside na técnica de animação. Ainda que a equipe do diretor Jay Oliva tenha conseguido preservar o traço animalesco de Miller, os desenhos ganham vida de forma robótica e quase amadora; reparem que, muitas vezes, os personagens “congelam” e até perdem a habilidade de piscar. Os movimentos labiais também pecam pela artificialidade e quase transformam a produção em experimento desengonçado de dublagem.
É bem improvável que vejamos uma adaptação cinematográfica integral de Batman – O Cavaleiro das Trevas nos cinemas (o confronto com o Homem de Aço está chegando, mas…), pelo menos não num futuro próximo. Até o dia chegar, esta animação faz jus ao clássico dos quadrinhos.
Obs: As animações só encontram-se à venda separadamente.
Batman: O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight Returns, 2012/2013 - EUA)
Direção: Jay Oliva
Roteiro: Bob Goodman, baseado na obra de Frank Miller
Elenco: Peter Weller, Mark Valley, Michael Emerson, Ariel Winter, David Selby, Wade Williams, Greg Eagles
Gênero: Ação, Aventura
Duração: 160 min (2 partes)
https://www.youtube.com/watch?v=NETiYgvAH7c
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Crítica | Batman Begins - A história de origem definitiva
Não é fácil ser o Batman nos cinemas. Certamente um dos personagens que passou por mais transformações ao longo de suas encarnações que vêm desde a década de 60, a icônica criação de Bob Kane e Bill Finger enferrujava em um limbo cinematográfico após o fiasco de sua última adaptação. De uma série de TV camp para uma versão gótica com Tim Burton, o Batman acabara nas mãos de Joel Schumacher, que foi responsável por alguns dos piores e mais vergonhosos momentos de toda a existência do Cavaleiro das Trevas, que atendem por Batman Eternamente e Batman & Robin.
Mas é irônico. Não fosse o festival de breguice e ridículo promovido por Schumacher, provavelmente a Warner Bros não teria voltado para a direção correta de tom com o personagem, que voltaria a seus tempos de glória novamente quando o cineasta Christopher Nolan embarcasse para um reboot sombrio e realista com Batman Begins, que acabou por ser um dos mais importantes filmes do gênero.
Contando pela primeira vez a origem do herói encapuzado nos cinemas, o roteiro de Nolan e David Goyer concentra-se na figura de Bruce Wayne (Christian Bale), que vê seus pais sendo assassinados em sua frente quando criança e assiste enquanto a cidade de Gotham City é engolida por taxas de criminalidade e corrupção aparentemente irremediáveis. Movido por um ideal de combater a injustiça, Wayne viaja pelo mundo e entra em contato com uma misteriosa Liga de justiceiros, onde iniciará o treinamento que lhe dará a força e conhecimento para tornar-se o vigilante conhecido como Batman e salvar sua cidade das mãos criminosas.
Para bem ou para mal (bem, no caso de Batman), é aqui que começa a história de sombrio e realista. Gotham não é mais uma paisagem expressionista com edifícios sinuosos e designs de Fritz Lang (ainda que as influências estejam ali, de forma mais crível), mas sim uma metrópole real que é castigada pelas lentes sombrias e alaranjadas do diretor de fotografia Wally Pfister. O Batman e todos os seus apetrechos são baseados em tecnologia real, e o filme preocupa-se em gastar alguns minutos para nos explicar como cada um desses funcionam, e até o Batmóvel tem uma justificativa consistente para sua existência - além de esmagar carros e perseguir bandidos, claro.
Até os vilões desse universo são inspirados em algo mais real, com os capangas cartunescos e monstruosos das versões anteriores sendo substituídos por organizações mafiosas e instituições corruptas que representam uma ameaça além de trocar socos. Ou seja, é uma abordagem muito próxima à de Frank Miller em seu Batman: Ano Um. E mesmo quando lidamos com algo um pouco mais fantasioso, como uma toxina alucinógena ou uma máquina emissora de micro-ondas, é tudo novamente muito bem justificado e realizado de forma a pertencer a este universo. O Espantalho, por exemplo, ganha uma encarnação completamente diferente de suas ilustrações nos quadrinhos, sendo um engravatado que veste a tenebrosa máscara para provocar medo nos pacientes de seu hospício e manipular conspirações. É uma ótima caracterização que reflete esse mundo mais realista, além de o Espantalho ser uma escolha certeira dos realizadores para uma trama de origem que se debruça sobre os efeitos e o poder do medo.
Mas o grande acerto é mesmo como Nolan e Goyer lidam com a figura de Bruce Wayne e seu alter ego. Não vemos a figura do Batman até cerca de 1 hora de projeção, e isso porque o roteiro da dupla explora muitíssimo bem o desenvolvimento de sua manifestação vigilante e a criação de um símbolo que vise usar seu medo pessoal de morcegos contra seus oponentes. É uma psicologia simples, mas usada de forma muito eficiente e com uma carga dramática muito acima de outras produções do gênero, de forma que, quando finalmente Wayne traja a ameaçadora roupa de Morcego, entendemos perfeitamente e uma poderosa catarse é sentida. Provavelmente não existe melhor história de origem de super-herói do que a contada aqui.
E muitos créditos devem ser dados a Christian Bale. A forma como o ator constrói um Bruce traumatizado e com uma nítida raiva interna esperando para explodir é sensacional, assim como a forma com que divide a personalidade quase esquizofrênica do sujeito, que transforma sua voz ao entrar na máscara ameaçadora de Batman. A confusão de Wayne também é bem explorada a partir de alguns desentendimentos com seu mordomo Alfred e sua falta de experiência com a vida dupla que sua nova carreira exige, forçando-o a criar a terceira persona de "Bruce Wayne, o bilionário", que vem à tona na excelente cena em que o personagem finge estar embriagado a fim de causar constrangimento em uma festa.
E seguindo à risca o método de Richard Donner no primeiro filme do Superman, Nolan reuniu um elenco estelar para os papéis coadjuvantes. A começar com Michael Caine, que faz de seu Alfred Pennyworth uma figura caridosa, leal e com um senso de humor cínico acertado, sendo a perfeita companhia para o Wayne de Bale. No mesmo padrão, Morgan Freeman surge ótimo como Lucius Fox, responsável pela divisão de engenharia das Empresas Wayne (leia-se, o responsável pelos maravilhosos bat-brinquedos) e Gary Oldman surpreende na figura do incorruptível Jim Gordon.
Liam Neeson ganha a oportunidade de um papel difícil e dúbio na pele de Ra's Al Ghul, cuja relação de mestre e aprendiz com Wayne rende bons momentos e Cillian Murphy impressiona pela frieza e calculismo de seu Jonathan Crane, o Espantalho. Só Katie Holmes que não convence muito como Rachel Dawes, interesse amoroso do protagonista - mas admito também que a personagem não é das melhores escritas. Não foi por acaso a substituição da atriz por Maggie Gyllenhaal na continuação, pelo visto...
Foi aqui também que Christopher Nolan realizou seu primeiro filme de grande escala. Saído dos thrillers Amnésia e Insônia, Nolan se aventura no espetáculo ao manter os pés no chão e seguir a regra do "tudo de verdade". Logo, temos diversas acrobacias, trabalho pesado de dublês, perseguições de carro e até miniaturas. Desde a explosão real de um monastério do Himalaia até o colapso de um trem de monotrilho realizado com impressionantes miniaturas, Batman Begins não decepciona no quesito ação. As cenas com o Batman trazem um bem vindo uso de câmera na mão e montagem agressiva de Lee Smith, compreendendo o fato de que o personagem deve ser uma figura que se mescla com as sombras e que mal pode ser visto durante o combate.
Mais de uma década depois, Batman Begins ainda influencia diversos cantos da indústria audiovisual. É uma aula de como se readaptar um personagem e fazer cinema de quadrinhos com qualidade cinematográfica grandiosa e que transcende o gênero. Por incrível que pareça, era apenas o singelo início de uma trilogia inesquecível e de uma faceta épica de Christopher Nolan que só viríamos ver ser aprimorada ao longo dos anos...
Batman Begins (EUA/Inglaterra, 2005)
Direção: Christopher Nolan
Roteiro: Christopher Nolan e David Goyer
Elenco: Christian Bale, Michael Caine, Katie Holmes, Liam Neeson, Morgan Freeman, Gary Oldman, Ken Watanabe, Cillian Murphy, Rutger Hauer
Gênero: Ação, Aventura
Duração: 140 min
https://www.youtube.com/watch?v=neY2xVmOfUM
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Crítica | Looper: Assassinos do Futuro - Viagem no tempo de forma empolgante e original
“Essa coisa de viagem no tempo vai fritar seu cérebro que nem ovos”, adverte o soturno personagem Abe (Jeff Daniels) em um dos momentos de Looper: Assassinos do Futuro. Quando bem utilizado e compreendido, tal conceito realmente pode intrigar espectadores e surpreendê-los com seus extremos rumos. Escrito e dirigido por Rian Johnson, Looper é um dos melhores exemplares do gênero a sair nos últimos anos.
A trama é ambientada em uma sociedade onde a viagem no tempo só é utilizada por corporações criminosas, quando estas desejam eliminar vítimas, enviando-as 30 anos para o passado (onde é mais fácil “livrar-se de vestígios”) para que sejam executadas por um matador Looper. A situação complica-se quando o looper Joe (Joseph Gordon-Levitt) recebe um alvo inusitado: ele mesmo, que traz uma importante missão do futuro. Paro por aqui para não entregar mais detalhes.
Encontrar uma ideia original dessas é muito raro. Mais improvável ainda é vê-la funcionando, mas o pouco conhecido Rian Johnson (além deste novo filme, seu currículo no cinema traz A Ponta de um Crime, Vigaristas e alguns dos melhores episódios de Breaking Bad) faz um trabalho espetacular por trás das câmeras. Sua mise em scéne é inteligente e engenhosa e usufrua de recursos visuais cada vez menos presentes no Cinema blockbuster; reparem nos indícios sutis que comprovam a identidade do vilão Rainmaker: temos uma máquina de irrigação molhando uma plantação ou o quadro que traz uma colheita com nuvens carregadas no céu durante a cena do interrogatório com Sara (Emily Blunt). Outro bela observação é o movimento sutil que a personagem de Blunt faz na dobra de seu vestido, deixando bem clara suas intenções.
Tais detalhes comprovam a competência de Johnson como diretor – que apresenta também uma excelente mão para a ação – função que desempenha melhor do que como roteirista. A premissa e todo o estudo em cima do protagonista Joe funcionam com eficiência, mas ainda não vejo sentido na presença da telecinese na trama. Aprecio o senso de decepção quanto a seu surgimento (“Quando a telecinese surgiu, todos acharam que teríamos super-heróis, mas acabamos com idiotas que levitam moedas”), mas este surge apenas como um “extra”, sem trazer um valor narrativo importante.
Com o rosto modificado para assemelhar-se a um jovem Bruce Willis, Joseph Gordon-Levitt continua se firmando como um dos melhores e mais carismáticos atores da atualidade. Mesmo que a maquiagem estranhe em diversos momentos, a performance de Levitt nos faz acreditar que este é Willis 30 anos mais novo (reparem no tom com que ele pronuncia “Não vai atirar no outro pé, Kid”) ao mesmo tempo em que não se limita a copiar a performance do colega. E mesmo que apresente um papel coadjuvante, Bruce Willis se sai melhor do que o costume, conseguindo equilibrar o drama de seu personagem com seu invejável talento de protagonizar cenas de ação. Pra fechar, Emily Blunt faz muito mais do que ser apenas “a mulher do filme de ação” e sua força é evidenciada logo durante sua primeira aparição, quando surge cortando lenha, e odesenvolvimento de sua personagem - e a relação com o jovem Joe - é um dos pontos mais inesperados e satisfatórios da narrativa.
Tecnicamente satisfatório e surpreendente em suas decisões, Looper: Assassinos do Futuro é uma grande surpresa em um ano que carece de ideias originais. Explora ao extremo o conceito de viagem no tempo e promete consolidar a carreira de Rian Johnson, um nome que promete trazer boas contribuições à Sétima Arte.
E o Cinema Hollywoodiano anda precisando de profissionais assim, vamos ver o que ele apronta com os novos Star Wars...
Looper: Assassinos do Futuro (Looper, EUA - 2012)
Direção: Rian Johnson
Roteiro: Rian Johnson
Elenco: Joseph Gordon-Levitt, Bruce Willis, Emily Blunt, Jeff Daniels, Paul Dano, Noah Segan, Pierce Gagnon
Gênero: Ficção Científica, Aventura
Duração: 113 min
https://www.youtube.com/watch?v=2iQuhsmtfHw