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Crítica | The Crown – 2ª Temporada

A década de 2010 tornou-se uma das melhores para a cultura britânica. Não apenas pela emergência de múltiplas histórias da decadente nobreza anglo-saxônica e de suas peculiaridades sociais, como Downton Abbey, mas também pela retratação humanizada de uma das figuras mais controversas da história monárquica do Reino Unido – a da Rainha Elizabeth II. Em The Crown, uma das maiores joias do panteão Netflix, sua apresentação para um público acostumado ao estigma superficial da governanta é qualquer coisa menos convencional, mergulhando profundamente em sua vida pessoal, dissertando acerca de seus problemas íntimos e de sua condição como mulher tradicionalista dentro de um mundo bombardeado por drásticas e constantes mudanças.

Se a primeira temporada da série já marcou história, principalmente por ser uma das produções mais caras do serviço de streaming, o novo ano parece ter passado por um processo de lapidação extrema em que os aparentes erros foram completamente exterminados, varridos para debaixo da imensa tapeçaria da família real. Aqui, a fotografia que outrora poderia dar os ares de panfletária, opta por algo mais intimista, ao mesmo tempo em que preserva a grandiloquência e a majestuosidade dos cenários reais – Abadia de Westminster, Palácio de Buckingham, entre outros. Mas é claro que essa estética pura e emocionante não poderia atingir sua potencialidade máxima sem a ajuda de atuações soberbas.

Claire Foy, ganhadora do Golden Globe e do SAG Award de melhor atriz, retorna pela última vez como a monarca, numa segunda década de governo que, diferente da primeira – perscrutada por inúmeros nomes que tentavam derrubar sua credibilidade e taxá-la como inapta a ocupar o trono -, agora tem que lidar com a fragmentação da identidade humana. A narrativa se inicia em um tenso momento entre Elizabeth e seu marido, Philip (Matt Smith), também conhecido como o Duque de Edimburgo. Além do confronto ideológico entre as duas partes da relação – uma por se sentir infantilizado pelo poder nominal que a esposa carrega, outra por perceber que o pensamento de seu companheiro não condiz com o que prometera cumprir -, ambos tentam salvar o casamento da iminente ruína.

Primeiro, é necessário relembrar que o divórcio dentro da família real não é uma opção. Afinal, buscando princípios dogmáticos que remontam a relação de vassalagem do Estado pela Igreja da Idade Média, o rei e a rainha emergem como símbolos administradores que possuem a tarefa divina de manter a pacificidade de seu povo e garantir a estabilidade socioeconômica. Partindo desse princípio, que inclusive indica uma manutenção de valores extremamente ultrapassados à época do governo de Elizabeth, a separação entre a Rainha e o Príncipe seria visto como um escândalo e degradaria uma geração inteira – e até mesmo a própria nação. Não é nenhuma surpresa que ela resolva mandá-lo em uma viagem de um ano em um cruzeiro para cuidar de alguns assuntos da Coroa e permita que esse tempo afastados lhes forneça o necessário para voltar aos trilhos.

A priori, essa investida pode parecer superficial demais para uma narrativa com os moldes a que somos apresentados. Mas conforme os episódios se desenrolam, nota-se uma clara necessidade dessa aparência familiar e mais íntima e que dialogue nas mais diversas instâncias com as crescentes forças externas que ameaçam a força do governo e da própria figura de Elizabeth. A partir do final da II Guerra Mundial, o mundo tornou-se flagelado ao extremo, acentuando as diferenças outrora ideológicas e que, a partir do confronto armado, viria a se configurar como uma rixa histórica. A figura de Adolf Hitler é constantemente mencionada para deixar claro o ponto de vista liberalista e anti-nazista da Coroa britânica. Entretanto, mesmo com os inúmeros embates, progressos e involuções, uma figura de importância inenarrável permaneceu confinada em seus aposentos, alheia à chegada da modernidade e ao abandono dos princípios pré-Grandes Guerras, pautados no respeito, na submissão e na reverência: a própria Rainha.

Foy consegue transparecer de forma indiscutível os temores pelos quais a governante passou em uma de suas épocas mais turbulentas, mantendo a classe e a naturalidade com seus movimentos muito bem coreografados e transferindo a tensão para seu semblante. O crispar mais sutil dos lábios era o suficiente para desmistificar a inalcançável Rainha, retratada com uma expressão blasé por seus críticos mais ferrenhos. Em outras palavras, a monarquia, tão adorada por grande parte da comunidade inglesa, permanecia estagnada perante uma sociedade em exponencial progressão: não é à toa que a figura de Lorde Altrincham a.k.a John Grigg (John Heffernan), um jornalista apagado pelo sensacionalismo da imprensa que, apesar das feições vilanescas e de seus atos de humilhação, foi um dos maiores contribuintes para a reformulação dos ideais da Coroa, incluindo a aproximação de Elizabeth II para com seu povo e da extinção do abismo social instituído pela própria família real para se afirmarem como superiores.

É interessante como a composição imagética também segue essa “evolução forçada” da Rainha. Nos primeiros episódios, ainda que a luz dura do sol consiga penetrar os escuros aposentos do Palácio, os personagens permanecem amalgamados à própria arquitetura secular, como se pertencessem e tivessem vida a partir das fortes estruturas da monarquia medieval, sem capacidade de agirem por conta própria e instaurar mudanças necessárias. Conforme essa visão se amplia e Elizabeth e seu Parlamento começa a enxergar “fora da caixa”, os corpos se tornam mais delineados e dentro de uma clara distinção de planos. Em outras palavras, as icônicas figuras retomam seu poder sem tomá-lo de modo tirânico, mas sim abraçando os acontecimentos que os cercam.

Outra narrativa que funciona como ápice para a segunda temporada é a que diz respeito à irmã mais nova da Rainha, Margaret (Vanessa Kirby). Se seu arco no ano de estreia da série já era visto com olhares de pena e compaixão, a tragédia que cerca sua vida apenas aumenta. Afinal, a Princesa foi privada de casar-se com o homem que ama, o capitão Peter Townsend (Ben Miles), e resolveu afundar-se num solilóquio adornado com bebidas e cigarros para afogar suas mágoas. Sua personalidade devassa e rebelde entra em constante conflito cênico com a irmã, seja na representação imagética – roupas mais sensuais e de caimento ousado para Margaret, trajes mais andrógenos e “respeitosos” para Elizabeth -, seja nos ácidos diálogos que compõe seus ocasionais almoços.

As coisas mudam de forma brusca quando, durante uma pequena festa em que a Princesa consegue se despir do título que carrega consigo por onde vá, ela conhece o irreverente Antony Armstrong-Jones (Matthew Goode), fotógrafo pelo qual acaba se apaixonado. O desenvolvimento de sua relação pode até ter sido rápido, mas devemos nos lembrar que os dez episódios componentes da segunda temporada cobrem um período de uma década e devem ter um ritmo próprio para não caírem na monotonia. De qualquer forma, observar o início, o meio e a conclusão não-definitiva desse romance é uma obra de arte poética que resgata montagens de longas como Cidadão Kane e Casablanca – uma releitura mais sensual do classicismo cinematográfico.

Como se não bastasse sua grandiosidade, a série também tem o poder de mudar de tom sem toques bruscos. Em Vergangeheit, a narrativa épica fecha-se em uma bolha ao mesmo tempo íntima e vanguardista por revelar segredos que, à época, poderiam trazer uma vergonha milenar para a família real. De forma didática e nem um pouco pedante – muito pelo contrário, provando-se promissora e digna de ovações -, a narrativa gira em torno de documentos oficiais do fim da II Guerra Mundial que envolviam a figura já esquecida do Duque de Windsor, David (Alex Jennings), o qual renunciou ao seu cargo de Rei para ficar com a mulher que amava, sendo martirizado pelo egoísta abandono à nação.

The Crown era uma relíquia a ser admirada; agora, tornou-se um artefato envolvente e perscrutado por mistérios e histórias não contadas que devem sim ser ouvidas com a mais profunda atenção, não apenas para conhecimento e apreciação própria, mas sim para compreender-se uma perspectiva muitas vezes estigmatizada de uma família tão “normal” – em seus limites, é claro – quanto qualquer outra.

The Crown – 2ª Temporada (Idem, Reino Unido, Estados Unidos – 2017)

Criado por: Peter Morgan
Direção: Stephen Daldry, Benjamin Caron, Philippa Lowthorpe
Roteiro: Peter Morgan, Tom Edge
Elenco: Claire Foy, Matt Smith, Michael C. Hall, Victoria Hamilton, Vanessa Kirby, John Lithgow, Nicholas Rowe, Pip Torrens, Jeremy Northam, Ben Miles, Billy Jenkins, Matthew Goode
Emissora: Netflix
Episódios: 10
Gênero: Drama Histórico
Duração: 45 min.

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Publicado por Thiago Nolla

Thiago Nolla faz um pouco de tudo: é ator, escritor, dançarino e faz audiovisual por ter uma paixão indescritível pela arte. É um inveterado fã de contos de fadas e histórias de suspense e tem como maiores inspirações a estética expressionista de Fritz Lang e a narrativa dinâmica de Aaron Sorkin. Um de seus maiores sonhos é interpretar o Gênio da Lâmpada de Aladdin no musical da Broadway.

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