Mais uma vez a Disney aposta em filmes baseados em seus brinquedos temáticos de seus parques gigantescos. Porém, ao contrário de Piratas do Caribe que conseguiu se sustentar com uma ótima história, direção e atuação, Tomorrowland: Um Lugar Onde Nada é Impossível de Brad Bird não consegue absolutamente nada disto. A proposta é ótima – falar de utopias enquanto Hollywood aposta nos sempre rentáveis filmes de apocalipse ou de distopias – além de ter sido um projeto importantíssimo para Walt Disney que pensava em Tomorrowland como um projeto viável e possível de planejamento urbano. Pena que, provavelmente, ele sairia bem decepcionado com o resultado final do filme.
O longa começa com um verdadeiro tiro no pé: o famigerado uso da quebra da quarta parede – quando o personagem se dirige diretamente ao público ignorando o aparato cinematográfico. Aqui o uso da técnica é bem alegórico, a justificativa final é rasa e, pior, quando é apresentada, não encaixa com o começo do filme. Depois de muita conversa e irritantes interrupções, a história progride.
O pequeno John Francis Walker viaja até a World Fair de 1964 a fim de apresentar sua nova invenção. Porém, ele não consegue surpreender Nix, um dos jurados da feira e acaba reprovado. Athena, entretanto, uma misteriosa garota que acompanha o homem, dá um broche de presente para John, pois enxerga potencial nele. Esse broche serve como portal para a dimensão futurista e próspera de Tomorrowland. Passam-se os anos e Casey, uma sonhadora otimista, se depara com outro broche único que a convida para a cidade utópica. Encantada com o que presenciou, a garota se lança em uma jornada para encontrar alguém que possa leva-la até a terra prometida. E esse alguém é justamente John Walker, agora já adulto e cheio de rancor e mágoa com o lugar que já foi seu lar, além de ter ciência de um terror que afetará o mundo inteiro em pouco dias. Entretanto, Casey pode ser a peça que faltava para ajudar em sua redenção e livrar a Terra de um período sombrio.
O roteiro, do inconstante Damon Lindelof e Brad Bird – diretor do filme, é uma tristeza em diversos pontos. Primeiro, seguindo a tendência rasteira de muitos roteiristas de Hollywood, o desenvolvimento de personagem vai para o lixo – algo que a Disney não fazia. Segundo, o filme sofre com a famigerada síndrome do último ato – apressadíssimo, atropelando a lógica construída até então. Terceiro, quanto mais se pensa na história e suas conexões, mais se percebe que muitas coisas não fazem sentido. Quarto, a legitimação do antagonista já foi usada há um mês pelo vilão de Vingadores: Era de Ultron, filme que também pertence à Disney.
Infelizmente os personagens são rasos. Sem exceção. Os únicos que tem uma pitada de complexidade são o John Walker de George Clooney e a jovem Athena, interpretada por Raffey Cassidy. A relação entre os dois é algo difícil de lidar e até polêmico. Trata-se de um romance impossível por motivos que não posso revelar, pois pode comprometer a sua experiência caso queira se arriscar a ver o filme. Entretanto, eu senti, por mais justificado que o conflito amoroso seja dentro do roteiro, uma pedofilia velada, oculta ou suprimida durante algumas passagens do e principalmente no clímax do filme – a encenação não ajuda também. Como disse, esse arco do relacionamento é algo extremamente complicado e muita gente pode interpretar de maneira agravada. Simplesmente do modo que foi apresentado, não ficou legal. Passou bem longe, aliás.
Sim, Hollywood e o público clamam por um romance em seus filmes, mas não algo que possa abrir uma margem de interpretação como esta, afinal a sugestão da pedofilia é presente. O excelente e clássico O Homem Bicentenário explorou um romance que passava por diversas fases da vida sem cair nesse limbo moral e ético. Bastava um clichê para resolver a polêmica. Implorei para que alguma solução rasteira surgisse, porém, nada acontece. Me atenho a isto neste caso por se tratar de um filme da Disney – se fosse uma produção mais adulta com um gênero diferenciado e que tivesse função narrativa relevante, o julgamento seria bem diferente.
O problema reside justamente porque o estúdio é reconhecido por seus filmes família e animações infantis. Apostar em uma característica tão fora de contexto com o resto de suas produções é um erro crasso. Simplesmente não adiciona nada para o filme e pode virar uma mancha em sua história.
Resumindo, nunca vi a Disney errar tanto ao utilizar uma criança na narrativa de seus filmes como neste caso.
A protagonista Casey Newton, vivida pela efusiva Britt Robertson, torna a jornada mais enfadonha. A escolha da garota para ser a heroína nunca é satisfatoriamente justificada. Ela é apenas “especial”. Ponto. É isso que o roteirista martela diversas vezes em muitas cenas. Aliás, os diálogos são redundantes e repetitivos, característica de Lindelof. Você vai se deparar com muitas discussões parecidíssimas entre John e Casey durante a metade do filme para o final. Aliás, outro erro é apresentar George Clooney depois de mais de uma hora de projeção acompanhando outros personagens ou Casey que não conseguem sustentar seu interesse até lá. Quando finalmente Clooney aparece, o filme ganha algum vigor até ele cair no mesmo marasmo de desenvolvimento. Completando, Lindelof insiste nos clichês. Walker é o velho amargurado reclamão. Casey é a sonhadora utópica. E Athena é uma mistura de Hit-Girl com Pequenos Espiões.
Já preso com personagens que simplesmente não adicionam nada ou ajudam pouco para ganhar sua empatia, ainda recebemos de brinde um bolo de história que traz uma mensagem tirada diretamente dos livros O Segredo de Rhonda Byrne. Lindelof também pouco se importa em agregar algum conteúdo a mitologia desse filme. Tomorrowland é um lugar onde nada tem história. Nunca conhecemos de fato a utopia, como ela surgiu, sua cultura, sua política, o método de vida de seus habitantes, etc. Aliás, passamos mais tempo de tela fora da cidade do que dentro. Outra bola fora. Engraçado como um filme que se vende como inovador sustenta boa parte do segundo ato em uma típica perseguição de mcguffin boboca.
O filme também é meio esquizofrênico em relação ao seu didatismo. Por exemplo, em uma mesma cena, Walker reclama que não vai explicar nada para Casey. Um minuto depois, logo está ensinando tudo à garota. Isso é constante no longa. Explicar nada para depois soltar uma verborragia infinita.
O último ato é o que mais sofre com isso, pois ele não encaixa em diversas formas com o que foi apresentado até então. A Tomorrowland de outrora não corresponde com a cidade apresentada aqui por um motivo que não faz sentido dentro do universo da utopia, já que um diálogo deixa isso claro. Lindelof também não consegue achar alguma lógica para o conflito final. A resolução é totalmente estúpida e põe em cheque a escolha de Casey como heroína, afinal para que uma otimista quando um simples John Mclane poderia resolver a situação? Difícil aceitar que Walker, apresentado como um garoto pródigo, não teria sacado a solução do problema logo de cara. Por que a protagonista que não apresenta nada de extraordinário é convidada para a utopia de pessoas extraordinárias? Por que o epílogo do filme não é coerente com a proposta de reforma de Tomorrowland? Por que levantar algumas características interessantes e jogar tudo no lixo no final?
Se eu continuar me atendo ao roteiro, este texto não terá fim. A maior culpa de Tomorrowland ser um fracasso paira sobre o péssimo roteirista que Lindelof é. Brad Bird tenta ser péssimo, mas felizmente atinge a mediocridade em sua direção – algo inaceitável para alguém com tanto talento como ele.
Ele continua com sua câmera bem movimentada que conta os detalhes do cenário para o espectador – algo que valoriza muito o design de produção do longa. Além disso, ele também a usa como função narrativa. Exibe características que justificam conflitos posteriores. E trabalha muitíssimo bem a questão do ponto de vista e de escuta graças às criativas transições de cena geradas pelo broche. Entretanto, mesmo com esse trabalho genial de câmera e enquadramentos belíssimos, Bird não consegue tirar seu filme do marasmo. As sequencias de ação simplesmente não empolgam. Talvez por conta de muitas coreografias serem parecidas com às de filmes lançados há pouco ou que já possuem forte imaginário popular como Os Vingadores e Monstros S.A. – algo completamente estranho à Brad Bird porque ele já dirigiu filmes explosivos como Os Incríveis e Missão Impossível: Protocolo Fantasma.
Ou simplesmente porque é difícil ter empatia pelos personagens.
Bird consegue entregar pelo menos duas – talvez três, cenas que são sim extraordinárias. Uma foi prejudicada por conta da estratégia de marketing completamente tonta da Disney – foi exibida em diversos cinemas como uma prévia do filme, logo, acaba perdendo muita força quando é (re)exibida. Ela apresenta diversas bugigangas de Walker e torna o universo mais rico com as armadilhas a la Esqueceram de Mim. A outra é um plano sequência magnifico que apresenta Tomorrowland.
Outro ponto positivo é como o diretor consegue conciliar muito significado imagético dentro da sua encenação. Seja nos campos de trigo – representação máxima da prosperidade e alegria – que circundam Tomorrowland e no próprio design clean e futurista da cidade. Mas, por outro lado, ele também prefere prejudicar seu filme com escolhas estéticas que claramente estão fadadas ao envelhecimento da linguagem como o uso de drones, pixelização de imagens ou ao surrealismo de algumas quedas ou porradas que os personagens levam e, claro, ao já envelhecido Mickey mousing – quando a trilha musical se comporta como um efeito sonoro para a cena. Infelizmente, ele ainda consegue errar mais no clímax. Em um diálogo feito para comover o espectador, Bird insiste em quebrar a seriedade da cena com modulagens de voz e expressões faciais estúpidas – já não bastasse a cena abordar novamente o romance bizarríssimo de Walker e Athena.
Ainda em busca de Pasárgada
Tomorrowland é outro fracasso que acumula na cota das superproduções de verão da Disney. Foi assim com John Carter e também com O Cavaleiro Solitário – pelo menos esses não arriscaram nenhuma polêmica.
Além do evidente problema de marketing internacional que eles sofrem, os filmes também não são incríveis. Pior ainda é notar que O Cavaleiro Solitário é muito mais divertido e espetacular que Tomorrowland. Algo notavelmente grave já que um baseia seu espetáculo de ação em uma diegese de velho oeste enquanto esse se baseia num universo futurista repleto de possibilidades. Um filme família que não consegue divertir. Isso sim que é ironia.
É triste notar o potencial que esse projeto tinha e compará-lo com o resultado final mediano. Acredito que até mesmo uma lapidada na montagem teria melhorado consideravelmente o filme. Entretanto, temos alguns vislumbres bons aqui. A boa atuação do elenco, a fotografia sempre maravilhosa de Claudio Miranda, a trilha instrumental belíssima de Michael Giacchino e o bom design de produção. Entretanto, tudo isso não sustenta um filme. Lindelof conseguiu minar uma produção inteira com sua escrita superestimada. E Brad Bird entregou algo aquém de seu potencial. Pode ser que as produções live action da Disney precisam de uma dose da criatividade de John Lasseter – ninguém mais que o responsável por reestruturar o departamento de animações da Disney devolvendo boa dose de respeito e dignidade que foi perdido pelo estúdio em meados e durante os anos 2000.
Realmente, Tomorrowland pode ser um lugar onde tudo é possível, mas não foi desta vez que o filme conseguiu cumprir a premissa de seu título. Melhor se ater ao parque de diversões.
Tomorrowland: Um Lugar Onde Nada é Possível (Tomorrowland, EUA – 2015)
Direção: Brad Bird
Roteiro: Damon Lindelof e Brad Bird
Elenco: Britt Roberston, George Clooney, Hugh Laurie, Raffey Cassidy, Tim McGraw, Kathryn Hahn, Keegan-Michael Key, Judy Greer
Gênero: Aventura
Duração: 130 min