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Artigo | Berlim: Muro, túneis e filmes

Ao viajante que conhece outras capitais da Europa, como Paris e Roma, travar conhecimento com Berlim é pouco impactante, até mesmo decepcionante, no início. Em alguns lugares, como na Potsdamer Platz, a sensação é que você está em uma cidade de um tigre asiático ou China. Não há prédios antigos, o que se vê é uma profusão de prédios envidraçados e espaços abertos. A arquitetura moderna, sem estilo, sem alma.

Conhecendo-se mais a fundo a cidade é possível encontrar bairros charmosos. Mas não há comparação com as outras capitais mencionadas e, mesmo na Alemanha, Leipzig, por exemplo, é uma cidade que te faz voltar mais no tempo que Berlim. Seria então a capital alemã uma cidade sem atrativos para um viajante?

Definitivamente não. A cidade tem vida, uma animação maior que na maior parte das cidades europeias, um pouco como Londres. Mas o mais interessante é que, ao se caminhar pelas ruas, a todo instante você é surpreendido por restos, painéis e textos sobre seu famoso muro, talvez tua triste e mais destacada característica.

Muro: contextualização

Para entender o Muro, é necessário recuar até a Segunda Guerra Mundial. Depois de um início fulminante, em que boa parte do mundo começou a perder a esperança de triunfo dos países livres (com a exceção sempre honrosa de Churchill), a Alemanha começa a ceder no front oriental e ocidental. Nessas operações, a Alemanha é bombardeada pesada e severamente. É isso que explica o fato que Berlim e muitas outras cidades da Alemanha parecerem tão modernas. Elas foram praticamente reconstruídas. Há fotos por cidade a cidade de Berlim que demonstram a situação no pós-guerra. A mais impressionante de todas é ver o Tiergarten, aquele imenso parque urbano cravado no meio da cidade, como um imenso campo não de árvores, mas de escombros. Uma pálida ideia do que foi o bombardeio pode ser vista na Igreja Memorial Kaiser Guilherme, uma igreja preservada no modo como ficou após os ataques. No cinema, há bons registros da cidade no filme Alemanha Ano Zero (Roberto Rosselini, 1948).

Uma vez derrotada, e com o avanço dos exércitos aliados, pelo Oeste, e pelo soviético, a Leste, dentro do território alemão, o país se viu dominado agora por interesses diversos. Ex-aliados estratégicos, EUA, Inglaterra, França e URSS agora se veem com interesses diversos. Os três primeiros querendo restaurar, via democracia, uma Europa destruída; a URSS querendo ampliar seu domínio político e econômico. O general Patton e Churchill, percebendo os perigos que a URSS representavam, pensaram em defenestrá-la da Europa. Não foi o que ocorreu. Interesses acomodados, os países do Leste Europeu ficaram sob o jugo de Stálin e a Alemanha dividida entre os dois blocos. Berlim, que é uma cidade mais a Leste, estaria em território soviético, mas também acabou ficando dividida. O filme Test for the West: Berlin (Franz Baake,1962), que ganhou um Urso de Prata em 1962 no Festival de Berlim, dá uma ideia das complicações políticas que os russos impuseram no pós-guerra e a situação da cidade. Pode ser visto aqui:

Desse modo, Berlim virou uma cidade absolutamente atípica. Sistemas monetários diferentes, polícias diferentes, administrações diferentes e um só povo.  Como era de se esperar, a parte ocidental, com o passar dos anos, começa a destacar-se por sua pujança econômica, principalmente depois de Ludwig Erhard, um político e economista liberal, começar a desamarrar a economia alemã. Nos anos 50 a economia alemã ocidental engrena. Como o povo se interessa muito mais por dinheiro que por ideologia, os cidadãos começam a afluir para a Berlim Ocidental. Aquele pedaço de terra vira uma ilha de prosperidade volteada pelo atraso oceânico ao seu entorno.

Como um burocrata comunista nunca fica confortável ao ver a felicidade alheia, a RDA (República Democrática Alemã, socialista) tem uma ideia inimaginável: construir um muro em torno da Berlim Ocidental. Sim, é isso mesmo. Os muros e muralhas, que defendiam as cidades na Antiguidade e na Idade Média, são novamente utilizados. De uma forma original, agora: o Muro não serviria para o inimigo não entrar, mas sim para o “amigo” não sair. Em resumo: um cidadão da Berlim Oriental que quisesse ir à Ocidental não poderia mais fazê-lo como normalmente se usava. Agora tinha o Muro, e ele teria que passar por postos de controle. Marx, que sempre teve certa fascinação pela Idade Média, foi de certa forma homenageado pelos discípulos alemães, com uma solução medieval às avessas em pleno século XX.

Como sempre, a canetada de um burocrata causa situações bizarras. Havia pessoas que moravam na Berlim socialista, mas que eram empregadas na capitalista. Casais que moravam em cada um dos lados, assim como famílias. Do dia pra noite, um Muro foi colocado entre eles. A divisão começou tímida, apenas fechando a ruas com arames farpados e barreiras.

O povo, entretanto, sempre dá um jeito em proibições arbitrárias. Se não pode pela rua, as janelas das casas que davam para o lado ocidental viraram palco de fuga. Bombeiros esticavam redes para que as pessoas pulassem das janelas mais altas (o bairro Mitte é pleno de prédios de altura média, 4 ou 5 andares, e era dividido pelo Muro) e caíssem em segurança do lado  ocidental; alguns abnegados achavam pontos de fragilidade nos arames farpados e varavam-no. Quê? Isto está soando feliz demais, vamos cimentar as janelas e melhorar as barreiras, ataca o burocrata. Mas as barreiras ainda são transpostas.

Então vamos realmente fazer um Muro de verdade, de alvenaria. Mas não é que tem uns traidores que jogam seus carros contra os muros, quebrando-o e abrindo espaço para a fuga? Façamos outro tipo de muro (se você der um passeio pela East Side Gallery, um muro ainda preservado em Berlim onde há pinturas da época, você pode checar o último tipo de muro que foi construído, e que era imune à batida de um automóvel) e criemos um nowhere land à sua volta. Passou por ali, fogo nele! Na Bernauer Strasse há um interessante museu a céu aberto, que preserva a área onde ninguém poderia pisar. Esta chegou até a ser preenchida com areia, de modo que ficassem registradas quaisquer pegadas de alguém que ousasse chegar perto do Muro. Além dos cães que ajudavam na fiscalização.

Uns reagiam a essa situação com humor, talvez a válvula de escape mais comum nas situações desastrosas. Os alemães da RDA diziam que Adão e Eva eram de Berlim Oriental: tinham que dividir uma única maçã, não tinham roupas e faziam com que acreditassem que viviam em um Paraíso. Reagan, que colecionava piadas sobre a URSS, conta sobre três cachorros conversando. O cão americano dizia que latia e conseguia um pedaço de carne. Ao que o cachorro polonês responde: – O que é carne? Indignado, o terceiro cachorro, russo, dispara: – O que é latir?

Mas, além do humor, outros pensamentos corriam. O povo senta, cogita e conclui que fugir pelo Muro realmente virou uma tarefa quase impossível. Mas privar a liberdade leva a soluções drásticas, criativas. Impossível por cima? Possível por debaixo.  E aqui na verdade começa o cerne do nosso texto. Por cima do papel. E pelos túneis de Berlim.

Túneis

Então as pessoas começam a cavar túneis que atravessassem o muro por baixo, saindo de alguma casa da Berlim Ocidental, passando pelo terreno vazio e indo terminar em alguma outra casa na Berlim Oriental. Em geral, a escavação começava pelo lado ocidental, pois era mais seguro para quem o intentasse.

É importante frisar que o Muro não foi algo digerido facilmente pelos berlinenses. Para quem é de fora, as imagens das pessoas, em 1989, subindo, quebrando e comemorando no Muro podem soar normais, algo festivo, com a Nona Sinfonia de Beethoven tocando, mas para eles o significado era mais oculto e vingativo.

As manifestações contra o Muro eram comuns e, em boa parte das vezes, opunha o povo contra os burocratas, não só russo-alemães orientais como aos aliados. É difícil julgar política externa, pois ela é provavelmente a maior arte do possível que há. Isto posto e entendido, nem sempre somos obrigados a concordar ou seguir. E foi mais ou menos esta a reação do povo alemão. Muitas vezes, o governo aliado não via com bons olhos as tentativas de fugas e construção de túneis por parte da população. Havia dois temores.  Primeiro, de que Berlim fosse invadida pelos comunistas. Se você olhar em um mapa (esse mostra todo o muro que rodeava a Berlim Ocidental dentro da RDA : https://www.google.com/maps/d/viewer?hl=de&mid=19OMZvuXI0bNyCy-tEzsEglB7UmY&ll=52.51619108416378%2C13.302673689229936&z=10), é possível entender que realmente Berlim Ocidental era um enclave de capitalismo inteiramente rodeado por socialismo. Era uma situação geográfica extremamente frágil.

Não podemos desmerecer essa preocupação, que fazia muito sentido. O segundo, mais polêmico, era que os aliados não queriam provocar nenhum incidente que atrapalhasse o status das relações entre os dois blocos. Majoritariamente, essa era a posição americana da administração Kennedy.

Na verdade, era uma decisão muito similar à de Chamberlain no período que antecedeu à Segunda Guerra Mundial, tão criticado por Churchill, no famoso “entre a desonra e a guerra, escolheste a desonra, e terá a guerra!”. Mais ainda: a História acabou por provar que toda a vez que o Ocidente não cedeu à URSS, ele se saiu bem. O próprio Kennedy, quando da instalação dos mísseis em Cuba, ameaçou e levou; assim como Reagan, em uma estratégia genial, investiu na competição militar, ignorando a Détente de Nixon e tendo, como resultado, a erosão do sistema soviético.

Mas não importa se os burocratas estivessem errados ou certos. O que importa é que o povo sentia a questão de outra maneira. Os alemães iam da euforia quando achavam que o Ocidente ia fazer algo por eles, como quando JFK diz o famoso “Ich bin ein Berliner”  (“Eu sou um berlinense”) em um palanque e é ovacionado, até a decepção com a resposta de um soldado no Checkpoint Charlie (uma passagem entre as duas Berlim controlada pelos EUA, que é um ponto turístico muito famoso na atual), que decepcionou dizendo “Nicht unser bier” (“Não é problema nosso”)  quando os ocidentais viram um oriental ser alvejado no Muro e correram para pedir ajuda. Esta história é tão comovente que gerou vários protestos.

Peter Fechter, um pedreiro, tentara pular o muro junto a um amigo. Esse conseguiu, mas Fechter  (https://en.wikipedia.org/wiki/Killing_of_Peter_Fechter ) foi alvejado, por trás,  pelos soldados comunistas, que sequer prestaram socorro imediato, deixando-o ficar gritando por ajuda e sangrar praticamente até a morte, por longo tempo.  Perto do ocorrido foi se juntando uma multidão revoltada, primeiro arremessando itens contra os policiais da RDA, depois contra sua própria polícia enviada para dispersá-los e, por fim, contra as forças aliadas americanas, chamadas pelos protestantes de covardes.

Há, até hoje, um memorial em Berlim em honra ao jovem Fechter. “Estava com as mãos protegendo seus olhos e olhou para baixo, para o pé do Muro. E viu, caída, morta…. o rosto virado para o lado e com os cabelos sobre o rosto”. O trecho não se refere a Fechter, mas é o final do livro O Espião que saiu do Frio, de John Le Carré, que passa sua trama na cidade dividida, envolta a espiões e Guerra Fria, com a tensão entre os dois lados do Muro. A Arte imita a vida. E mostra que o que ocorreu ao pedreiro era algo relativamente corriqueiro.

Assim o Muro, malquisto e indigesto, teria que ser atravessado. Se por cima era mais e mais difícil, a solução passou a ser pelo solo. Houve várias tentativas, algumas de sucesso, outras com resultados ruins. A que nos interessa em questão foi muito bem-sucedida. Ela foi fruto da indignação das pessoas comuns contra arbitrariedade. Como disse, as pessoas simplesmente não se conformavam com o estado das coisas. A tentativa de fuga frustrada de Fechter e sua comoção geral não seriam em vão. Três estudantes, dois italianos (Domenico Sesta e Luigi Spina) e um alemão (Wolfhardt Schtrodter), indignados pela interrupção de estudo que um amigo comum aos italianos, Peter Schmidt, sofreu com a construção do Muro, resolveram colocar mãos à obra.

Num mundo hoje absolutamente dominado por estudantes de esquerda, é um pouco reconfortante ver que isso nem sempre foi verdade.  Em Berlim, os estudantes se indignavam com aquela situação anacrônica e, desse modo, achar participantes para a empreitada não era difícil. O mais desafiador era evitar, dentre estes, informantes e mesmo espiões, ou ainda que a informação vazasse, visto que a Alemanha Oriental era o país que tinha, proporcionalmente, o maior número per capita de espiões e informantes. O filme A Vida dos Outros (Florian Henckel von Donnersmarck, 2006) dá uma ideia de como era a espionagem da Stasi, a polícia secreta da RDA.  Entretanto, os estudantes eram criteriosos, e a informação nunca vazou.

Os filmes

Por outro lado a mídia, hoje majoritariamente progressista, era muito mais conservadora naqueles anos. A CBS e a NBC, que ouviam os relatos das várias tentativas de cruzar a fronteira e também sobre os túneis que eram ou poderiam se cavados, queriam e disputavam por dar o furo. É neste momento que entra em cena Piers Anderton, jornalista da NBC em Berlim. Ele consegue estabelecer contato com os estudantes e passa a gravá-los, na esperança de lançar um documentário sobre a construção do túnel. O que seria o relato de uma busca pela liberdade acaba por tornar-se um pesadelo burocrático. Mas não nos adiantemos.

Os estudantes, a partir de uma fábrica na Bernauer Strasse (uma das ruas que delimitava o Leste do Oeste), fazem contato para estabelecer uma passagem no Leste, uma casa que ficava do outro lado do Muro. Para tal, seria necessário um muro da ordem de uma centena de metros. Não seria muito para um tatuzão, mas a escavação era majoritariamente feita à mão. Furadeiras foram utilizadas no começo, mas quando entram em solo da RDA os guardas poderiam ouvi-los. Era um trabalho abissal, escavar, retirar a terra e guardá-la. Para escorar o túnel, 20 toneladas de madeira foram utilizadas e o fornecedor nada cobrou, pois era um ferrenho anticomunista.

Depois de muito trabalho, o túnel foi finalmente concluído, e a fuga foi um sucesso. No dia 14/09/1962 vinte e seis pessoas escaparam pelo túnel dos amigos. A família de Peter Schmidt, que desacreditava ter um futuro na Berlim Oriental, agora tinha a possibilidade de um futuro do outro lado.

O trabalho insano de cavar um túnel à mão não se compara ao de se fazer um filme. Mas, muitas vezes, distribuir um filme envolve questões complexas. E o documentário de Piers Anderton e NBC começou a trilhar suas próprias dificuldades. Enquanto o túnel enfrentou inundações, o filme baseado nele se defrontou com os burocratas. A verdade era uma só: eles tinham medo de “provocar” os russos. Principalmente a administração Kennedy, que não tinha uma relação muito boa com a imprensa, diga-se de passagem. Embora não pudesse admitir, o Departamento de Estado, através do seu secretário Dean Rusk, tentou de todas as maneiras boicotar o lançamento do filme. Mas a NBC, ao contrário da CBS, que capitulou frente às pressões (em outro projeto de documentário sobre outro túnel), estava se mantendo firme, tanto do ponto de vista dos seus jornalistas como dos seus executivos.

O governo americano jogava pesado, falando que o filme era contra os interesses nacionais, que era irresponsável e indesejável. Este tipo de atitude não era novidade no governo JFK, pois este sempre tentou intimidar fatos, como no caso da morte de Marylin Monroe, que foi amante dos irmãos Kennedy, e o governo fez de tudo para encobertar o caso, como pode ser visto no livro As Deusas, a vida secreta de Marylin Monroe, de Anthony Summers. Mesmo a eleição de Kennedy é envolta em traquinagens, com a suposta ajuda da Máfia, numa eleição que venceu por pouca margem de votos o candidato Nixon.. A campanha contra o documentário era tão forte que até um crítico da TV do New York Times falava contra o projeto, e continuou o fazendo mesmo depois de ele ser exibido.

Além de toda a questão geopolítica de Berlim, um outro evento complicou ainda mais a questão. Foi a crise dos mísseis de Cuba. Desse modo, o governo americano mais e mais queria evitar desgaste político. Mas a questão central não são os inúmeros problemas de política externa. O problema central é que, muitas vezes, a vontade das pessoas não é atendida pelo Estado. E não há dúvida: as pessoas devem lutar por aquilo que acreditam. Assim, lutar contra a imensa retirada das liberdades individuais, do direito de ir e vir das pessoas que o Muro representava estava acima de qualquer consideração de um burocrata.

Se o governo americano tinha receio de que um documentário atrapalhasse as relações políticas, é seu direito. Mas negar informação, via ameaças veladas e sub-reptícias, ao público, é canalhice. Ademais, visto historicamente, como já dissemos, toda a vez que os EUA enfrentou a URSS ele se saiu beneficiado. Na Crise dos Mísseis, quando Reagan lançou o Programa Guerra nas Estrelas, a URSS sempre capitulou em face de um ato mais enérgico do governo americano. Então, em retrospecto, provocar um inimigo com um reles documentário parece injustificável demais.

O mais curioso era que tanto o governo alemão, quanto o americano,  que estavam contra a exibição do documentário da NBC, ajudavam a fazer propaganda para o filme Escape from East Berlin (Robeto Siodmak, 1962), e obviamente a NBC usou disso como argumento a favor dela.

O filme de Siodmak dá uma boa ideia de como era a questão da fiscalização ao longo do Muro e da vontade de escapar que era do imaginário das pessoas. Tem também a vizinha delatora, entre outros elementos da vida dos cidadãos da RDA. Tem um discurso mais incisivo contra o comunismo. Faz jus, pois foi produzido pela MGM, e Mayer, como pode ser visto no filme Mank (David Fincher, 2020) era outro anticomunista ferrenho. Na ficção as pessoas também escapam, mas as filmagens tiveram problemas.

As tomadas internas ocorreram na UFA, o icônico estúdio alemão responsável por clássicos do Expressionismo. Entretanto, nas externas, contam que os Vopos (Volkspolizei, a polícia do povo da RDA) jogavam fachos de luzes para atrapalhar a gravação, “…de uma maneira  que a luz dos refletores a arco ficavam leitosos e embaçados”. Mais uma vez utilizo do livro do Le Carré, uma ficção, para fazer analogia com uma situação verdadeira.

Mas voltemos ao documentário da NBC. Com a Crise com Cuba evoluindo, aliada aos contatos que a RCA, controladora da NBC, possuía com o governo americano, fez a pressão ficar tão forte que a emissora adiou o lançamento. O jornalista Piers Anderton e Reuven Frank, produtor, ficaram arrasados, temendo que o documentário iria ser suspenso por completo. Entretanto, no dia 10 de dezembro de 1962, um mês e meio depois da primeira tentativa, o documentário foi exibido, com o patrocínio da Gulf Oil. E foi um sucesso de crítica. Com exceção do já mencionado crítico do New York Times, a imprensa foi unânime em ver os valores do filme e teve uma audiência espetacular. A NBC, corajosa, acabou por ter seus esforços recompensados.

Visto hoje, o documentário padece dos problemas dos documentários antigos. A falta de som direto, com depoimentos das personagens, faz com que toda a informação esteja contida na narração, tornando-o didático demais. Mas era desse modo que os documentários eram feitos à época, pois as câmeras autoblimpadas estavam ainda surgindo, o que inviabilizava a captação do som de um modo portátil.

Entretanto, ainda hoje o conteúdo clama mais que a estética. É emocionante ver as pessoas saindo do túnel de encontro às câmeras, um tanto perdida pela tensão, alívio e pelo futuro. Há que se destacar o trabalho de câmera, que foi realizado pelos irmãos Duhmel. Eles tiveram que se esconder em um apartamento na Berlim Ocidental, e com lentes teleobjetivas filmavam a casa por onde os fugitivos iam se dirigir para a fuga. Eles gravam as pessoas chegando, os soldados da polícia oriental em ronda, interagem com a mãe e a filha criança fugitivas. Filma como pode, e não deixa escapar os detalhes. Um trabalho tão bem executado que os produtores agradecem especialmente a dupla no final do documentário.

Além de ponto de filmagem, o apartamento também servia de código aos fugitivos, pois o combinado era que se um lençol branco estivesse pendurado na janela estava tudo certo para a fuga. Caso contrário, era pra voltarem para a casa.

A mãe e criança que saem do túnel são a mulher e filha de Peter Schmidt, o alemão pelo qual os italianos se solidarizaram e tiveram a ideia da escavação. A missão foi cumprida. Schmidt, na festa de confraternização mostrada no filme, canta ao violão, em homenagem aos amigos italianos e ao tempo que viveu na Itália, a música Torna a Surriento, fazendo uma bonita homenagem aos amigos e encerrando o documentário de modo sentimental. Como diz Piers Anderton: – “do que eles devem estar fugindo para se arriscarem assim?”

É curioso como isso tudo hoje soa anacrônico. A mídia moderna é de um progressismo pueril, demonstrando uma leniência com o comunismo de modo servil. The Tunnel fica então como um exemplo de um tempo em que jornalistas, executivos e empresas, como a Gulf Oil, tomavam o ponto de vista do cidadão comum e fazia frente aos governos, apoiando a parte fraca. Não importa se há aspectos econômicos ou não por detrás, o que importa é que o indivíduo, perante o um Estado onipotente, tem o direito de exercer sua defesa e ser ajudado em tal empreitada por entes que, assim como ele, desejem liberdade de ação e econômica.

P.S: Para os curiosos, o filme da NBC pode ser conferido aqui: https://www.youtube.com/watch?v=_aOIhpxBloE&t=2801s .Boa parte das informações sobre a relação da NBC com o túnel foram tiradas do livro Os Túneis, de Greg Mitchell, que por sinal é leitura excelente e instrutiva. 

Adriano Barbuto

Publicado por Adriano Barbuto

Adriano S. Barbuto é diretor de fotografia, professor de cinematografia e gosta de ir ao cinema, ler, ouvir música e assistir óperas. E fazer longas caminhadas.

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