Review | Mafia III

Review | Mafia III

Mafia é uma franquia bem-sucedida que angariou muitos fãs principalmente depois do estrondoso sucesso causado por Mafia II, jogo com uma narrativa intrincada e inteligente, oferecendo um estudo de personagem clássico da jornada sobre a corrupção do espírito humano vinda através do poder. Não somente a história agradava muito, mas também toda a atenção com a jogabilidade adequada e nos minuciosos detalhes com o mapa que recriava uma Manhattan dos anos 1940/50.

Portanto, o lançamento da terceira aventura da franquia era mais que aguardado pelos fãs. Inclusive, os desenvolvedores da Hangar 13 e a 2K Czech impressionaram com o anúncio do game que exploraria uma cidade fictícia inspirada em Nova Orleans em 1968, um dos períodos mais conturbados de uma década sangrenta. Fora o fato de o protagonista ser negro, sofrendo retaliações racistas por todos os lados. Toda a proposta era inovadora e surpreendia muito pela audácia da promessa de ver tudo isso combinado a uma experiência única que os jogos Mafia proporcionam.

Entretanto, a marca maldita desta geração apareceu novamente com o lançamento de Mafia III. O hype falou mais alto e a entrega final se resume em: decepção. E não é qualquer decepção. Um jogador fã da franquia estará se perguntando a partir da segunda hora de jogatina o que raios fizeram com esse jogo. Admito que fiquei espantado com a qualidade inicial entregue aos jogadores. Obviamente, não foi um espanto bom.

Após o game te surpreender ao exibir o formato que sua narrativa será contada – através de três entrevistas em documentários, o choque de um gameplay quebrado já tomava conta. De cara já era possível denotar que o jogo não estava pronto de forma alguma para ser lançado agora em 2016. O quesito gráfico é o que mais incomoda, pois tudo parece datado, sem polimento.

Texturas porcas em baixa resolução preenchem diversos cenários no vasto mapa de mundo aberto de New Bordeaux. Os modelos repetitivos de pedestres, inimigos e subchefes também incomodam. O céu do jogo é um dos mais horrorosos já feitos para mapa aberto com nuvens tão bizarras que fariam artistas impressionistas terem inveja. Até mesmo personagens mais importantes para a narrativa tem expressões pálidas durante diálogos preguiçosos nos trechos in engine, ou seja, que não são formatados previamente em computação gráfica de maior qualidade para os trechos de exibição dos documentários ou das sequências de conversa com Donovan e outras partes de maior peso narrativo. O choque é tão grande que nem parece o mesmo jogo. 

Depois da má surpresa dos gráficos obsoletos e esquisitos, nos concentramos mais na narrativa. Assim como em Mafia II, acompanhamos um veterano de guerra – do Vietnã, no caso, em seu retorno à cidade natal. Lincoln Clay, já um sujeito envolvido com mafiosos, não demora muito para retornar aos negócios escusos de Sal Marcano e seu filho Giorgi. Os três tramam um assalto à reserva federal que é bem-sucedido. Porém, ao retornar ao bar de seus amigos Sammy e Ellis, os Marcano traem Clay, tentando assassiná-lo e destruindo completamente a casa de seus companheiros.

Felizmente, graças ao crânio de adamantium de Lincoln, ele sobrevive já que a bala apenas passa de raspão em sua cabeça. Seu único amigo, padre James, o socorre e recupera Clay enquanto a política americana e os direitos civis da população negra se incendeiam com a morte de Martin Luther King. Saindo do coma, Clay jura vingança decidindo acabar com todo o império mafioso de Sal por New Bordeaux, além de minar o plano do mafioso de construir um cassino.

Mais do que esperada, a narrativa clássica de vingança só é quebrada graças às inserções dos trechos de documentários relatando os eventos do jogo e dos pensamentos de personagens importantes sobre as ações de Lincoln e como ajudaram ele a se transformar no pior pesadelo dos carcamanos. Em especial, os personagens de padre James e John Donovan recebem esse tratamento durante e pós acontecimentos do jogo. O terceiro entrevistado, o detetive federal Maguire só aparece durante as cenas de documentários – um desperdício de personagem que poderia ter surgido na aventura como um policial obstinado a acabar com Clay conforme o protagonista se torna mais poderoso.

Aliás, definindo a narrativa do jogo, ela é rica e consegue te prender graças a obsessão do protagonista em matar tudo e a todos, porém, analisando da forma necessária, trata-se de uma história genérica que tenta fugir do convencional graças a escolha inteligente da cor de pele de Clay. Raramente temos diálogos que os enriquecem como personagens e por mais surpreendente que seja, Lincoln é o personagem mais fraco dentre todos. A jornada obsessiva deixa o personagem redundante e repetitivo, não há outros desejos ou planos para ele: somente a matança. Então, basicamente, ele é o brucutu do cinema dos anos 1980 como Stallone Cobra.

Os outros coadjuvantes têm um pouquinho mais de detalhamento, bom, ao menos em suas introduções. Como Thomas Burke, um homem que luta contra o sofrimento do assassinato de seu filho enquanto tenta conciliar suas operações da máfia irlandesa. Ou Vito Scaletta, nosso protagonista mais interessante de Mafia II que corre risco de ser morto pelos homens de Sal. E Cassandra, a que ganha menos destaque ou relevância dentre os três. Os roteiristas não se dedicam muito a desenvolvê-los após as missões de introdução – o mais afetado é o drama de Burke, que estava se afundando no alcoolismo.

Esses chefes de quadrilha te auxiliam na jornada e, com a escolha inteligente do game design, tem papel ativo na mecânica te fornecendo melhorias em armas, saúde e veículos e outros serviços como subornos, cortes de linhas telefônicas e uma gangue de mercenários para auxiliar nos tiroteios, conforme o lucro de cada um aumenta a cada nova conquista de territórios que você designar para eles após dizimar a máfia de Sal. Detalhe, caso passe muito tempo sem oferecer territórios para os aliados, eles automaticamente tentam trair você – novamente, um uso inteligente da mecânica do jogo.

Em compensação ao quarteto de personagens principais pálidos e sem graça, os coadjuvantes do documentário tem mais personalidade. Padre James consegue cativar pelos testemunhos de ternura, saudade e amargor sobre a vida e amizade que tinha com Clay, além de revelar seu passado denso nas trincheiras da 2ª Guerra Mundial. Já Donovan, o especialista em grampos e inteligência que trabalhou com Lincoln no Vietnã, é o personagem mais funcional – ele que move os objetivos do jogo, além de servir como alívio cômico.

Os animadores e roteiristas se empolgam mais com o personagem oferecendo diversas situações marcantes, assim como diálogos refinados e dinâmicos. Já por serem ligeiramente melhores que o restante, tudo que envolve Donovan te mantém acordado – mesmo que o personagem seja somente estiloso, os roteiristas não dedicam muita coisa no backstory ou na própria relação com Clay. Mesmo assim, Donovan já seria um protagonista muito melhor para essa história.

Até mesmo o racismo que foi tão divulgado como fator decisivo no jogo não se comporta de modo mais incisivo. No mais, é usado como ofensa por alguns pedestres em bairros mais nobres, além de ter um jogo interessante com a polícia que sempre observa Clay de perto quando o avistam. Também é inteligente o modo como os policiais reagem em diferentes bairros: os de concentração negra, o descaso é maior com assassinatos; já se você dirigir de modo perigoso em vizinhanças de elite, a polícia já inicia uma perseguição.

Se ao menos o jogo se mantivesse medíocre o tempo inteiro, Mafia III não teria angariado a fúria de tantos jogadores, mas este não é o caso. Muitos dos problemas bizarros já foram corrigidos, pois o game constantemente encerrava o executável, além dos diversos bugs visuais e de construção que assolaram os dias de lançamento. Um dos mais irritantes era o problema da iluminação dinâmica do mundo aberto, criando sombras e brilhos intensos em questão de segundos como se nuvens colossais voassem em alta velocidade encobrindo o sol. Ainda há problemas de brilho e oclusão ambiental em diversas partes do jogo, só que estão menos gritantes aos olhos agora.

Porém, em um videogame não há nada mais importante do que dois fatores: diversão e design de jogo. Os desenvolvedores de Mafia III não aprenderam com os erros do passado: eles os repetem de modo mais estúpido. Em Mafia II tínhamos um mapa sandbox com diversas atividades e estabelecimentos para interagir, porém o jogo era dividido em capítulos que forçavam uma jogatina linear sem dar muita margem para a exploração. Já aqui temos um mapa gigantesco com diversos estilos arquitetônicos belíssimos e bem construídos, mas totalmente mortos, que não oferece um incentivo para o jogador explorar: não há lojas de roupas, cabeleireiros, mecânicos, restaurantes, cinemas, teatros – nada que seja interativo de fato, no design é tudo adequado à época.

É tudo 8 ou 80 com a 2K pelo jeito. Uma pena, pois algum cuidado com as atividades dos NPCs eles tiveram, já que as ruas sempre possuem movimentação lógica e bem delineada. Porém, New Bordeaux não chega nada perto das possibilidades oferecidas nas cidades de Grand Theft Auto V, um jogo da geração passada. Ao menos, existem diversos coletáveis como as clássicas Playboys espalhadas no mapa – embora algumas edições sejam repetidas do jogo anterior.

O maior problema do jogo – e que praticamente o enterra, é a escolha preguiçosa de game design e da mecânica principal. Assim como em Godfather II ou Far Cry 3, em Mafia III o progresso só vem após acabar com os territórios inimigos. Cada um desses, é controlado por um subchefe que podemos recrutar ou assassinar.

Para fazer esses subchefes aparecerem, é preciso causar prejuízos nas finanças daquele distrito. Nisso, o jogo te oferece algumas possibilidades, como matar um líder de gangue, interrogar um x9, queimar produtos, libertar escravos ou prostitutas, entre outros. Causando a quantidade de danos, o subchefe aparece em um prédio que provavelmente você já terá visitado durante o processo de causar prejuízo. Matando o chefe, você já designa o esquema para um dos seus três comparsas.

Porém, para conseguirmos eliminarmos o capo ou tenente comandante desse distrito, é preciso também matar o segundo subchefe a partir do mesmíssimo princípio. Então finalmente é possível começar a vingança de Clay – nos confrontos contra os chefes, há boas cutscenes, muito bem dirigidas, exibindo como cada um se comporta com o medo de morrer. Gostaram do processo? Então basta repetir a mesma coisa 9 vezes. Opa, na verdade, 18 vezes já que cada distrito tem dois subchefes. Missões roteirizadas? Sim, temos pouquíssimas dessas.

Não há diversidade alguma entre um distrito e outro. São as mesmas missões recicladas em locais diferentes. Obviamente, não demora muito para o game se tornar extremamente maçante graças a essa jogabilidade tosca - você simplesmente para de se importar. Durante a minha jogatina, jurava que o jogo tinha me custado 50 horas, porém, quando fui checar, havia pouco mais de 18 horas depois de fechar a história. Logo, o tempo se dilata aqui, é um sacrifício fechar um game que te força fazer a mesma missão diversas vezes. E pior, o desfecho da história não compensa, apesar do ótimo diálogo final.

Ao menos, o pós-jogo poderia abrir uma nova fronteira de missões aproveitando o status poderoso do protagonista em consolidar seu império criminoso. Porém uma vez terminada a história, também não há absolutamente nada para fazer. Justo ali que seria o momento ideal para explorar a fundo o protagonista e, talvez, apresentar Maguire como o rival que ele deveria ter sido. Ou abrir uma brecha de missões secundárias com Donovan e sua quest pessoal. Mas nada disso é feito. Nada.

Outro fator que incomoda é o completo descaso com a atenção aos detalhes que marcaram a franquia Mafia. Toda aquela interação com cenários e objetos desapareceu. O negócio é tão gritante que até foi compilado em diversos vídeos no Youtube que você pode ver aqui e aqui. Até mesmo os modelos de danos de colisão de veículos são os mais pobres já vistos em game free roam.

Em contrapartida, os tiroteios conseguem divertir, a reação dos inimigos ao serem alvejadas são realistas e alguns agonizam por minutos até morrer. O som é estupendo assim como a seleção de músicas licenciadas que explora o que havia de melhor no pop rock de 1968 – bom detalhe em deixar o rádio com interferência quando atravessamos túneis ou estacionamentos. A dublagem é excelente conferindo alguma personalidade aos personagens que sofrem na mão do roteiro.

Enfim, Mafia III é uma enorme sucessão de diversas decepções. Frustrações com os bugs, com os gráficos datados a mal polidos, com a história de final razoável, com o desperdício completo de seus personagens, nas terríveis escolhas de game design nos obrigando a repetir as mesmas missões até a sua conclusão, da falta da interatividade marcante e do espírito completamente medíocre desse game. Ele pode ter seus bons momentos, mas nada que justifique o alto custo do preço tabelado. O melhor a se fazer é esperar, e muito, até que o preço caia. De resto, tenhamos fé que Mafia IV seja o jogo que todos os fãs ansiavam que este fosse.


Crítica | O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares

A busca pelo próximo Harry Potter é incansável. Não estamos restritos apenas à indústria cinematográfica de produção massiva, mas sim a própria literatura que deu origem a diversas criações que tentam emular o sucesso da franquia mágica. Intrinsicamente ligados, o Cinema depende (mais do que nunca) do próximo sucesso literário infanto-juvenil para encomendar trilogias ou sagas inteiras baseadas em obras muitas vezes vazias – Saga Crepúsculo e Cinquenta Tons.

Órfã de uma saga de muitos milhões, as editoras se contentaram com muitas obras de alguns milhões. Nessa onda vieram A Cidade dos Ossos, Jogos Vorazes, Jogo do Exterminador, Saga Divergente, Maze Runner, entre diversos outros que ainda não ganharam relevância para ganhar uma equivocada adaptação cinematográfica. Um tanto quanto tardiamente, O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares finalmente ganhou seu filme – mesmo sendo um livro de qualidade um tanto superior à de tantas outras sagas derivadas – até mesmo com direito a um diretor de nome relevante.

Como havia apontado na crítica do filme que estreou há pouco tempo, entre suas qualidades, a que mais se destacava era o enorme convite para conferir a obra original de Ransom Riggs. Com a curiosidade persistindo em minha cabeça, acabei lendo o livro poucos dias depois da cabine do filme. Como esperado, o longa adapta livremente muitas coisas tomando escolhas mais adequadas a uma obra hollywoodiana. O livro, por outro lado, é melhor que o filme, mas não por longa margem. Descobri exatamente o que estava esperando.

As tramas são muito similares entre si. Jacob, um menino ordinário e sem graça, adorava as histórias do avô sobre as crianças peculiares com quem convivia no orfanato de srta. Peregrine quando era jovem em 1940. Sua vida muda quando seu avô subitamente é morto por uma criatura bizarra que somente ele conseguiu ver na fatídica noite. Deprimido, seu psicólogo recomenda que ele vá para Cairnholm no País de Gales conversar com a srta. Peregrine e descobrir mais sobre o passado de seu avô. Junto de seu pai desinteressado, Jacob busca o orfanato, srta. Peregrine e as crianças peculiares. Porém, sua jornada não será tão simples quanto imaginava.

Indo comumente contra a maré, não segui o conselho que tantos amigos meus dizem: evite ler o livro depois de ver o filme. Logo, comparações serão inevitáveis. Riggs opta por uma narrativa em primeira pessoa de ponto de vista único com narrador-personagem. Jacob é quem conta toda a história e, mesmo tendo apenas 16 anos, ele não foge da característica que é quase inerente à esse tipo de narrador: é basicamente um intelectual fantástico em interpretar os outros e ser muito mais capacitado em tudo do que alguém poderia ser com 16 anos. Jacob seria a epítome do adolescente racional, como tantos outros narradores desse tipo.

Não que seja grande defeito, mas é sempre engraçado ver pensamentos e vocabulários de um adulto em diálogos monumentais de crianças. No caso, até daria para casar com a proposta de todos os outros peculiares serem muito mais velhos do que aparentam e, portanto, Jacob acompanharia a idade mental de cada um deles. Felizmente, Riggs consegue encaixar alguns chiliques genuínos à adolescência entre diversos diálogos com Jacob e seu pai.

Até uns 40% do livro, Riggs trabalha essencialmente essa enorme problemática de estabelecer seu protagonista niilista com seu pai tão desinteressado como ele – só que sem a justificativa de ser deprimido. Aliás, essa que é uma das grandes deficiências do filme, é muito melhor trabalhada aqui. Jacob tem seu longo momento de luto, a relação com seu avô é profundamente construída através de memorias confidenciadas ao leitor e também toda incompatibilidade paterna entre Jacob e Franklin.

Franklin cresce bastante graças a competência de Riggs em delinear ele também como um loser assim como Jacob – mesmo que o narrador nunca se dê conta disso. Franklin, mesmo repetitivo, é um dos personagens mais ricos do livro. Sem achar ruim toda a grande relação de afeto que seu pai tinha com seu filho, ele mesmo repete, digamos, os sins of the father – Abraham é uma figura paterna deficitária para Franklin e que, por sua vez, é um insosso com seu filho, Jacob.

Nesse caso, Riggs delineia a imaturidade de Jacob, coerente com sua idade real, que não consegue interpretar seu pai tão bem quanto expõe os desejos de Emma, seu interesse romântico, para o leitor. Talvez, a grande amálgama de Franklin seja oriunda da pouca importância e afeto que ele recebeu de Abe. Disso, desdobram-se todos os fracassos e desistências na vida, afinal se até o próprio pai dele parecia ter desistido, por que continuar tentando?

Enriquecendo esse lado, Riggs ajeita a mãe de Jacob como uma ricaça herdeira de uma rede de farmácias na Flórida. Porém, ambos possuem essa enorme deficiência de relacionamento com o filho. No caso da mãe, é mais superficial – o autor não elabora muito bem isso durante o vasto estabelecimento narrativo anormal para livros infanto-juvenis de aventura. Mesmo que seja proposital para conferir relevância em um conflito posterior envolvendo o orfanato, não deixa de ser esquisito. Por O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares ser o seu livro de estreia, isso é compreensível.

Mesmo novato na literatura, Riggs estudou consideravelmente storytelling, pois de forma alguma o livro se torna maçante. Ler O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares é uma tarefa fácil e que entretém bastante, pois o autor encaixa muitíssimo bem os pontos de virada da obra, além de manter diversas características peculiares de sua aventura em segredo por muitas páginas.

Como o narrador é o protagonista, acabamos o conhecendo a fundo, seus medos e paixões e mesmo com certo temperamento irritante, é agradável ler a história através de seu ponto de vista. A escolha é certeira, pois assim como Jacob, o leitor é introduzido a todo aquele universo mágico pela primeira vez então há muita pureza de sentimentos no relato dele. Riggs também é ótimo para descrever cenários, ambientes e ação com vocabulário vasto. Além de explicar, através de didatismo coerente, toda a mitologia “nova” criada por ele.

O que carece de maior descrição é justamente Jacob que é tão invisível quanto Millard para o leitor. O orfanato, muitas vezes, também não é bem descrito assim como srta. Peregrine e os outros órfãos – até mesmo Emma. Apesar de grave, essa nem chega a ser a maior deficiência do livro. O que havia achado que era um problema único do filme, se repete aqui em grau um tanto assustador, pois há elementos ótimos que o Riggs pincela, mas logo abandona para manter a locomotiva aventureira se movimentando altivamente.

Sim, os coadjuvantes carecem enormemente de conflitos, pois na escrita, uma parte considerável deles tem alguma personalidade única. No fim, muitos deles tornam-se redundantes e tão pálidos quanto no filme. Não gostaria de dizer quais são os elementos que Riggs pincela, mas eles evocam paixões e uma faceta muito obscura daquele orfanato preso no tempo. Obviamente, isso é introduzido por Enoch, o personagem mais propenso a maldade entre todos os órfãos.

Nesse jogo de esconder detalhes importantes, próximo ao clímax que surge o antagonista espectral que adiciona uma carga de outros detalhes e conflitos de mitologia que só serão apreciados em Cidade dos Etéreos, segundo livro da trilogia planejada – para se perceber como o autor não é idiota, conhecendo muito bem os vícios de entretenimento e interesses de seu público alvo. A srta. Peregrine também sofre com a palidez da escrita, mas ele tenta conferir mais contornos psicológicos para a personagem em algumas confidencias de Jacob. Infelizmente, isso nunca é posto em conflito. Jacob é o típico adolescente cheio de pensamentos recalcados apregoando muito juízo de valor equivocado em muitas passagens.

Riggs parece reconhecer os problemas de descrição que acometem seus personagens e, nisso, vem justamente a peculiaridade do livro: suas ilustrações. Na verdade, são fotografias vintage posadas para causar estranheza e calafrio. O ensaio é muitíssimo eficiente nisso, pois claramente há alguma inspiração naquelas fotografias que as pessoas insistem em dizer que vieram da deep web, o lado obscuro da internet. Algumas, causam sim algum tipo de incômodo, mas nada que seja assustador demais para adolescentes de 13 a 17 anos.

A graça é que as fotografias tornam o livro mais rico, pois todas são bem encaixadas na narrativa. Basta um personagem citar alguma foto que ela não demora muito para surgir preenchendo a página inteira. Aliás, as fotos também revelam algumas coisas que Riggs esquece pelo caminho desta primeira obra: peculiares retratados que não aparecem no restante do livro, sejam os gêmeos, a menina retorcida ou o cachorro humano.

Voltando aos personagens, o grosso da interação de Jacob reside no seu interesse romântico em Emma, a menina manipuladora do fogo – no filme, trocaram aparências e poderes de alguns personagens, além de contar com outros peculiares. Toda a problemática dela ser apaixonada pelo avô de Jacob é um pouco melhor explorada, além do choque da morte de Abe afetar muito mais as crianças do orfanato do que no filme. Riggs sabe elaborar relativamente bem essa grande paixão, apesar de carecer de explicar a motivação, fora a beleza, para que os dois se apaixonem. Uma história de amor interessante, com o conflito escondido de Emma talvez projetar os sentimentos que tinha por Abe em Jacob: algo que só vou descobrir nos livros posteriores.

O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares carece de substância em diversos personagens, além da correria típica de seu clímax burocratizado que nada mais é do que um belíssimo pontapé para comprar a trilogia inteira. Por outro lado, Ransom Riggs cria uma história muito divertida, com diversas fotografias creepy, além da ambientação de fantasia tenebrosa ser bastante convidativa para os leitores. É impossível perder o interesse no livro, ainda mais depois do longo investimento em conflitos muito humanos no primeiro ato da obra. Se ficou interessado após ver o filme de Tim Burton, a compra é garantida e o entretenimento, também.

O Lar da Srta. Peregrine Para Crianças Peculiares (Miss Peregrine's Home for Peculiar Children, EUA – 2011)
Autor:  Ransom Riggs
Publicação no Brasil: Intrínseca
Tradução: Ângelo Lessa
Páginas: 352 páginas