Crítica | A Garota Desconhecida
A fórmula é inimiga da arte. Pelo menos quando essa fórmula já curta e simplória (diferente de simples) é pouco, ou simplesmente não é derivada, com o passar dos anos e dos resultados que gera. Um bom uso de técnicas e visões impostas quando mal usadas geram obras ou popularescas, ou intelectualistas – extremos nunca satisfatórios. Cineastas como Godard, Truffaut, Paul W. S. Anderson, Wes Anderson, Woody Allen e tantos outros são exaustivamente (e muitas vezes de forma injusta) taxados de formulaicos, mesmo quando reorganizam, exacerbam ou redundam, com sutileza magistral as suas próprias idiossincrasias. É o caso também do irmãos Dardenne, que mesmo com idas e vindas, assumem um gênero, um método capaz de articular os comentários presentes em seus roteiros.
A primeira diferença que surge é a pequena fuga da regra in media res dos outros filmes, quando a narrativa começava no meio de uma situação para que o filme usasse de toda a sua duração para desenvolver, resolver e apresentar um passado não explícito paulatinamente. Isso torna a estrutura do filme um tanto mais primária, mas justo nesse primeiro momento que os cineastas parecem criar um mundo mais interessante. Jenny (Adèle Haenel) é uma jovem médica que está prestes a trocar o atendimento em uma pequena clínica por um hospital de renome. Na sua festa de boas-vindas, uma plaquinha de metal já traz o nome da garota na porta de sua sala. Esse reconhecimento profissional representa o abandono do seu estagiário na clínica, Julien (Olivier Bonnaud), e toda uma série de pacientes das imediações que Jenny trata com muita atenção. A jovem brilha ao ver um paciente com câncer armar uma singela despedida musical, momento em que a característica câmera-sombra dos protagonistas fica leve e dá um espaço de respiro para a própria personagem.
Até aí, uma quebra catártica já tinha afetado Julien ao ver uma criança tendo uma convulsão, o que traz à tona sua incapacidade de ser médico. O profissionalismo de Jenny supre essa falha do aprendiz. É com o segundo momento de choque que a dialética entra em campo para conferir ambiguidade ao título, definindo a vertente alegórica da obra: depois do horário de atendimento da clínica, quando Jenny e Julien estão prestes a sair, alguém toca a campainha. No seu direito como profissional, Jenny não atende a porta, apesar da insistência de Julien. No dia seguinte, encontram o corpo de uma imigrante africana num canteiro próximo.
A tragédia, sem consequências legais, pesa na ética médica e pessoal da protagonista. Ela dispensa o novo emprego para tornar-se dona da clínica, preferindo o ambiente mais desconjuntado, colorido e aconchegante às paredes frias do grande hospital. Paralelamente, sua bondade, ou melhor, bom-mocismo, conduzirão o fio da sua investigação para descobrir quem foi a vítima do seu descaso. O prosseguimento é formulaico, um suspense com o motor de uma morte, mas que nem o naturalismo das atuações consegue invocar o calor dos embates dos outros filmes.
Uma desconhecida do título segue a mesma, a outra encontra reforço para a (auto)importância de sua jornada. A ambiguidade proposta pelo título é só mais um prova do egoísmo da trajetória de Jenny, do narcisismo europeu que não cessa de encontrar válvulas de escape. Pergunta-se: onde foi parar a complexidade do cinema europeu que enchia os quadros do que era e não era mostrado em A Criança? Verhoeven soube mostrar que isso ainda é possível hoje. As tentativas de invocar o Outro (vivo, num encontro face a face, sem as máscaras de uma mentira) no final só se tornam mais esdrúxulas quando a culpa recai uma outra ausência, dessa vez por parte de uma familiar da vítima.
Apesar do miolo do filme ser eficiente como narrativa episódica, é uma exibição da habilidade já bem conhecida dos Dardenne. A tensão e os sustos partem do cotidiano, são momentâneas, enquanto o que deveria guardar austeridade ganha rosto e identidade (de papel) no moralismo de uma velha Europa.
A Garota Desconhecida (La Fille Inconnue, 2016 - Bélgica, França)
Direção: Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne
Roteiro: Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne
Elenco: Adèle Haenel, Olivier Bonnaud, Jérémie Renier e Christelle Cornil
Gênero: Suspense
Duração: 113 minutos
https://www.youtube.com/watch?v=iuOln_WaSxI
Review | Resident Evil 5
A Capcom se encontrava em uma posição delicada com "Resident Evil 5". Como dar continuidade a um jogo que estabeleceu uma nova tendência de mecânica, trazer novidades a altura, respeitar o legado da franquia e ao mesmo tempo atrair novos jogadores? Para dificultar o questionamento, o game ainda passou por vários problemas internos de desenvolvimento envolvendo troca de cast de um personagem, cortes no orçamento e de trechos inteiros de fases - até para cumprir com o prazo estipulado de lançamento - e acusões infundadas de racismo iniciadas por uma minoria de profissionais da indústria jornalística.
Definitivamente, as condições não eram as ideais para a saída do jogo que os fãs gostaria e mereciam, não é mesmo?
Mas Resident Evil 4 também contou com diversos problemas e reformulações antes de seu lançamento, o que não impediu o jogo de ser incrível, logo o mesmo pode acontecer com este, correto? Errado.
Resident Evil 5 sofre de uma enorme carga negativa, talvez o maior temor de qualquer franquia consagrada: a perda da identidade.
A começar pela mudança de cenário. Saem a mansão de confinamento , as ruas apertadas de Raccon City e os bizarros campos e castelos de da área rural espanhola para a entrada de uma África ensolarada. Claro, há de se louvar o trabalho de iluminação e texturas, bem polidos para a época de 2009, mas é inegável que o ambiente e sua atmosfera não são dos mais aterrorizantes em relação ao que veio antes.
Se a ambientação não colabora, ao menos a jogabilidade fazem jus ao terror de outrora, não? Não.
RE 5 é frenético a todo momento. As hordas - agora, ainda mais armadas - são mais numerosas, as munições não são mais escassas e encontrar uma erva para dar upgrade em sua barra de vida nunca foi tão fácil. A situação só piora conforme avançamos na jogatina e devemos enfrentar os infames infectados com armaduras e armamento militares e monstros gigantescos que abusam da suspensão de descrença. Até trechos em ambientes metálicos e industriais, desnecessariamente, possuem uma maior presença.
Com isso, todo o senso de vulnerabilidade dos protagonistas se esvai. Chris e Sheva são heróis de filme de ação. Se, ao enfrentrarmos o perigo, nos deparando com ele, não o sentimos, então qual é a graça? Um caminho vergonhoso foi seguido aqui.
Compare o trecho da batalha contra um gigante em "Resident Evil 4" e em "Resident Evil 5". Enquanto em um, o jogador se esforçava para prolongar o duelo até achar o momento ideal de ataque com a consciência de que, se resultasse em falha, o golpe seria fatal e o processo se repetiria, no outro tudo o que o jogador deve fazer é atirar com uma supermetralhadora embutida em uma caminhonete. Havia boatos de que esse se trata de um dos trechos cortados e que, na ideia original, envolveria até mesmo uma perseguição do tal gigante.
O que nos abre a brecha para falar de outro problema, a mecânica. Um jogo de ação - ainda mais em terceira pessoa - exige uma certa gama de possibilidades de movimentos e ações para o jogador acompanhar a agilidade do gameplay. Pegando emprestado as mecânicas de Resident Evil 4, o jogo falha nesse ponto crucial ao limitar demais o jogador com poucas opções de movimentos. Funciona bem para um terror mais calcado e com eventuais sequências de ação como o jogo antecessor, mas este não é o caso. E se a ideia fosse manter o jogador mais vulnerável, limitando seus movimentos frente às hordas, o objetivo também não seria cumprido, resultando em alguns bons momentos de frustração.
E a narrativa? Bom, Resident Evil nunca foi uma franquia conhecida por suas histórias e excepcional trabalho de desenvolvimento de personagens. A criação do mundo e seus conceitos e as mecânicas eram o foco dos elogios. Mas não podemos nos esquecer que estamos falando de um game de 2009, ano em que "Uncharteds" e "BioShocks" da vida já estavam disponíveis.
Sinto-lhe informar, caro leitor, mas até nisso o jogo falha. A história, que se passa 5 anos depois dos eventos de RE4, gira em torno de Chris Redfield, agora trabalhando para a BSAA, tendo de se aliar com Sheva Alomar em Kijuju para apreender Ricardo Irving e impedi-lo de concretizar uma venda de arma bio-orgânica. Obviamente, há muito mais debaixo dos panos do que aparenta, com direito a conspirações, planos de dominação global e ressureição de personagens antes dados como mortos. É tudo tão exagerado e telegrafado que, em dado momento da trama, pode prever tudo que está para acontecer com alguns poucos minutos de jogatina. A direção durante as cutscenes é, em sua maioria, terrível, com enorme apelo para cortes rápidos, shaky cam e slow motion, gerando alguns momentos bem embaraçosos de se ver e acompanhar.
Os personagens são tratados da mesma forma preguiçosa e desinteressante, sem qualquer arco crível. Chris Redfield é um personagem completamente unidimensional e profere a todo momento diálogos expositivos e didáticos a respeito da trama e do que acabamos de presenciar. Sua relação com Sheva não soa orgânica e sim uma exigência de roteiro. Há somente um momento dedicado entre ambos para falarem de sua vida pregressa e assuntos mais humanizados - momento este durante um passeio de barco para uma tribo indígena em uma tentativa pífia de desenvolvimento de Sheva ao inserir o básico de backstory - acredite, eu contei.
Albert Wesker então, vilão carimbado da franquia, coitado, surge mais canastrão do que nunca chegando atingir o nível cartunesco. Os momentos finais de batalha que o envolvem me provocaram algumas risadas tamanho nível de galhofa na escrita. Os coadjuvantes, todos subaproveitados, não agregaram muito à trama.
O melhor ponto do game e que também é sua novidade mais engenhosa, trata-se da possibilidade de jogar em cooperativo. Lembro de gastar incontáveis horas jogando com meu irmão ou com alguns amigos em revezamento por morte ou tempo durante encontros em casa. É simplesmente muito divertido. O valor de entretenimento é altíssimo e a variedade de cenários e busca por upgrades nas armas certamente manterá a dupla de jogadores engajados até o final. Claro, isso se você deixar passar todos os problemas citados e quiser apenas investir algumas boas horas na matança de zumbis.
"Resident Evil 5" não consegue ser um bom jogo de terror - o frenesi durante o enfrentamento de hordas regulares e munição fácil não o deixa - e nem um eficiente jogo de ação - a mecânica é travada e limitadora herdeira de seu antecessor. Não achando sua identidade, o game é um arremedo de ideais e conceitos passados atafulhados em uma narrativa medíocre com história e personagens genéricos. Vale pelo cooperativo mas não muito mais que isso, ainda mais hoje com tantas opções carentes de tais defeitos. Eu realmente gostaria de poder dizer que a Capcom, eventualmente em um "Resident Evil 6", aprenderia com os erros e presenteasse os jogadores com o game que faria a franquia se encontrar novamente. Infelizmente, isso não aconteceu e a situação só iria piorar. E é assim que o texto termina, em tom fúnebre e com a saudade, mesmo que fosse apenas exclusivo ao quarto game, de um certo mercador para te chamar de estranho diversas vezes durante a jornada. Até nisso, o processo se tornou automático e sem personalidade.
Resident Evil 5 (Biohazard 5, Japão/2009)
Desenvolvedora: Capcom
Gênero: Ação, tiro em terceira pessoa
Plataformas: Microsoft Windows, PlayStation 3, PlayStation 4, Xbox One e Xbox 360.
Crítica | Cinquenta Tons Mais Escuros, de E. L. James
Os livros de E. L. James se tornaram um fenômeno mundial assim que foram lançados e agora os filmes também seguem essa linha de sucesso. O longa Cinquenta Tons Mais Escuros foi lançado esse mês e aproveitando esse momento, resolvemos analisar o segundo livro também.
Assim como no primeiro livro, vemos aqui a história pela perspectiva de Anastasia. Ela se mudou para Seattle e conseguiu um emprego como assistente de um editor, e mesmo separada (e sofrendo muito por isso!) de Grey ela aceita as flores que ele mandou pelo seu primeiro dia de trabalho e a carona para a exposição de fotos do amigo dela, José. Christian está disposto a reconquistar Ana e durante uma conversa intensa num jantar depois da exposição, ele se declara e propõe um novo acordo. A ideia agora é não ter regras. Sim, isso mesmo! Christian Grey quer tentar um relacionamento baunilha com Ana e claro que ela aceita, com isso ela promete ter fé e paciência com ele.
Parece que a única coisa que pode impedir disso dar certo é o próprio Christian com todos os seus problemas e seu estilo de vida totalmente diferente do de Ana, mas o que não esperávamos é o retorno de questões do passado dele que voltam simplesmente para atormentar a vida feliz do recém casal. Leila, uma ex submissa de Grey, começa a aparecer "perseguindo" eles com pequenas aparições como quando aborda Ana na rua e solta a pergunta "O que você tem que eu não tenho?".
Aqui começa um dos pontos positivos da história, o clima tenso quase constante que E. L. James consegue criar com a ameaça de um ataque que pode acontecer a qualquer momento. Mas infelizmente ela não consegue manter isso por muito tempo, pois começa a criar outros diversos (sério, são vários) conflitos que tem o intuito de aumentar o clima de tensão. Outro conflito que a autora gosta de focar é entre Ana e o chefe, Jack Hyde. Esse por sinal é pior trabalhado do que o primeiro que citei, pois existe sempre uma expectativa de algo acontecer e quando acontece é algo raso e facilmente resolvido. Até Kate e Elena, amigas de Ana e Christian respectivamente, entrem em cena para gerar tensão e alguma discussão sem sentido.
O principal problema de Cinquenta Tons Mais Escuros é realmente a falta de desenvolvimento. Todos os conflitos são resolvidos de maneira tão simples e óbvia, alguns até de maneira casual. E não pense que os momentos bons estão fora dessa regra, a autora consegue ser extremamente criativa criando os cenários mais românticos e belos para o casal, mas todos seguem sempre a mesma fórmula de desenvolvimento regada de clichês.
Apesar de tudo isso, aqui temos um Christian mais aberto e até apaixonado. Pra quem ansiava por conhecer melhor os conflitos internos dele, aqui a autora foi além e entregou os maiores segredos desse personagem quase complexo. A parte boa é mesmo entregando tanta coisa, ainda existe um oceano de coisas que gostaríamos de conhecer sobre ele de tão bem trabalhado desde o primeiro livro. Ana por sinal consegue se abrir mais também, expondo medos que não havíamos conhecido. A melhora na comunicação dos dois e os momentos de confissões de Christian realmente são pontos altos da história. Devo assumir que uma cena onde Grey realmente conta o seu grande segredo (não tão segredo assim, vai!) é um momento tão tenso e chocante que se tornou o meu favorito. Mesmo não sendo perfeito, por todos os problemas que citei estarem ainda presentes.
E isso nos leva as cenas íntimas do casal. Diferente do primeiro capítulo da história, aqui os momentos de conversa entre eles são constantes o que torna real a ideia de relacionamento "normal" deles. Porém não pense que a autora deixou de lado as cenas de sexo mais pervertidas e quentes, elas ainda estão aqui, mas regadas de amor que enriquecem esses momentos.
Enfim, esse livro serve para nos mostrar a ansiedade da autora em expor ideias. Tudo aqui é importante, tudo é urgente e tudo serve para gerar tensão e expectativa no leitor. Porém essas ideias na sua maioria, cansam e atrapalham a história. Falta de desenvolvimento é um ponto gravíssimo, principalmente quando a pretensão é criar uma gama de detalhes e conflitos como aqui. Então, por favor, não espere uma grande obra.
Ps: Se resolver comprar, escolha a nova edição lançada para aproveitar o lançamento do filme. Além de contar com fotos dos bastidores das gravações, conta também com o primeiro capítulo escrito pela perspectiva de Grey.
Crítica | Os Visitantes
O professor e experiente jornalista Bernardo Kucinski é hoje reconhecido no meio literário, principalmente, pelo seu romance de estreia K.: Relato de uma Busca, publicado em 2011, e consagrado como uma das melhores peças literárias sobre a ditadura militar e suas sequelas, partindo do desaparecimento de sua irmã, Ana Rosa Kucinski – no romance, filha do protagonista. O autor, que até o momento já havia publicado livros de economia e política, teve também editada sua produção de contos e novelas. Infelizmente, dessas outras obras, nenhuma abalou tanto quanto o romance.
Agora, sob a égide da Companhia das Letras (que republica agora em agosto também sua maior obra), Kucinski publica mais uma novela: Os Visitantes. Depois de enveredar pelo gênero policial, com muitos tropeços, em Alice, a opção atual é estruturalmente mais segura. Narra a partir do ponto de vista do escritor de K., numa espécie de realidade alternativa de sua própria situação. A cada curto capítulo, um nova pessoa vem bater à porta do escritor e perturbar-lhe, seja para apontar erros no romance, discutir a exposição dos personagens retratados, como suas atitudes são descritas… “Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu”, epígrafe dessa novela e do romance, torna-se mais que um esclarecimento, um motivo, um embate, uma posição que agora é voltada contra seu próprio criador.
Segundo Kucinski – o de carne e osso – de todos os visitantes, apenas o primeiro, uma senhora sobrevivente do Holocausto, não existiu realmente. Foi, na verdade, um colega historiador que lhe confrontou a afirmação de K. de que até os nazistas guardavam o registro de todas as suas vítimas. O que não é verdade. No primeiro capítulo, o escritor narra que, depois do encontro com a senhora, foi buscar informações na Wikipédia e, em seguida, correu atrás de mais obras de Primo Levi. Surpreende encontrar esse tipo de ação quando se conhece a biografia do autor. O artifício da “ficção” ressurge para provocar proporcional dúvida.
Vale ressaltar que nesse mundo, K. não é um sucesso. A cada capítulo-crônica o narrador se emburra por não ver menção nenhuma a seu romance em jornal nenhum. Apenas o nicho retratado na obra (a comunidade judaica, as colegas de sua irmã desaparecida, parentes e colegas uspianos) parece ter notado sua existência: uma provocação ao nosso país-enigma, não só quanto à construção da narrativa da ditadura, como em relação à recepção de obras que a contestem 30 anos depois do fim desse período da história brasileira – hoje, um cenário absurdo de florescimento da anti-política.
O que conferiu a agilidade seca e chamou a atenção no primeiro romance de Kucinski foi fruto da sua formação jornalística. Preciso, cada capítulo tinha um objetivo, era uma progressão – mesmo que ilusória – da busca dos desaparecidos. Sua inclinação kafkiana, como é discutido em um dos capítulos da novela, (não só pelo uso da abreviação K. para o protagonista, como pela sua brevidade, aspecto labiríntico e total desesperança) retorna através da justaposição dos episódios tenuemente conectados, especialmente quando identidade e reconhecimento nas páginas do livro é a razão da visita. Os Visitantes é um outro relato da mesma busca de K., a busca pela verdade, forçadamente interessada nos mecanismos sistemáticos por debaixo do regime, visto que as chances de realmente encontrar a filha desaparecida são quase nulas.
Bernardo Kucinski afirma em entrevistas que sua dedicação à literatura ficcional funciona como uma sobrevida. As páginas derradeiras da novela, no entanto, parecem uma despedida. O destino da filha de K. e de seu marido são reconstruídos em “Post Mortem”. Até lá, a história se sucede da maneira que anuncia o título “Sangue no escorredor de pratos” – lavando roupa suja. Admitindo conscientemente ou não as problemáticas invocadas pelos visitantes, importa é que o narrador incorpora as autocríticas e reflete sobre a complexidade ética do raconteur dos acontecimentos que “desafogou” em seu livro. Porém, mesmo com apenas 90 páginas, como um todo, falta fôlego à articulação da prosa de Kucinski, deixando pontas soltas pelos curtos capítulos. Não equivale-se aos melhores momentos de seu aclamado romance.
Sua desilusão emociona, mas quem procura algo profundo tematicamente vai encontrar em Os Visitantes uma reiteração estilística anódina. Firme em suas convicções políticas, Kucinski parece frágil em seu processo de reconstruir a História ao reconstruir suas histórias e experiências. De tanto alterar suas perspectivas, desgastou-se. Mas o assunto em si, para todos os leitores, não pode ser deteriorado de forma alguma.
Os Visitantes (2016)
Autor: Bernardo Kucinski
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 88
Crítica | Nas Estradas do Nepal
Durante a Guerra Civil do Nepal (1996-2006), conflito entre o governo monárquico e os rebeldes comunistas (denominados maoístas), que exigiam o estabelecimento de uma república, houve um cessar fogo. É nesse período que “Nas Estradas do Nepal” (Kalo Pothi) se estabelece e sob o ponto de vista de Prakash (Khadka Raj Nepali) e Kiran (Sukra Raj Rokaya), dois garotos habitantes duma pequena vila ao norte do país e divididos por suas castas sociais.
Parkash é um dalit filho do caseiro faz-tudo (Jit Bahadur Malla) da família de seu colega. Kiran pertence à linhagem mais endinheirada da vila. Eles são melhores amigos, apesar das advertências de não passarem tanto tempo juntos. O preconceito existe, porém é brando, afinal, o vilarejo é pequeno e humilde, não dando espaço a manifestações discriminatórias tão explicitas como acontece em grandes centros urbanos. Todavia, a casta mais pobre é excluída socialmente, conforme acompanhamos a família de Prakash. Eles executam trabalhos braçais e de serventia, e estão constantemente obedecendo ordens e baixando a cabeça.
Os dois moleques se aventuram pelas ruas de terra do povoado onde moram, sempre com uma nova atividade em mente. Kiran costuma dar as ideias, Parkesh executa – de certa forma, perpetuando o ciclo que divide suas castas, ainda que, para os dois, ser pobre ou rico não faça diferença. A câmera tem planos longos e é quase que objetiva, já que acompanhamos a cultura local sob a perspectiva virginal de duas crianças. A história, então, ganha camadas quase documentais enquanto a narrativa avança.
O elemento que une e motiva a dupla a uma nova missão é a galinha que Parkesh ganha de presente de sua irmã mais velha (Hansha Khadka). A ave pertencera à mãe recém-falecida do menino, então ele e seu comparsa assumem como missão cuidar do ave com fervorosa dedicação. Mas a vida de uma penosa não é fácil num lugar como aquele e ela acaba indo parar nas mãos dum senhor de outra cidade. Os jovens decidem cruzar as perigosas fronteiras para recuperar o animal de estimação.
Dentre os aspectos técnicos, a fotografia de Aziz Zhambakiev – premiado em Berlim por outro trabalho – é o que chama mais atenção. É pautada em tons terrosos que harmonizam com roupas gastas, enquanto camufla os habitantes da região na paisagem árida e cenografia rústica com casas de pau, concreto e cores simples. A vegetação verde escuro combina com as vestimentas dos soldados – de ambos os lados – da guerra posta em pausa.
Ainda que o contexto seja entre o cessar-fogo da revolução nepalesa, o clima é hostil e os maoístas não estão parados, afinal viajam continuamente pelo país para recrutar jovens para a causa. Sente-se que algum conflito logo eclodirá. Eles chegam à vila e levam embora consigo alguns sangues-frescos, incluindo a irmã de Parkesh, mas a causa deles não é bem definida. Por que ela decidiu se unir? Nunca sabemos. Por outro lado, nem seu irmão. Seria difícil para crianças entenderem do porquê de uma revolta comunista no país, mas, mesmo assim, os guerrilheiros que ajudaram a libertar grande parte da população do imperialismo imposto não têm direito à voz. São retratados como rebeldes confusos e liderados por uma cópia étnica do Che Guevara. Essa frieza na representação do grupo torna seus componentes descartáveis, meros peões. Assim, no momento de clímax, as baixas do conflito não causam empatia, deixando que a possibilidade de um momento dramaticamente intenso se perca. O espectador não se permite ser deixado nu e desolado como seus personagens.
“Nas Estradas do Nepal” foi premiado no Festival de Veneza – melhor filme no Fedeora Award, uma categoria especial –, foi a escolha do país para submissão oficial ao Oscar de língua estrangeira e, segundo o Nepali Times, é “um exemplo da nova onda do cinema nepalês”. O diretor e roteirista, Min Bahadur Bham, entrega-nos um drama de irmãos – seja na camaradagem ou nos laços familiares –, com toques de humor e estrelado pela figura central de um jovem e determinado dalit, enquanto contornado por detalhes da cultura local e uma crítica social inocente, porém presente.
Nas Estradas do Nepal (Kalo Pothi, NEP – 2015)
Direção: Min Bahadur Bham
Roteiro: Min Bahadur Bham, Abinash Bikram Shah
Elenco: Khadka Raj Nepali, Sukra Raj Rokaya, Jit Bahadur Malla, Hansha Khadka
Gênero: Drama
Duração: 90 minutos
https://www.youtube.com/watch?v=mO5RcM-hiM4
Salvar
Crítica | Um Homem Chamado Ove
Baseado no romance de Fredrik Backman, escritor, colunista e blogueiro sueco, Um Homem Chamado Ove trata de um cotidiano ocidental nada distante. Um dos mais velhos residentes de um condomínio de casas, Ove (Rolf Lassgård) é um viúvo plenamente rotineiro, linha dura, seco, programático, disciplinado. Não é um militar. É só um típico homem com a doença dos costumes, obsessivo pela tradição, pela ordem, pela seriedade. Foi por muitos anos síndico do condomínio, até sofrer um “golpe”, atitude que só contribuiu para o enrijecimento de sua conduta, da vigilância e da aplicação das regras no bairro.
Fatigado das irresponsabilidades dos novos moradores do condomínio e dos ruídos comunicacionais do novo século, Ove decide se juntar à esposa na outra vida. Suas tentativas de suicídio secreto, por enforcamento, porém, são interrompidas uma série de vezes. Sua nova vizinha sem noção, a iraniana Parvaneh (Bahar Pars), interessada na amistosidade que o aparente pétreo coração de Ove guarda, desperta nele uma nova esperança na vida dele, mesmo que à força. À força do destino, como quer pintar o filme.
Um Homem Chamado Ove, lançado na Suécia em fins de 2015, foi um sucesso comercial estrondoso no país, popularidade devida também ao livro, maior fenômeno literário em questão de números do país desde a trilogia Millenium de Stieg Larsson. Se pensarmos no caso dos romances policiais, eles nada tinham de especial, para além de desenvolverem bem uma fórmula – ao menos nos dois primeiros títulos. No caso de Ove, não se trata de uma série. O que importa, no entanto, é o tipo de história narrada. E como pode-se perceber dos frutos fílmicos da obra de Larsson, os americanos, mais experientes, versáteis e com melhores condições de produção (ainda mais com a mão de alguém como David Fincher), fizeram em um filme o que três suecos não conseguiram fazer. Obviamente, Hollywood, mesmo com a exclusão de regionalismos, sabe desenvolver narrativas capazes de gerar lucro. Infelizmente, a maior parcela desses filmes são remakes autodestrutivos. Foi Fincher que adicionou sal, pimenta e seu tempero secreto na adaptação de Larsson. Agora, transformar essa adaptação de Backman em algo mais interessante é tarefa mais difícil.
O diretor do filme, Hannes Holm, faz em Ove um filme quadrado demais, transmitindo uma sensação de “superprodução” local. A premissa já é uma velha fórmula americana que as pretensas particularidades suecas não conseguem suplantar, seja lá que estereótipos sejam pensados. Essa tentativa de dar um outro tom, um humor negro que brota da austeridade das situações, violência branda e ainda sem tesão, não passa do primeiro terço do filme. Uma vez liberto dessa apresentação sem sal e sem cor, o filme entra numa derrocada açucarada de descoberta do personagem através de flashbacks vibrantes, expondo didaticamente como um pobre jovem construiu sua vida após perder o pai, encontrou o seu amor (a professorinha), passou de peão a engenheiro e perdeu tudo por barreiras mundanas: a irresponsabilidade alheia, a burocracia, o preconceito. O romantismo potente é estragado pela perda e os traumas expurgados na tela são paulatinamente transformados em boas ações, na reconstituição de um ambiente aconchegante, na, enfim, pacífica passagem para o outro lado.
Tudo se constrói da maneira menos realista, mais metafísica e, nos instante finais até, melodramática. Calcado nas bases da simpatia e do modelo de prosperidade espiritual, o filme se alonga para incluir cenas de carinho, ao invés de apostar nos pequenos gestos. Para um personagem tão rotineiro e pretensamente ordinário, o filme contém momentos explícitos demais para evocar simplicidade onde só há uma maquinário perverso do emocional.
O filme de Hannes Holm é quadrado demais especialmente frente a representantes do cinema sueco contemporâneo, como as inventividades de Roy Anderson (Um pombo sentou num galho e refletiu sobre a existência; Nós, os vivos) ou de Tomas Alfredson, de Deixa Ela Entrar, sueco refilmado nos EUA – mas que o original é melhor. Se é para Um Homem Chamado Ove ser repasteurizado no grande polo industrial do cinema, que seja antes das refilmagem de Toni Erdmann, esse sim um filme simples, rigoroso, muito mais cotidiano do que qualquer ronda que o não tão velhinho artificial Ove poderia planejar.
Um Homem Chamado Ove (En Man Som Heter Ove, Suécia – 2015)
Direção: Hannes Holm
Roteiro: Hannes Holm, baseado no romance de Fredrik Backman
Elenco: Rolf Lassgård, Bahar Pars, Filip Berg e Ida Engvoll
Gênero: Drama
Duração: 116 minutos
https://www.youtube.com/watch?v=HTkiDY2yLIE
Crítica | A Tartaruga Vermelha
Numa ilha deserta, o corpo de um homem semiafogado é deixado na areia após enfrentar a tormenta dum mar agitado. Desmaiado, é desperto por um siri do tipo maria-farinha que, com jocosidade, penetra sua calça surrada. O eco dum Robson Crusoé naufragado acorda assustado e espanta o crustáceo de sua vestimenta. Ele olha aos lados e já sabe: está solitário.
Na animação francesa, produzida pelo renomado japonês Studio Ghibli (A Viagem de Chihiro, “Tartaruga Vermelha” (La Tortue Rouge), o diretor Michael Dudok procura transmitir seu fascínio por histórias como o clássico de Daniel Defoe. No entanto, a narrativa sem falas está menos preocupada em desvendar formas de sobrevivência num ambiente desolado e mais no modo como um homem se sentiria e interagiria com a natureza ao seu redor.
Como dito, não há diálogos – apenas esporádicos gritos expressivos. O personagem é, então, um apátrida destituído de personalidade, o arquétipo de perdido, papel branco a ser preenchido pelas sensações do novo lar. A belíssima trilha de Laurent Perez Del Mar existe conforme o universo, o tempo, a fauna e a flora interagem em volta do herói. Nós, como espectadores, somos submetidos ao vai-e-vem das ondas, o farfalhar das folhas, ventos fortes, ecos, pipilar de albatrozes e ao movimento dos simpáticos siris – parentes daquele primeiro. Exploramos a terra junto com esse protagonista desorientado e conhecemos o mapa local dotado de floresta tropical de bambus, pedras litorâneas, vastas praias e infinito mar.
Passada essa fase, a segunda metade do longa assume tom de fábula quando nosso Crusoé conhece a personagem-título, uma mulher misteriosa com quem se relaciona. A partir daí pode-se relacionar a trama com alguns temas antes trabalhados em “Father and Daughter”, curta-animação do mesmo criador e vencedora do Oscar em 2011. Lá, Michael Dudok havia trabalhado intimamente com a relação de abandono entre um pai e sua filha. No longa-metragem, o diretor expande para o cosmo de uma nova família, formada na ilha. Vemos o surgimento dum lar e seu desmantelamento, conforme o primogênito amadurece. É íntimo e comovente.
“Tartaruga Vermelha” oferece uma narrativa poética que aposta em sentimentos, sons e imagens com arte caprichosa, além de fortalecer o drama da relação familiar. A animação em 2D, desenhada manualmente – com exceção das tartarugas marinhas digitais devido à enormidade de detalhes –, é dotada de uma paleta de cores harmoniosa e cheia de texturas. É um deleite para olhares atentos que prezem pela minuciosidade do paisagismo requintado. Michael Dudok é ilustrador de formação, não abdica do trabalho artístico e, por isso, garante com tanta legitimidade sua indicação no Oscar de Melhor Animação, assim como a merecida conquista do prêmio especial de júri na categoria Un Certain Regard (Um Certo Olhar) em Cannes 2016.
Esse é o primeiro filme não japonês produzido pelo famoso estúdio responsável por obras do mestre Hayao Miyazaki e não fica atrás das obras tradicionais. “Tartaruga Vermelha” presenteia seu público com uma linda e contemplativa animação, uma certa fuga da explosão de cores e artificialidade que Hollywood costuma submeter-nos. Há um respeito profundo pela natureza, exaltando a beleza da paisagem e oferecendo uma experiência empírica, mesmo que animada, dum lugar onde o ambiente é racional e tem personalidade.
A Tartaruga Vermelha (La Tortue Rouge, FRA/JAP – 2016)
Direção: Michael Dudok de Wit
Roteiro: Michael Dudok de Wit, Pascale Ferran
Gênero: Animação
Duração: 80 minutos
Escrito por Rodrigo de Assis
https://www.youtube.com/watch?v=gylyhyqeSWQ
Os 10 Filmes mais Polêmicos sobre Sexo
Qualquer coisa pode se tornar arte. Ela contempla todos os aspectos da existência humana, sem exceção. Se existe alguma consciência estética deliberada sobre qualquer ação ou reação de origem humana, nós podemos considerar algo que chamamos de arte. Pense nisso. Os prédios que nos cercam, as roupas que nos vestem, a comida que comemos, tudo pode envolver algum senso de estilo, que não é necessariamente prático, mas é de alguma forma belo e agradável – nenhum de nós come comida crua, certo?
E, tal qual todos os exemplos acima, o sexo também se tornou uma forma de arte. Desde Freud, que dizia que a pior coisa do sexo era não fazê-lo, até Foucault, que observou com precisão o sexo como uma das relações de poder mais antigas e enraizadas de todas as culturas do mundo, o fato é que uma parte considerável do decorrer de uma vida gira em torno do sexo. Nós o praticamos, nós o assistimos e, mais importante, nós gostamos. Essa é uma afirmação simples e categórica, a partir do momento em que se observa que, sem sexo, nenhum de nós teria nascido.
Pois bem, já que o sexo é uma parte essencial de nós, naturalmente ele se tornou um foco de arte. Conforme velhos tabus foram caindo, o experimentalismo e a ousadia de grandes cineastas e artistas contribuíram para que nós tivéssemos uma visão mais abrangente – seja ela feia ou bela; precisa ou abstrata – do que o sexo realmente é, e o que ele representa para nós. Admita – mesmo que não seja seu gênero favorito, alguns dos filmes que mais te marcaram foram filmes de teor bastante erótico. Sex sells!
Então, nós selecionamos dez filmes eróticos de Hollywood que são relevantes – artisticamente, historicamente ou ambos. Deixe a vergonha de lado, amigo leitor. Vamos falar sobre sexo!
10. Atração Fatal (1987)
Começando a lista com um dos muitos filmes que envolvem o ninfomaníaco mais conhecido de Hollywood, Michael Douglas, Atração Fatal não só é um filme de alto teor erótico – e de grande qualidade – como também pelo resto do roteiro, um thriller de suspense muito bem desenvolvido. Com Glenn Close no auge da sua forma, o duo entre os atores envolve e surpreende na medida certa.
A trama fala sobre um advogado das classes altas de Nova York, Dan, que decide ter um affair com uma mulher sedutora, enquanto sua esposa está fora da cidade. Entretanto, o relacionamento começa a tomar uma forma que Dan considera ameaçadora, e ele decide encerrá-lo. O que ele não imaginava, é que a sedutora mulher fosse se revelar uma psicopata com fortes tendências obsessivas – ao ponto de torna-la uma homicida.
O filme gerou grande polêmica na época por subverter o que seria uma relação padrão de obsessão – o homem adúltero é perseguido pelo seu affair. As cenas de sexo são bem tórridas e intensas – e o mesmo pode-se dizer das cenas de violência. Atração Fatal permanece, mesmo depois de trinta anos, um filme surpreendente.
9. Azul é a Cor Mais Quente (2013)
Saltando no tempo em direção 2013, nós temos um outro destruidor de tabus – o que impressiona, já que, estando bem imerso no século XXI, o filme não deveria ser tão chocante assim. Mas o fato de inevitavelmente ter sido mostrado que, independente do quanto tenhamos avançado nesse sentido, a sexualidade, de muitas formas, ainda permanece um tabu – muito longe de ser tratado com a naturalidade que deveria.
Apesar de tudo, não é nenhuma surpresa. Pois o filme apresenta, de maneira crua – mas sem ser indelicado – a homossexualidade como algo tão belo e complexo quanto qualquer outra forma de relacionamento. As protagonistas Emma e Adèle são tão confusas e indecisas quanto muitas pessoas que conhecemos – e ainda tem que lidar com a resistência do mundo a sua volta, que insiste em rejeitar e tornar complexo algo que, em essência, é muito simples.
Tão simples que o filme, como um todo, se resume a isso – Adèle descobrindo sua verdadeira sexualidade através de Emma. E, através da manifestação natural da sua verdadeira sexualidade, ela também descobre o amor. O filme choca muito menos pelo que ele mostra, do que pelo que ele diz – que existem muitas formas legítimas de amar.
Claro, existe uma grande dose de choque também pelas cenas de sexo. Diretas, objetivas e extensas, elas mostram como funciona a dinâmica entre duas mulheres, desfazendo por completo a ilusão criada pela pornografia rasa com a qual o público masculino está acostumado. Talvez por isso o filme cause tanta controvérsia – ele desconstrói algumas das nossas ilusões sobre o sexo feminino, e por isso está na lista.
8. Anticristo (2009)
Apesar de polêmicos, os filmes anteriores têm um nível de aceitação geral por público e crítica. Não é o caso deste aqui. Passados quase dez anos, Anticristo ainda é um filme que divide opiniões e ânimos – tem quem ache uma obra de arte válida, tem quem ache uma abominação que não deveria ter visto a luz do dia. E, se é polêmica, merece ser citada.
Lars Von Trier é um sujeito que precisa de muita terapia e remédios tão pesados quanto forem possíveis. Mas, aparentemente, ele realmente gosta de dividir sua angústia com o público, em uma espécie de sessão terapêutica em escala global. E quem sofre somos nós.
Felizmente, nada que chegue nem perto do que Charlotte Gainsbourg faz Willem Dafoe sofrer. Para Von Trier, sexo é uma coisa que envolve dominação e dor. Não é apenas mais emocionalmente saudável do mundo, mas a perspectiva que ele nos impõe através de Anticristo é, no mínimo salutar – tudo o que é muito bom, pode se tornar igualmente ruim, nas devidas circunstâncias.
A circunstância ruim é a perda do filho do casal durante um ato sexual. Isso deixa a esposa profundamente marcada. O marido toma para si a tarefa de juntar os cacos e tentar seguir com a vida. O que ele não contava era a maneira como a esposa ia processar esse evento e, principalmente, como iria direcionar e extravasar sua dor.
Um filme extremamente polêmico, que não perder nada do seu potencial de choque até aqui. Assistir Anticristo ainda é uma experiência para a qual se precisa estar preparado – sob o risco de entender que o filme é apenas o pior bdsm que você já viu na vida.
7. Proposta Indecente (1993)
Sexo, além de arte e prazer, também é um negócio. Tão velho quando a própria raça humana, diz a sabedoria popular. O que levanta a questão – quanto vale o seu corpo? O meu não deve valer muita coisa; talvez um sanduba de mortadela no Mercadão. Mas Robert Redford estava disposto a pagar um milhão de dólares por Demi Moore. Você aceitaria?
Embora não tenha sido um grande sucesso de crítica, Proposta Indecente fez um caminhão de dinheiro não apenas pela enorme carga erótica que o próprio mote da trama envolve, mas pelo fetichismo que é a base do conceito da trama – todos nós temos um valor. Pelo preço certo, você pode ter quem você quiser, dar o que você quiser (não no mau sentido, seu pervertido).
O casal formado por Woody Harrelson e Demi Moore está mal das pernas financeiramente, e toma uma decisão muito prudente – ir para Las Vegas tentar a sorte. Depois que o óbvio se reafirma como o óbvio, um bilionário aparece oferecendo esse caminhão de dinheiro para ter Moore por uma noite. O dinheiro é a solução para todos os problemas do casal – se o evidente dilema ético da proposta puder ser superado.
O que nós temos é um vai-e-vem em torno de tabus, questões éticas e dilemas conjugais, conforme ambos mudam de opinião e conforme a presença do personagem de Redford vai criando uma espécie de triângulo emocional doentio. Proposta Indecente pode não ser o filme mais bem executado dessa lista, mas ele nasceu para ser polêmico. E continua sendo.
6. Orquídea Selvagem (1989)
Um exemplar não apenas de erotismo, mas quase pornografia. E com um toque latino! Orquídea Selvagem é um filme menos complexo do que os anteriores, mas cuja polêmica gira em torno do fato de ser praticamente um soft porn de grande orçamento e envolvendo nomes de peso em Hollywood na época. O que chama realmente a atenção no filme é menos o que está em cena, e mais o que aconteceu fora dela.
O diretor e roteirista, Zalman King, foi obrigado a eliminar algumas cenas de sexo entre os protagonistas Rourke e Ottis sob o risco de o filme receber um X-rating, que a censura americana reserva apenas para material pornográfico ou outros inviáveis de se exibir para um público regular. Obviamente, isso iria limitar brutalmente o potencial comercial do filme.
O que significa que a edição original do filme era ainda mais erótica do que a que foi aos cinemas. Então, até dá para entender o tal do X-rating, porque o filme, por si só, está a um passo de ser exibido em canais “fechados”, se é que o amigo leitor entende.
A trama, como dissemos, não tem nada de complexa. Voltamos ao conceito do sexo como forma de poder, com Jacqueline Bisset usando Mickey Rourke – no auge da sua forma – como peão em um jogo de sedução envolvendo uma jovem competidora de um cargo corporativo, Carré Ottis. Claro, em se tratando de dois jovens extremamente atraentes, o controle do jogo rapidamente foge das mãos da personagem de Bisset.
Uma dica – não assista esse filme com a família do lado. De verdade.
5. Os Sonhadores (2003)
O primeiro dos filmes de Bernardo Bertolucci na lista (e você sabe qual é o outro), Os Sonhadores talvez seja um dos filmes mais liberais dessa lista. Tão liberal que quase prejudicou em um nível particular a atriz Eva Green, que alegou posteriormente em entrevistas que quase se estafou emocionalmente por ter que andar nua pelo set durante uma parte considerável da produção. Não somente isso, mas também por apresentar uma das dinâmicas de relacionamento mais controversas de toda essa lista. Se você acha que está jogando o jogo liberalismo bem, Bertolucci nos mostra o que é o nível hard da coisa.
Não poderia ser diferente. O filme se passa durante a revolução estudantil de Maio de 68 na França, um momento histórico onde jovens se uniram com um único objetivo – lutar contra o establishment. Enquanto do lado de fora, uma revolução acontecia, dentro do apartamento dos irmãos Isabelle e Theo acontecia uma pequena revolução na vida de Matthew, um estudante de intercâmbio.
Embora o filme não seja absolutamente genial, ele trabalha a sexualidade de um ponto de vista natural que, em um determinado ponto, surte efeito. Quando se descreve o filme como um triângulo amoroso entre dois irmãos gêmeos e um garoto, sendo todos muito jovens, existe um óbvio choque. Entretanto, o filme exibe tanta nudez, tanto sexo, com tanta naturalidade, que em algum lugar esquecemos que aquilo deveria nos chocar.
A imagem dos corpos nus torna-se apenas mais um elemento na tela, e, quando ultrapassamos esse limite, conseguimos nos focar no que realmente se trata a trama – o envolvimento emocional entre os protagonistas. Pode-se dizer muita coisa sobre esse filme, mas não que Bertolucci não prova o seu ponto – sexo choca enquanto achamos que ele deve chocar.
4. Ata-me! (1990)
Pedro Almodóvar é sempre um cineasta em que se deve prestar atenção. Ele é provavelmente um dos melhores analistas de relações humanas em Hollywood nesse momento – por mais controversos que seus filmes possam eventualmente ser, todos os seus filmes são absolutamente reconhecíveis, e nenhum deles é raso ou fácil de se entender. Ata-me, uma de suas primeiras parcerias com seu “muso” Antonio Banderas, não é diferente.
Não bastasse o duo Almodovar/Banderas ser o bastante para chamar atenção o filme também está envolto em polêmica – tendo sido um sucesso de público e crítica na Espanha, o filme quase naufragou em terras americanas. O puritanismo ianque quis aplicar sobre o filme o já mencionado X-rating, reservado a filmes pornográficos ou inviáveis para o público comum. Entretanto, o valor artístico do filme foi considerado tamanho, que a censura americana criou uma nova classificação – NC-17 – para que o filme pudesse ser exibido em cinemas comuns.
A trama mostra Rick, paciente de uma instituição psiquiátrica que, ao sair, decide ir até Marina Osorio, um ex-atriz pornô com quem ele havia dormido durante uma de suas fugas da instituição. Obcecado pela mulher, Rick acaba conseguindo prende-la a uma cama, e decide não deixa-la sair dali até que ela aprenda a ama-lo. Obviamente, o filme envolve uma carga pesadíssima de bdsm, quase justificando o veto inicial da censura americana.
Ata-me!, apesar de não ser um filme fácil de se digerir, é um grande exemplo de como a mente de Almodovar funcionava quando mais jovem. Como dissemos, ele é um observador das relações humanas, e sempre fez questão de expor sem dó, mas com classe, o que existe por baixo das aparências.
E se não bastasse tudo isso, a trilha sonora ainda é de Ennio Morricone. Quer mais?
3. 9 ½ Semanas de Amor
Mais um filme com Mickey Rourke na lista, contando também com o furacão Kim Bassinger no auge da sua forma. Outro filme que explora o lado mais devasso do sexo, com momentos explícitos de bdsm (aparentemente, as pessoas em Hollywood não se contentam com sexo só bacana), 9 ½ de Amor se tornou uma espécie de clássico/referência em termos de “pornografia” socialmente aceita.
Uma parte dessa consistência se dá pelo fato de que as atuações do casal protagonista são boas. Rourke não é considerado uma promessa perdida à toa – ele tinha talento, e o demonstrava. Bassinger também não era de todo ruim, e esse filme é uma prova disso. Com um roteiro não denso, mas sexualmente pesado, seria muito fácil perder a mão, o que não acontece aqui. Entre filmes que nós podemos chamar de eróticos, 9 ½ de Amor talvez seja um dos mais bem executados – dentro das possibilidades, claro.
O mote do filme gira em torno da distinção que muitas vezes fazemos entre nossas vidas sexuais e outros setores dela. Muitas pessoas pensam de forma compartimentada – trabalho não se mistura com família, que não se mistura com sexo, que não mistura com amizade, e por aí vai. O personagem de Rourke é assim; a personagem de Bassinger, não. O que provoca uma clara cisão entre eles – embora o sexo seja instigante, não existe uma real aproximação desse limite. O que não significa, em absoluto, que não exista relação nenhuma.
A dificuldade em observar esses compartimentos da vida é o que força a relação entre eles para um determinado rumo. E, de certa forma, uma reflexão para o espectador. Exatamente por causa dessa complexa relação – e, claro, pelo sexo – 9 ½ foi um sucesso comercial. Em terras paulistanas, por exemplo, o filme chegou a ficar cerca de um ano e meio sendo exibido ininterruptamente no Cine Belas Artes.
Um feito e tanto para um filme de “apenas” sexo.
2. Instinto Selvagem (1992)
É claro que sim. Você tinha alguma dúvida de que esse filme estaria aqui?
O amigo leitor já percebeu que a virada dos anos 80 para os 90 foi recheada de filmes com altíssimo teor erótico e diversas quebras de paradigmas no cinema. Pois coube ao brilhante diretor holandês Paul Verhoeven criar esta que talvez seja a mais emblemática obra erótica do cinema mainstream hollywoodiano.
Como não poderia deixar de ser, o filme é todo envolto em polêmicas. Mesmo antes de ser lançado, Instinto Selvagem gerou imensa controvérsia pela sua enorme carga de sexualidade, além de uma representação explícita de violência. Ele sofreu uma imensa oposição de ativistas dos direitos homossexuais, que criticaram o filme pela maneira como exibia relações homossexuais – além, é claro, da representação de uma mulher bissexual como uma psicopata assassina e narcisista. Um currículo e tanto.
Apesar dessas reprimendas iniciais, não há o que discutir – Instinto Selvagem foi um sucesso colossal. Com Sharon Stone habitando os sonhos molhados de 11 entre cada 10 membros do público masculino do período – e com o bônus de Michael Douglas ainda aceitável para o feminino – o filme arrecadou mais de 350 milhões de dólares de bilheteria; o que, no início dos anos 90, era quase inacreditável para um suspense erótico.
A trama fala sobre um detetive que investiga o assassinato de um rockstar famoso. Todas as pistas levam a romancista interpretada por Sharon Stone, que escrevia um livro cujo crime era rigorosamente idêntico às circunstâncias do assassinato. Assim, ela passa a usar todo seu poder de sedução para conduzir aqueles que deveriam conduzi-la.
Outra das polêmicas envolvendo o filme veio à tona somente em 2006, quando Stone declarou que a épica cena da cruzada de pernas foi filmada sem sua permissão. Com ou sem permissão, o fato é que a cena entrou para a história do cinema. E o público masculino – e uma parcela do feminino – agradece.
1. O Último Tango em Paris (1972)
Obviamente, o amigo leitor já sabia qual filme estaria no topo da lista. Cercado de polêmicas intensas, que no início envolviam violência gráfica e estupro em tela que lhe renderam altos índices de censura na época, e posteriormente se tornaram afirmações abertas de estupro real no set, Último Tango é uma daquelas obras que nos provocam de uma tal forma, que às vezes somos obrigados a nos questionar sobre o real valor da obra em si.
O próprio conceito da narrativa, um homem viúvo de uma suicida que passa a ter um relacionamento estritamente sexual com uma garota muito mais nova enquanto ainda está de luto, já é perturbador o bastante. Mas quando se vê como esse relacionamento se desenvolve, é ainda mais difícil de deixar a obra se desenrolar, porque as cenas não são somente muito eróticas – elas forçam o limite do que consideramos aceitável.
Porque, diferente da pornografia chula, que é simplesmente apresentação banal de sexo, Último Tango se pretende ser uma obra de arte, e Bertolucci, que por louco que possa ser, é um bom diretor e consegue criar um certo nível de conexão e empatia com a narrativa e seus personagens. O que é um problema, porque, como dissemos, tudo no filme é muito perturbador, e se conectar com ele não provoca a melhor das sensações.
Muitos diriam aqui que não é função da arte somente agradar – que é isso que a diferencia de mero entretenimento. Mas o fato é que esse filme nos leva longe nesse questionamento, e a luz dos fatos recentes no obriga a perguntar se mesmo a arte não deve questionar a si mesma, antes de se propor a questionar seu público. Maria Schneider que o diga. Afinal, até onde podemos afirmar que Brando estava realmente atuando?
É para se pensar. Mas não somos nós que vamos responder.
Menções Honrosas:
Império dos Sentidos (1976 - Nagisa Ôshima)
Ninfomaníaca: Vol. I e Vol. II (2013 - Lars von Trier)
Crítica | Lion: Uma Jornada para Casa
Inspirado no livro auto biográfico, “A Long Way Home” (2012), “Lion – Uma Jornada Para Casa” conta a história do autor, Saroo Brierley, que se perdeu da família biológica aos cinco anos de idade e vinte e cinco depois tenta encontrá-los.
Lion é um filme de estrutura pautada sempre em pares e dividido em duas metades. É sobre a ida e a volta de um indivíduo por suas origens. Na primeira parte, passada na Índia, Saroo (Sunny Pawar) é um garoto de família pobre e, junto ao irmão mais velho Guddu (Abhishek Bharate), tenta de tudo para conseguir trocados que complementem na renda de casa. Desde ajudar a mãe no trabalho pesado de carregar de pedras, até roubar carvão em trens de carga e, sempre com bom humor, Saroo almeja o dia em que poderá comprar os apetitosos jalebis. Numa noite, Guddu vai à área movimentada da cidade para trabalhar e leva o pequeno consigo, que acaba se perdendo, entrando num trem errado e indo parar na grande Calcutá, há cerca de 1600 km de sua cidade. Por algum tempo vive na rua até que vai parar num orfanato, porém, é incapaz de dizer de onde veio e acaba indo para a fila de adoção, sendo então levado por uma família da Austrália.
Saroo mais velho (o vencedor do Bafta 2017 Dev Patel, de Quem Quer Ser um Milionário? e Chappie) abraçou a nova cultura. Somos apresentado a um homem forte e saudável saindo da água trajando roupas modernas de surf, uma cena que reforça sua metamorfose plena. Ele fala com sotaque australiano e até diz torcer no críquete para seu país de criação ante o biológico (ambos são rivais no esporte). Seu alter ego juvenil é um estranho para si mesmo, até que, numa festa de amigos, suas lembranças reprimidas são reativadas ao defrontar-se com uma porção de jalebis. O herói, então, sente o vazio de uma vida inteira deixada para trás. Ele ouve os gritos de desespero de sua mãe que perdeu um filho e de Guddu procurando-o na estação de trem.
As duas histórias caminham paralelas. Na Índia do jovem Saroo, tudo que a falta de dinheiro esvazia, é preenchido com o amor que une sua família e o cuidado que um tem pelo outro. Apesar da vida ser mais difícil, é muito mais simples. O próprio tom desse ato é mais leve e tem menos diálogos – todos no idioma local (hindu), evitando ocidentalizações. O diretor, inclusive, diz que inspirou-se muito na animação Wall-E (2008) para contar essa história e sabe como captar a inocência e ingenuidade no olhar do jovem Sunny Pawar. Por outro lado, nos anos posteriores, a segurança financeira da casa é garantida. A instabilidade é emocional, já que o problemático irmão mais velho Mantosh (Divian Ladwa) – também adotado e indiano – sofre de algumas psicoses e aptidão por más decisões, causando situações que tiram o sono da mãe (Nicole Kidman). Saroo vive bem, mas assim que se depara com o vácuo dentro de si por causa da perda de suas origens, começa a desmoronar. Há dois momentos de perdição para o personagem principal e são justamente quando ele perde a figura que o guia. Na primeira metade é Guddu, na segunda, a namorada interpretada pela sempre ótima Rooney Mara (A Rede Social e Millennium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres). São princípios paralelos e opostos ao mesmo tempo.
A partir do ponto que sua memória reativa-se pelo olfato, Saroo passa a lembrar-se da infância na Índia. Ele não sabe o nome da cidade, mas enxerga uma caixa d’água na estação de trem e, usando de uma “nova descoberta” tecnológica, o Google Earth, Saroo inicia sua busca. Sozinho, assim como no final da outra metade do longa-metragem.
A relação do personagem principal com alguns coadjuvantes, como seu irmão e pai adotivos, é mal investigada, mas a ligação que Saroo estabelece com suas mães, ou seus suportes (Guddu e a namorada) atinge profundidade íntima necessária, compensando.
O diretor estreante Garth Davis tem mão muito segura na condução da trama. Ainda que aplique uma estética básica de construção narrativa, ele não deixa pontas soltas, nem subestima o telespectador, evitando explicações literais. Tudo flui bem e é fácil de digerir, mas é um filme comercial, afinal começa com um picote de paisagens e termina com uma música pop feel good para que o público consiga se recompor rapidamente do final comovente. A trilha, melosa e enjoativa na maior parte – principalmente nos momentos enternecedores –, ganha temperos vibrantes e distinto quando mescla elementos indianos na composição.
Garth Davis dá a entender que tem plena noção da proposta do filme e cuidou para que o tom fosse leve. Por mais que seja gostoso de assistir, o público não pode permitir-se a desatinar em choro, pois o drama não se estende por tempo o suficiente. No final, só algumas lágrimas bastam para absorver Lion e preencher o vazio que somos levados a sentir junto com Saroo Brierley.
Lion: Uma Jornada para Casa (Lion, EUA, Austrália, Reino Unido – 2016)
Direção: Garth Davis
Roteiro: Saroo Brierley, Luke Davies
Elenco: Dev Patel, Nicole Kidman, Rooney Mara, Sunny Pawar
Gênero: Drama biográfico
Duração: 118 minutos
Escrito por Rodrigo de Assis
https://www.youtube.com/watch?v=R08HjFmDa3A
Salvar
Salvar
Crítica | Minha Vida de Abobrinha
A animação em stop-motion é uma técnica que teima em resistir em um mundo onde a animação em 3D impera. Difícil de produzir, leva-se anos para concluí-la e, na maior parte dos casos, não há o mesmo retorno financeiro que as animações produzidas em computação gráfica. Para o grande público, existem apenas dois sobreviventes do movimento, os ingleses do estúdio Aardman Animations (Wallace & Gromit, Fuga das Galinhas, Piratas Pirados), e os americanos do estúdio Laika (Coraline, Paranorman e Kubo). Mas há vida para esse tipo de animação em outros lugares, como é o caso do diretor Claude Barras, que há algum tempo vem produzindo curtas no gênero e finalmente pode mostrar sua técnica com o novo filme, adaptação de um livro escrito pelo autor Gilles Paris, Minha Vida de Abobrinha (Ma Vie De Courgette, 2016).
A animação franco-suiça conta a história de Icare (apelidado de Abobrinha), criança de 9 anos que, após a morte súbita de sua mãe, acaba sendo levado para um orfanato. Neste lugar, Abobrinha conhecerá outras crianças, que como ele, tiveram experiências traumáticas com seus pais. A procura de um amor fraterno e um passado traumatizante, todas as crianças dividem o mesmo fardo. Tal fardo que as transformou, fizeram-nas do jeito que Abobrinha encontra no início do filme.
As crianças são o ponto alto da película, com pensamentos existencialistas e mais maduros do que os adultos ao seu redor, a animação nunca esquece de que apesar de tudo elas ainda são crianças. Ainda brincam, fazem estripulias, tentam entender como é esse tal de amor e como isso leva os adultos a transpirarem muito e deixarem o “piu-piu explodir”. Outro elemento que ajuda muito na caracterização é o excelente elenco infantil na dublagem original, com vozes que transparecem a genuinidade dos diálogos.
Apesar do passado triste das crianças, o filme acaba sendo um sopro de esperança em seus futuros. Ao contrário do tom pesado nos diálogos que remetem às suas trágicas histórias, a trama equilibra bem o tom do filme e se torna aconchegante.
A animação consegue dar maturidade e camadas para os personagens sem perder sua essência e não confiná-los a apenas estereótipos do gênero. Simon, por exemplo, é um garoto que não é apenas o bully da história. Ele evolui de tal jeito durante o filme que ao final dele se torna um personagem completamente diferente do que é proposto no início. O roteiro não tem vergonha de discutir temas pesados quando se trata dos parentes ausentes das crianças, como abuso infantil e uso de drogas e álcool. Cada uma é bem explorada no roteiro e tem seu espaço no longa. Ao final, nos sentimos extremamente familiarizados com elas e até com certa vontade de continuar acompanhando suas jornadas ao final dos breves 60 minutos de filme. E isso é infelizmente um dos pontos negativos, já que o filme em alguns momentos parece passar rápido demais em alguns problemas e não há um senso de perigo tão grande. Alguns minutos extras não fariam mal para o desenvolvimento de certas passagens.
Indicado a melhor animação ao Oscar, à primeira vista já é possível perceber a razão pela ovação nos prêmios internacionais. A técnica de stop-motion da animação é extremamente fluida e com um cuidado muito particular nos detalhes dos cenários. Barras escolhe locais menores e fechados para dar ênfase na qualidade da animação dos personagens, ao mesmo tempo que prioriza o diálogo e a interação entre eles.
A direção de arte intensifica as emoções dos personagens e seus formatos dizem muito sobre cada um deles. Os olhos grandes, corpo pequeno e braços cumpridos, cada personagem tem sua identidade realçada pelos detalhes visuais. Das cores no cabelo, nas olheiras e nas roupas. A trilha sonora de Sophie Hunger também é um ponto forte, extremamente eclética, misturando ritmos de rock, jazz e blues.
Minha Vida como Abobrinha é uma linda e intimista animação em stop-motion francesa, que ganha o espectador pela forma madura de como desenvolve os temas de seus personagens. Abobrinha e seus amigos são crianças, entendem o mundo como crianças, mas refletem o abuso que sofreram através da auto-reflexão e a compreensão de seu papel no mundo adulto. Uma ótima estreia para o diretor Claude Barras.
Minha Vida de Abobrinha (Ma Vie De Courgette, Suíça, França - 2016)
Direção: Claude Barras
Roteiro: Céline Sciamma, Claude Barras, Germano Zullo, Morgan Navarro
Elenco: Gaspard Schlatter, Sictine Murat, Paulin Jaccoud, Michel Vuillermoz, Raul Ribera, Estelle Hennard, Elliot Sanchez, Lou Wick
Gênero: Animação, Drama
Duração: 66 min
https://www.youtube.com/watch?v=sCbQf-enVXs