Crítica | Amnésia
Certa vez, Alfred Hitchcock disse ser essencial que, ao ver um filme pela primeira vez, o espectador sinta que todos os acontecimentos são verossímeis, mesmo que o roteiro tenha alguns "furos". Claramente, muitas das obras que conquistam a simpatia inicial do público, quando revistas, não se sustentam e revelam ter erros que passaram despercebidos anteriormente. Exemplos cristalinos disso são as dirigidas por Christopher Nolan. À primeira vista, causam deslumbramento. Numa revisão, perdem boa parte de seu charme. No entanto, nem todas elas sofrem desse problema. Casos como A Origem e, principalmente, Amnésia (o assunto desta crítica), ao invés de empobrecerem em consultas posteriores, enriquecem cada vez mais.
Desenvolvido pelo próprio diretor a partir de uma história escrita pelo seu irmão, Jonathan Nolan, o roteiro conta a história de Leonard (Guy Pearce). Em decorrência de um ataque sofrido no momento em que a sua esposa (Jorja Fox) era estuprada e assassinada, ele desenvolveu uma doença cognitiva constituída da perda de qualquer memória adquirida recentemente. Como deseja ir atrás do sujeito responsável pelos principais males de sua vida, pinta o corpo de tatuagens e tira fotos de todas as situações pelas quais passa para se lembrar das coisas que lhe acontece. Para piorar, tem de conviver com Teddy (Joe Pantoliano) e Natalie (Carrie-Anne Moss), duas pessoas cujo comportamento é escuso.
Em essência, a história de Amnésia é extremamente simples. A quantidade de filmes que giram em torno de premissas similares é incontável. Na verdade, o mérito de Nolan não reside no conteúdo da trama e sim na maneira com que ela é contada. Assim como William Faulkner colocou o leitor na mente de um autista no romance Som e Fúria, o diretor, no seu segundo longa-metragem, nos faz enxergar o Mundo através dos olhos de um sujeito portador de amnésia. É através da fragmentação de sua memória, que oscila entre lembranças pretéritas e o desaparecimento gradual dos últimos acontecimentos, que nós tentamos encaixar as peças do quebra-cabeça.
Para obter esse efeito de cumplicidade entre o público e o protagonista, Nolan lança mão de três recursos: a proximidade da câmera, uma história que se desenrola do fim para o começo (o efeito retroativo na cena inicial é um inteligente foreshadowing) e o emprego de cores em uma das duas narrativas. O primeiro aspecto é essencial para criarmos intimidade com os conflitos de Leonard e, assim, acreditar no que ele diz e ouve; a segunda, porque nos faz enxergar a história da mesma forma que o personagem, ou seja, através de uma perda progressiva das lembranças mais recentes. Ainda sobre esse segundo aspecto, é importante ressaltar a subversão realizada pelo diretor. Quase todas as histórias caminham para um terceiro ato em que as pontas soltas são atadas e a trama culmina em um clímax poderoso. Ao começar pelo fim e voltar até o início, o diretor transforma o terceiro ato na epítome da jornada interior do protagonista e não da história, pois passamos a flertar com ponto decisivo da sua vida: a morte da esposa. Por fim, o terceiro aspecto, que diz respeito às cores, serve para criar choques entre tons (a vivacidade da camisa azul cria um contraste forte com a palidez do terno creme) e desnortear, parcialmente, o espectador.
Esses três elementos, juntamente com a narração em off, que verbaliza os pensamentos de Leonard, são vitais para permanecermos num estado de confusão idêntico ao do personagem. É impossível saber em quem confiar ou discernir a verdade da mentira. Nesse sentido, o filme atinge um nível sufocante de tensão e, mesmo que por breves momentos, podemos sentir a angústia proveniente da incapacidade de construir a própria história, uma vez que o tecido usado na confecção de nossas biografias é o mesmo empregado na formação das lembranças. Além disso, não há como não se entristecer vendo a pequenez das pessoas que se aproveitam de uma deficiência alheia para obter algo.
Porém, como não parece ser do interesse de Nolan deixar toda a história na seara da subjetividade, inteligentemente, ele introduz uma narrativa paralela muito mais objetiva. Usando um preto e branco acinzentado, sem muitos contrastes, alguns planos distantes da ação, uma subtrama envolvendo uma interessante anedota, além, é claro, de um desenrolar linear, o diretor adota uma atmosfera mais sóbria para oferecer sutilmente as chaves necessárias para que possamos chegar às nossas próprias conclusões. Àqueles que têm dificuldades para entender as linhas temporais do filme, basta usar o seguinte exemplo numérico: 1 é o começo da história, e 10, o fim. A narrativa em cores começa pelo fim, isto é, no número 10, e a preta e branca se inicia no número 1. Como anda de trás para frente, a que começa no número 10 vai até o número 4, e como a que começa no número 1 é linear, ela vai do início também até o número 4. Nesse exato momento, as bifurcações se conectam.
Também achando espaço para comover o espectador (mérito da vulnerabilidade que Pearce consegue transmitir pelos olhos e da pontual e eficiente trilha sonora de David Julyan), Amnésia é um experimento com a linguagem perfeitamente funcional de um diretor que ainda estava dando os seus primeiros passos no Cinema. A segurança e domínio de certas ferramentas que Nolan mostra ter aqui são impressionantes. Melhorando ainda mais o filme, alguns problemas que se tornariam recorrentes nos longas posteriores, como diálogos expositivos, pobreza cênica e dificuldade em estabelecer a geografia das cenas, não dão as caras neste seu segundo longa. Finalmente, é uma obra que consegue sobreviver às revisões.
Seria muito dizer que é uma das grandes obras-primas de sua carreira até o momento?
Amnésia (Memento, EUA – 2000)
Direção: Christopher Nolan
Roteiro: Christopher Nolan
Elenco: Guy Pearce, Joe Pantoliano, Carrie-Anne Moss, Jarja Fox
Gênero: Suspense/Drama
Duração: 113 min
https://www.youtube.com/watch?v=sHRiMXd5fos
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Crítica | Following
É possível perceber, em Following, algumas das características que se tornariam recorrentes na filmografia de Christopher Nolan: se concentrando em personagens que enfrentam situações tremendamente complexas e que se tornam cada vez mais surpreendentes conforme a narrativa progride, esta obra é comandada por um diretor que sabe aonde pretende chegar e que consegue estabelecer uma atmosfera tensa, imersiva e que leva o espectador a mergulhar na realidade de um protagonista intrigante. É, portanto, um retrato da voracidade de Nolan enquanto realizador, ainda mais quando consideramos que ele estava apenas estreando e começando uma jornada incrivelmente espirituosa.
Modestamente produzido dentro dos limites de um orçamento de míseros US$ 6 mil, Following gira entorno basicamente de três personagens e se passa em cenários que, além de pequenos, são poucos. O roteiro, escrito pelo próprio Nolan, gira entorno de um jovem escritor anônimo e fracassado que passa a observar e seguir pessoas escolhidas aleatoriamente no meio da rua. Ao manter essa rotina, porém, o sujeito é confrontado por Cobb, um ladrão que decide convidar o protagonista para acompanhá-lo em suas constantes invasões domiciliares. A partir daí, o escritor é inspirado progressivamente por Cobb e passa a emular alguns traços de sua personalidade, chegando a se identificar como Daniel Lloyd em função disso - as consequências disso, entretanto, levarão o follower a uma série de dúvidas e surpresas nada agradáveis.
Assim, é fácil constatar que o roteiro de Nolan é hábil ao desenvolver um protagonista curioso ao mesmo tempo em que o posiciona no centro de uma situação insana. O suspense dessa desventura é construído com cautela e sofisticação: após um primeiro ato hábil ao introduzir a realidade estranha de um indivíduo que não sabe para onde ir, o filme é inteligente ao dar continuidade a este drama estabelecendo uma conexão direta entre a personalidade vazia do sujeito e seus impulsos criativos. Em suma, o protagonista de Following é um homem terrivelmente disperso que é movido pelo desejo de encontrar uma razão para viver, se prendendo em personalidades que vêm e vão antes de ser massacrado pela única identidade que, aparentemente, foi capaz que conferir um foco à vida do protagonista.
Mas os méritos de Nolan não se limitam ao ótimo roteiro (que, diga-se de passagem, utiliza recursos como a ironia dramática e os plot-twists com competência, movendo a trama em vez de interrompê-la para atirar floreios narrativos gratuitos), já que o cineasta também se encarrega de dirigir a fotografia da obra - e, nisto, o realizador merece aplausos: concebido essencialmente em preto e branco, Following é fotografado de uma maneira que não só enriquece a própria mentalidade do protagonista (que vive em busca de... "cores") como ainda cria imagens belíssimas através do contraste onipresente e estudado entre preto, cinza e branco (e uma das minhas sequências favoritas é aquela, entre o segundo e o terceiro ato, onde um personagem luta contra outro que está com o rosto escondido pelas sombras).
O mesmo brilhantismo pode ser observado nas outras áreas técnicas da obra: montado por Gareth Heal e pelo próprio Nolan, Following honra o conceito de montagem paralela (um aspecto que, novamente, se transformaria numa das marcas registradas do cineasta em seus projetos seguintes) ao oferecer vislumbres do que virá a acontecer no decorrer da projeção, atingindo o ápice da eficácia na última cena do filme ao "passear" entre dois diálogos que ocorrem em tempos e lugares diferentes, mas que são fundamentais ao complementarem uns ao outros. Por sua vez, o design de produção é elaborado por Tristan Martin de maneira meticulosa e eficiente, destacando-se especialmente ao ilustrar o desconforto e o espírito fracassado do protagonista ao trazê-lo morando num apartamento minúsculo e que exibe uma máquina de datilografar antiga em meio a uma mesa bagunçada (sem contar, é claro, a parede dominada por cartazes de Crepúsculo dos Deuses, Casablanca, Cães de Aluguel, O Iluminado e uma foto de Marilyn Monroe).
Já a trilha sonora - composta por David Julyan - se mostra eficaz ao potencializar o clima de estranheza que caracteriza a narrativa, ao passo que o design de som é eficiente ao colaborar para que a tensão seja atenuada em determinados momentos (algo que fica claro logo numa das primeiras conversas entre Young Man e Cobb, quando o segundo arrasta uma colher numa xícara de café criando um ruído angustiante). Por outro lado, quando o filme se aproxima de sua conclusão, o baixo orçamento da produção começa a gerar alguns problemas, algo que fica nítido quando dois personagens brigam no terraço de um prédio e desferem socos, pontapés e tijoladas claramente ensaiadas (esta cena, inclusive, indica que Nolan sempre teve dificuldades ao dirigir sequências de ação, já que o planejamento da mise-en-scène não é dos mais cuidadosos e compromete o entendimento do que ocorre em tela).
Durando ligeiros 70 minutos, Following é pontualmente prejudicado pelo ritmo que Christopher Nolan encontra ao contar sua história, sendo então um alívio que a projeção seja curta o suficiente para finalizar antes que se torne entediante ou cansativa. É neste projeto pequeno que Nolan inicia uma carreira que viria a ser admiravelmente grandiosa, demonstrando na medida do possível que, desde o princípio, ele já era um diretor fora do comum e que tinha muito que apresentar nos anos posteriores.
Following (Idem, Reino Unido – 1998)
Direção: Christopher Nolan
Roteiro: Christopher Nolan
Elenco: Jeremy Theobald, Alex Haw, Lucy Russell e John Nolan
Gênero: Suspense
Duração: 70 min
https://www.youtube.com/watch?v=RHRnYeZL5Pc
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Crítica | Divertida Mente
Desde 2012, o estúdio de animação mais conceituado do ocidente não trazia histórias originais. E, convenhamos, elas faziam muita falta. A Pixar manteve seu padrão de qualidade com os últimos dois filmes: Valente e Universidade Monstros, porém, agora com Divertida Mente, ela volta a surpreender e marcar ainda mais em nossas memórias porque amamos tanto seus diversos trabalhos.
Riley e sua família vivem tranquilamente felizes em Minnesota, porém, devido ao trabalho de seu pai, eles são obrigados a mudar para a apressada cidade de São Francisco. Logo, a pequena garota tem que se adaptar ao encarar a verdadeira primeira mudança em sua vida. Porém, dentro de sua cabeça, suas emoções, Alegria, Tristeza, Raiva, Medo e Nojinho, trabalham incessantemente para deixar a garota mais confortável com a situação. Entretanto, após um acidente e uma descoberta intrigante, Alegria e Tristeza acabam se perdendo dentro da cabeça da menina. Apenas com a Raiva, Medo e Nojinho trabalhando, Alegria e Tristeza correm contra o tempo para que sua ausência não resulte em uma mudança permanente na personalidade de Riley.
Divertida Mente é o fantástico caso do filme de roteirista – quando o roteiro é tão forte que eclipsa as outras áreas da produção. Geralmente, nesses casos, os próprios roteiristas são responsáveis pela direção do filme. Aqui não é diferente, três roteiristas – Meg LeFauve, Josh Cooley e Pete Docter, desenvolvem o texto da história original criada pelos diretores Pete Docter e Ronaldo Del Carmen.
O texto é excelente. Mesmo pisando em um terreno que já fora explorado em Osmose Jones, eles tomaram muito cuidado para criar características próprias para o filme. Aqui, como se sabe, tudo cerceia a mente e nossas emoções – algo que nunca é fácil de trabalhar.
O mais impressionante é o teor complexo da história, apresentado de maneira simples e objetiva através dos personagens cativantes. Fiquei surpreso em notar que Alegria, Tristeza, Medo, Raiva e Nojinho não são literais. Ou seja, cada personagem não fica preso na própria natureza de sua proposta. Entretanto, apenas dois são realmente muito bem trabalhados: Alegria e Tristeza. Os outros, infelizmente, servem apenas para continuar a ação, apresentar piadas – algumas incluem o humor slapstick, e motivar conflitos. Acabam virando alegorias, instrumentos de roteiro, mas muito carismáticos.
O que os roteiristas deixam de agregar com as outras emoções para o drama que acontece dentro da cabeça de Riley, eles trabalham com maestria a óbvia dicotomia entre Alegria e Tristeza. O maior acerto, porém, está no intenso trabalho de amadurecimento de Alegria, afinal ela também é parte de Riley, jovem e ingênua. Em diversas cenas a personagem ganha maior complexidade, seja na evidente obsessão em deixar Riley sempre feliz, em seu egoísmo e no aprendizado da inusitada convivência com seu oposto.
Tristeza também é bem explorada, porém, ao contrário de Alegria, a personagem já apresenta alguma maturidade. Mas é exatamente aí que entra o fator mágico e único da Pixar: ela não tem conhecimento de si mesma para afirmar tudo isso. Conforme o filme progride, mais Tristeza se torna funcional e orgânica. O engraçado é que a catarse nunca ocorre para a personagem em si, mas para todos os que a rodeiam. São momentos únicos e encantadores que amadurecem não somente o filme, mas como a todos nós.
A história é igualmente encantadora e faz jus a seus personagens maravilhosos, porém acredito que este seja um dos longas mais previsíveis em seus movimentos e reviravoltas de todo o acervo do estúdio. Muitas características são apresentadas para enriquecer esse universo – sempre em diálogos mais expositivos e didáticos que o necessário — porém, logo se percebe que a mesma será responsável por algum twistfuturo. A fórmula para conferir urgência no retorno de Tristeza e Alegria para a “central de comandos” da cabeça de Riley infelizmente é repetitiva. Uma vez que se nota a repetitividade desses acontecimentos-chave, fica fácil de prever o que ocorrerá em cena nos minutos seguintes, incluindo o desfecho do filme.
Outro fator que desagrada é o desfecho concedido para um dos melhores personagens, Bing Bong, ex-amigo imaginário de Riley que ajuda as emoções a encontrarem o caminho de volta para casa, pois contraria o próprio texto e algumas memórias apresentadas durante o longa. Além disso, ao mesmo tempo que consegue ser original em diversas coisas, o estúdio mergulha no clichê durante algumas passagens, mas nada que chega a incomodar de fato. O mais estranho é o critério de interpretar Riley. Tudo fica ainda mais complicado por conta de suas emoções serem mais complexas que ela. Ou não? A relação entre Riley e suas emoções é ao mesmo tempo simples e complicada. No meio disso tudo, aparentemente, a personagem fica perdida nas idas e vindas de sua cabeça – nunca a conhecemos de fato.
Como havia dito, os méritos do filme se concentram principalmente por conta do roteiro, porém, design de produção e a direção de Pete Docter e Ronaldo Del Carmem são dignas de aplauso. O departamento de design acerta muitas coisas e é questionável em algumas. Como sempre, a Pixar faz milagre em reproduzir o complexo em formas simples. Aqui, tudo é muito funcional e óbvio ao mesmo tempo que exalta o trabalho primoroso da imaginação desses artistas. Orbes, prateleiras, tubos, as ilhas, nuvens, sonhos, medos, enfim, absolutamente tudo, tem um propósito único de sua existência – não se trata apenas de ser fofinho e colorido para vender brinquedos.
O design das emoções é fantástico, ao menos das que vivem em Riley: Tristeza, Medo, Raiva – reparei que toda a figura do personagem se aproxima muito a do ator Lee J. Cobb em Doze Homens e Uma Sentença – e Nojinho – a escolha das cores não poderia ser mais acertada. Entretanto, a concepção de Alegria lembra em demasia com o conceito original da Sininho de Peter Pan. Por mais que a proposta seja remeter Alegria com uma fadinha, leveza, pureza, etc, ainda fiquei com a impressão de se tratar de uma reciclagem caprichada apenas. Também é triste ver que as emoções que comandam a cabeça de outras pessoas terem um desenho de corpo similar – empobrece a concepção visual do longa.
Igualmente inspirada é a representação do universo de dentro da cabeça de Riley. Extremamente colorida e vibrante contrastando com os tons pálidos, frios e opacos da cidade de São Francisco. O estranho é que os tons dessaturados da realidade se mantém até mesmo depois do clímax, ou seja, há algum sentimento pessimista no fim do filme – ao menos na representação das cores.
Já veterano em dirigir filmes da Pixar, Pete Docter que liderou a produção dos ótimos Monstros S.A. e Up – Altas Aventuras, alia seu talento com o “novato” Ronaldo Del Carmem. Porém, ao contrário da sua direção elétrica nos outros dois longas, aqui temos algo muito mais introspectivo abordando os momentos únicos da infância, da vida em geral – essa característica do diretor já era explorada em algumas passagens de Up e até mesmo de Monstros S.A.
Ele começa a definir até mesmo suas marcas como autor. Docter apresenta o filme com diversas passagens da pequena vida de Riley com muita sutileza. É possível perceber o carinho do profissional em cada plano elaborado para retratar a infância da garota – algo belo de ver. Seu trabalho aqui é mais diferente de seus anteriores onde toda a diegese exalava um espírito iminente de aventura. Divertida Mente é o trabalho mais intimista, tranquilo e quieto até aqui.
Os dois diretores não ousam muito com a câmera. Ela permanece parada ou com movimentos tranquilos. Seus enquadramentos também pouco fogem da normalidade. Porém sua simplicidade não é pobre ou enfadonha, mas sim encantadora. O trabalho dos dois diretores também é destacado para representar visualmente o id, ego e superego de sua personagem, além de seu subconsciente.
O humor nunca fora tão presente em um filme do estúdio quanto neste. Talvez seja, de longe, o filme mais engraçado que eu tenha visto no ano. E com certeza, o mais emocionante.
Divertidamente divertido
Divertida Mente é o fim da crise criativa que a Pixar enfrentava nos últimos anos. O estúdio realmente ressurgiu das cinzas com um dos melhores filmes de sua história. A mensagem que ele traz é exemplar para uma sociedade que busca a felicidade a todo custo em sua plena futilidade. É incrível como a narrativa molda a importância da tristeza na vida de Riley e de todos nós.
A riquíssima história nos permite interpretá-la de diversas formas. Ou seja, é de fato um filme plural, vivo e fantástico. Um dos melhores do ano. A dublagem é igualmente exemplar – isso na versão original, cada ator sacou seu personagem muito bem. E a trilha sonora de Michael Giacchino preenche organicamente as cenas com melodias belíssimas – uma curiosidade: esta é a terceira estreia consecutiva que conta com as composições de Giacchino neste ano.
Além de marcar o retorno da Pixar à boa forma, Divertida Mente é a consagração de Pete Docter como um dos melhores diretores do estúdio. Se ainda restam dúvidas, caríssimo leitor, não há o que temer, os poucos tropeços do filme não comprometem de jeito algum seu brilhantismo e elegância.
Bem-vinda de volta, Pixar! Você nos fez uma tremenda falta.
Crítica | Transformers: O Lado Oculto da Lua
Em um passado não muito distante, o melhor piromaníaco de Hollywood, Mr. Michael Bay foi cotado para dirigir um projeto milionário. Em 2007, o projeto inspirado nos brinquedos da Hasbro originais de 1984 é lançado. Os fãs de Transformers deliram com os efeitos visuais espetaculares, mas só. O filme não tinha nada a mais para oferecer, entretanto era divertido garantindo um bom passatempo. Embalado pelo sucesso espontâneo e o imenso lucro de bilheteria, a DreamWorks e Paramount resolvem reatar a parceria que originou o primeiro filme. Logo, em 2009, os espectadores encontram A Vingança dos Derrotados. O filme também foi um sucesso de bilheteria, porém a paciência dos críticos de mundo afora havia se esgotado com as idiotices de Bay e detonaram o filme classificando-o como “O Pior Filme da Década”. Enfim, até o próprio Michael Bay confessou que o filme era uma porcaria sem tamanhos e prometeu que sua redenção estaria na última parte da saga robótica.
Bem, não foi exatamente isso o que aconteceu…
Nossa corrida espacial foi em resposta a um evento. Um objeto voador não identificado colide com a superfície terrestre da Lua. Rapidamente, o presidente John Kennedy ordena a NASA arquitetar uma missão tripulada até nosso satélite. “Temos que chegar antes dos russos”, esbraveja o presidente. Em 1969, Neil Armstrong e Buzz Aldrin aterrissam na Lua e vão investigar o obscuro objeto. Voltando ao presente, os Autobots reforçam sua parceria com os humanos fornecendo tecnologia e auxílio em combate. Porém, uma missão em Chernobyl muda o destino do futuro de nosso planeta. Agora, os Decepticons contam com um plano infalível para dominar os homens. Novamente, a esperança da salvação da humanidade reside nos Autobots e no jovem Sam Witwicky.
A Última Metamorfose
O roteiro é do abismal Ehren Kruger. O roteirista deve sofrer de amnésia, pois a história que escreveu é completamente incoerente com a cronologia da série. Lembrem-se, caros leitores, da narrativa do primeiro filme. Sim, o melhor da série, aquele que contava com o sub plot desnecessário dos hackers. Segundo o agente Simmons, o ENB-1 havia sido descoberto, completamente congelado, no séc. XIX. Então como Megatron havia contatado seu parceiro em pleno séc. XX? E porque se ocupar em encontrar o Cubo ou ajudar o Fallen quando o plano maléfico deste filme cairia como uma luva no conflito do primeiro filme?
Entretanto, Kruger tem lapsos de criatividade interessantes. A idéia de situar o início da trama em plena corrida espacial é original, porém não consegue se equiparar ao cuidado que os roteiristas de X-Men: Primeira Classe tiveram ao encaixar a narrativa na Crise dos Mísseis. Também consegue melhorar alguns personagens que eram chatíssimos em filmes anteriores, como o Wheelie. Até alguns personagens novos conseguem se destacar. Dutch e Jerry Wang são exemplos disto. O roteirista apresenta o novo bichinho de estimação de Soundwave. No primeiro filme, era o escorpião. No segundo, aquela espécie de lince metálico. E, agora no terceiro, entra em cena o melhor deles. O urubu Laserbeak é o mais carismático e cruel dos três. Kruger apresenta pela primeira vez um antagonista humano. O roteirista propõe uma história interessante a Dylan que desperta a atenção do espectador.
Kruger mantém acertos dos filmes anteriores. Por exemplo, a maneira que Bumblebee se comunica. Antes ele utilizava o rádio a fim de se comunicar e alguns movie quotes. Aqui, Bee passa a usar somente movie quotes sendo o mais expressivo “Missed it by that much” do seriado Get Smart de 1965. O roteirista também remove as piadas apelativas como a do “saco transformer”, mas as que tomam lugar mal conseguem arrancar um sorriso torto do espectador. Existe um arco conspiratório bem elaborado, mas pouco explorado em seu roteiro. Kruger também muda a imagem de Optimus Prime. Finalmente, o líder autobot recebeu um caimento bad ass em suas atitudes menos tolerantes. Outro aspecto positivo do roteiro são os novos antagonistas. Shockwave e Driller garantem as melhores cenas de ação do longa inteiro.
Porém, o lado Kruger do roteirista prevalece diversas vezes. A história não tem consistência ou profundidade. Tudo é tão raso que o espectador não se importa com nenhum dos personagens. Isso também vem da invulnerabilidade dos protagonistas. Aparentemente, Sam pode ser esmagado por uma nave de trezentas toneladas e sair sem um arranhão. É notável perceber como Ehren se esforça em criar uma história para encaixar as mirabolantes sequências de ação. Infelizmente, o roteirista enche a primeira hora de projeção com cenas irrelevantes para o desenvolvimento da história. Se todas as cenas do trabalho de Sam fossem excluídas, o desfecho do filme continuaria o mesmo. O roteirista também não cumpre o meu desejo mais solícito – minha felicidade seria tamanha se Starscream esmagasse com toda a sua força os insuportáveis Judy e Ron Witwicky, vulgos, pais de Sam. As cenas com estes personagens também são descartáveis. Infelizmente, Ehren não se esforça em aprofundar as relações entre os personagens. O relacionamento de Sam com Carly é no mínimo forçado e inconsistente.
Seu roteiro sofre com o mal da previsibilidade aguda. É impossível acreditar em algum momento nas inúmeras tramóias em que o roteirista ameaça detonar um personagem importante. Ele também não se importa em oferecer cenas épicas para a morte de alguns Decepticons e Autobots evidenciando o caráter “comercial” exploratório de sua história e seu descaso com os fãs destes personagens. Além disto, Kruger tem a constante mania de sumir com alguns dos milhares personagens da narrativa sem dar a mínima satisfação. Isso é muito evidente com Brains e Wheelie no fim do filme. Como sempre temos as significativas frases de efeito. Até que algumas são inspiradas como “You may lose your faith in us, but never in yourselves. From here, the fight will be your own…”, mas outras são simplesmente deploráveis. Por exemplo, “Whoa, little mexican standoff we got here…”. Mas esses detalhes nem se comparam com os absurdos que o roteirista impõe durante o clímax da obra.
Após muitos minutos de tortura chinesa, o espectador encontra o clímax de uma hora de duração que demora uma eternidade para passar. Para encher esse tempo, Kruger faz um ciclo vicioso e perene de plot twists. São inúmeras as reviravoltas que o clímax possui. Obviamente a paciência do espectador também vai diminuindo a cada reviravolta encontrada. Além da repetitividade imposta com essas reviravoltas, o roteirista explora diversas soluções rápidas e fáceis para vários conflitos do clímax sendo o maior deles o diálogo ridículo entre Carly, nova namorada de Sam, com Megatron. Ehren também tem a mania de descrever o que se passa na tela, duvidando da visão do espectador. Por exemplo, quando uma ponte abaixa, três personagens gritam simultaneamente que ela está abaixando. Quando os personagens caem, alguém já proclama “We’re falling D:”. Optimus ainda ordena os Autobots a mirar nos Decepticons como se isso já não fosse óbvio. O roteirista ainda tem a astúcia de insinuar uma relação Batman & Coringa entre Optimus e Megatron.
A certa altura do fim do filme, eu já não agüentava mais a pancadaria desenfreada entre pedaços de sucata. Já não me importava mais se o planeta acabasse estuprado pelos Decepticons. Só queria que uma bomba H caísse no meio do set para que tudo explodisse e o filme finalmente terminasse com alguma mensagem cósmica da caixa-preta de Optimus Prime.
Socialites, gritos e robôs
Shia LaBeouf conquistou Hollywood no primeiro Transformers. A naturalidade de sua atuação capturava a atenção do espectador quase que imediatamente. Reprisando o papel pela terceira vez, LaBeouf mantém a atuação energética, mas infelizmente não encontra espaço para inovar. A maioria do tempo, Shia grita com toda a potencia de suas cordas vocais “Bee!” ou “Optimus!”. Às vezes, o ator repete recursos de filmes anteriores como o divertidíssimo grito afeminado. A expressão facial do ator se resume aos diversos olhares expressivos. Shia leva ao pé da letra expressão corporal. Diversas vezes, o ator utiliza o corpo inteiro para revelar seu descontentamento, tristeza e surpresa. A tremedeira é uma característica amplamente utilizada pelo ator. Assim, com algumas expressões faciais bem arquitetadas, Shia torna o clímax um pouco mais verossímil. Ao menos o nervosismo que o personagem transmite é bem convincente. O timing cômico do ator também continua expressivo.
Megan Fox não retorna. Spielberg a demitiu após ela ter comparado Michael Bay com Hitler. Então, eis que chega Rosie Huntington-Whiteley, a modelo da Victoria’s Secret. Antes de conhecer o rosto da garota, o espectador conhece sua vasta bunda e suas pernas torneadas. Enquanto a “atriz” está no primeiro e no segundo ato, se sai consideravelmente bem. Afinal, as cenas destes segmentos exigem apenas a pose de socialite e o sotaque inglês da moça de beleza clássica encantadora. O horror chega ao terceiro ato. Bay pede para que a menina comece a atuar porque aquele é o suposto momento dramático do filme. Então Whiteley atua. E que conceito errado de atuação que esta garota tem. Rosie parece completamente perdida no cenário. As expressões que ela constrói são tão bizarras semelhantes àquelas quando alguém sofre de disenteria. Às vezes Huntigton, sem saber o que fazer para a câmera, esbugalha os olhos quase os fazendo saltar para fora das orbitas enquanto grita desesperadamente – “Sam!!”. A boca entreaberta, lugar comum de várias atrizes de hoje em dia, ataca novamente na atuação da garota.
John Turturro volta com uma atuação mais contida e menos caricata. De vez em quando o ator consegue divertir, mas graças à participação reduzida do personagem na história, Turturro não tem seus momentos levando a crer que ele está deslocado da narrativa. John Malkovich, quase laranja no segundo ato, é um talento desperdiçado no elenco estelar do filme. O ator explora mais sua veia cômica com expressões e gestos exagerados. Quem rouba a cena é o sempre ótimo Ken Jeong. Pela primeira vez tive a chance de conferir o ator explorar diversas expressões faciais fantásticas. Toda a sua atuação e caricata e completamente divertida – consegue fazer as piadas ruins de Ehren Kruger ter graça. O ator também distorce sua voz diversas vezes para reforçar seu apelo cômico.
Alan Tudyk é outro ator que merece destaque. Com expressões bem definidas acompanhadas de seu sotaque alemão, o ator consegue arrancar a melhor piada do filme. Frances McDormand também é outro talento desperdiçado. Sua participação é pouco relevante e sua personagem é chata. McDormand não explora muita coisa. Mantém a mesma expressão na maioria do filme. Fora isso, o que Bay pede para a mulher fazer beira o ridículo. Em um momento do filme, a atriz começa a gritar loucamente com um robô de CGI revoltado. Simplesmente deplorável.
Josh Duhamel e Tyrese Gibson são alegóricos. Estão lá para mostrar seus bíceps e só. Já Patrick Dempsey se esforça para criar profundidade em seu personagem insistente. Peter Cullen, Hugo Weaving e Leonard Nimoy, o eterno Dr. Spock, destacam-se com o trabalho de vozes eficientes. Cada um com sua voz profunda e rouca. Kevin Dunn e Julie White completam o elenco. Destaque para Buzz Aldrin em sua participação especial.
Síndrome Snyder
A fotografia de Amir M. Mokri respeita as exigências do diretor. Isto é um fato. Qualquer diretor de fotografia que trabalha com Michael Bay sabe que a fotografia será dirigida pelo próprio. Assim, Mokri repete as cores favoritas de Bay. A iluminação amarelada acompanha os dois primeiros atos do filme para então chegar ao ameaçador terceiro ato. Ali as cores ficam subitamente sombrias, acinzentadas e levemente pálidas – a escolha comum para retratar ambientes hostis.
A clássica iluminação azulada também marca presença. Bay costuma utilizar o azul em cenas que acompanham os militares. Isso não muda aqui. O azul é bem significativo nas partes que se passam na Lua. Lá acontece a melhor modelagem de luz e sombras do filme inteiro. A contraluz ofuscante aparece em várias cenas sem o menor propósito, mas é eficiente em deixar a imagem mais bela. As imagens que aproveitam a iluminação incrível do pôr-do-sol retornam. Bay é diretor de texturas. Respeitando as exigências do diretor, Mokri satura em excesso diversas cores do cenário a fim de aumentar o contraste com os personagens. Quando Bay usa closes nas faces dos atores, não é para deixar a expressão mais nítida, mas sim para focalizar as gotas de suor, as feridas, a sujeira dos entulhos, o sangue, etc. com o intuito de patriotizar os personagens.
Entretanto, Mokri também tem seus devaneios de criatividade. O cinegrafista arrisca ao saturar exageradamente o branco em algumas cenas. O efeito quase cega o espectador, porém é interessante. Outras vezes, utiliza tonalidades avermelhadas ou violetas garantindo uma atmosfera diferente para alguns cenários. Os reflexos são extremamente raros em sua fotografia e quando aparecem não são significativos. Ele também usa alguns flashes de luz inteligentes, além de jogar poeira e fumaça no cenário.
Mokri e Bay cometem o mesmo erro que Larry Fong e Zack Snyder cometeram na fotografia de Sucker Punch, só que aqui em carga menor. Durante à hora final do filme, o espectador encontra uma imagem mais estonteante que a outra. O apelo visual é tão forte e crescente que acaba se tornando cansativo. É difícil encontrar um plano mal feito ou feio neste novo Transformers. O lance deste filme é o visual inacreditável. Não existe moderação no encaixe das imagens belíssimas. É uma seguida da outra sem parar. Vou repetir a analogia que fiz na crítica de Sucker Punch – “É como comer seu doce favorito por uma hora interminável. Cedo ou tarde, você acaba enjoando…”
Além da excelente, mas cansativa fotografia, o filme tem outro atrativo a oferecer. E estes são os efeitos visuais deslumbrantes. Logo no início do filme, eles marcam presença. A equipe de CGI caprichou ao construir Cybertron em plena guerra. A complexa arquitetura do planeta logo chama a atenção evidenciando a criatividade da direção artística das animações. A recriação da Lua e do seu “lado oculto” é igualmente fantástica. Até mesmo o visual de alguns personagens é alterado. Bumblebee conta um visual diferente. Megatron aparece completamente deformado, no interior e no exterior, por causa da batalha anterior no Egito. Fora isso, a concepção visual de Sentinel Prime é marcante. Até mesmo as expressões dos robôs é melhor definida. É difícil acreditar que este filme não leve o Oscar de melhores Efeitos Visuais de 2011.
Eles não deixam de surpreender o espectador durante as metamorfoses, agora mais detalhadas do que nunca, quando Bumblebee resgata Sam no meio do ar, na destruição em massa causada por Driller – o segmento do arranha-céu é de cair o queixo, na colisão metamórfica entre dois Decepticons e Ironhide; no cuidado minucioso dos danos causados na carroceria de Optimus, entre vários outros efeitos inacreditáveis. Porém, a Industrial Light and Magic decepciona na modelagem virtual dos homens. Quando os dublês não se arriscam, os bonequinhos virtuais dos atores fazem o trabalho que no caso são feitos com certo desleixo. A direção de arte também é competente. A recriação da geografia da Lua e da paisagem devastada de Chicago é belíssima.
Tendenciosa até o final
A música de Steve Jablonsky almeja a grandeza. Várias composições são inspiradas e algumas utilizam distorções digitais muito bem inseridas como na variante do tema principal do filme “There is no Plan”. A música ajuda bastante a reforçar a atmosfera envolvente e hipnotizante do filme. Existem composições bem sombrias e carregadas de uma pegada forte nos instrumentos. O grito dos trombones, a bateria compulsiva e o violino forte são orquestrados brilhantemente por Jablonsky em “Im Just the Messenger”.
Entretanto, em outras, Jablonsky carrega o sentimentalismo com leve coro de violinos que expressão profunda tristeza. A música a qual me refiro é a “The Fight Will Be Your Own”. Às vezes, o compositor usa corais proporcionando temas épicos. Sua música tendenciosa é eficiente e cumpre seu papel. Ela ajuda o espectador a vibrar pelos Autobots e encaixa perfeitamente nas cenas de ação. Porém a cara de pau do compositor fica comprovada no momento que plagia abusivamente “Mind Heist” de Zack Hemsey. Para os desavisados, a música de Hemsey acompanhava todos os trailers de A Origem.
A trilha licenciada sempre foi expressiva na franquia e aqui a história não muda. Novamente, Linkin Park compõe outra música exclusiva para o filme. Paramore também marca presença. O maior problema das músicas licenciadas é que elas raramente têm a ver com a cena tornando muitas partes do filme meros videoclipes. Isso é fácil de notar quando toca “All that you are” de Goo Goo Dolls enquanto Sam trabalha.
Já a mixagem e a edição sonora são perfeitas. A barulheira infernal do terceiro ato comprova isso. É impressionante escutar nitidamente o estilhaçar dos cacos das vidraças, o som das pancadarias explosivas travadas entre as duas facções e o barulho das transformações robóticas dos veículos.
Um demônio eficiente
É um demônio sedutor este Michael Bay. Primeiro, aparece arrependido dos erros do passado prometendo coisas fantásticas em seu novo projeto. Depois lança trailers excelentes explodindo a expectativa de muitos. Mas isso não me afetou desta vez. Minha decepção com “A Vingança dos Derrotados” foi tamanha que parei de acreditar nas mentiras do cineasta. Sua direção neste caso melhorou a ponto de conter as piadas abusivas do roteiro, mas pedir atuações e construção narrativa em um filme de Bay é o mesmo que pedir um Camaro SS para o Papai Noel.
Por ser um demônio, Bay sabe fazer uma coisa muito bem, talvez até seja o melhor nisso – atear fogo nas coisas. Depois de devastar Washington e as pirâmides de Gizé, o diretor resolve mandar Chicago pelos ares. Até que as explosões empolgam, mas depois de assistir a ducentésima quinta explosão, o espectador começa a cansar. As sequências de ação também são outro aspecto positivo do diretor. Com cenas extremamente complexas em sua realização, Bay prova que é possível fazer qualquer coisa no cinema. O segmento dos homens-esquilo voadores é uma prova disto. A cena recebe um tratamento mínimo de efeitos visuais. Aquilo que o espectador vê é totalmente real.
O cineasta orquestra cenas extremamente vertiginosas e belas de se ver causando uma hipnose assustadora. Seu cérebro literalmente desliga e é muito difícil tira-lo do modo automático tanto que tive que assistir ao filme duas vezes para entender algumas coisas. A escolha infeliz de manter as cores escuras dos Decepticons ainda prejudica a franquia. Consequentemente, os cenários sombrios e os robôs tornam-se uma coisa só deixando difícil compreender as pancadarias nervosas.
A edição de Bay é cheia de altos e baixos. Regularmente, o diretor usa cortes mais dramáticos e significativos. Por exemplo, a brilhante sequência de Laserbeak na casa de um comparsa. O truque eficiente da edição também se repete quando Chicago é sitiada. Porém as coisas boas param por aí. Mike sofre de TOC, pois transfere os planos em um ritmo que dificilmente chega aos cinco segundos. A montagem também é confusa e, algumas vezes, despreparada. Em uma cena, o espectador vê Sam e seus amigos falando que precisam chegar ao arranha-céu. Logo depois os homens-esquilo dão um baile aéreo. Após isso, Sam já chegou à torre. Resumindo, durante o clímax a edição dá saltos expressivos diversas vezes.
Bay também encontra oportunidade de reciclar tomadas de A Ilha na fantástica cena da rodovia. É impressionante notar que Mike ainda insiste em recursos amplamente explorados em seus filmes anteriores. O militarismo exacerbado e a angulação baixa das câmeras a fim de engrandecer os personagens ainda são traumas que Bay não conseguiu superar. Todavia, O diretor inova na introdução do filme colando várias imagens originais de noticiários de 1969 sobre a chegada do homem à Lua. Em outras imagens, adiciona um filtro televisivo para dar o ar retrô. A verdade é que o maior atrativo deste Transformers é o 3D. A partir deste ano, os filmes que utilizam este recurso serão divididos entre A.T. e D.T. (antes e depois de Transformers). Bay prova-se ser um verdadeiro gênio ao utilizar o efeito.
O diretor lança cacos, engrenagens, papel, sangue gráfico, Sam, balas, etc. na plateia que vai ao delírio com o efeito alucinante e cinético. Além disto, proporciona uma noção de profundidade muito inteligente e bem superior a de Avatar. Graças ao 3D estereoscópico, o diretor encontra um significado para seus slow motions deslocados. Desacelerando a imagem, dá a oportunidade de o espectador correr os olhos por toda a imagem e desfrutar de sua riqueza visual. Entretanto, o efeito pode causar dor de cabeça após o término da sessão graças à longa duração da fita. Isso também acontece porque seu olho muda, involuntariamente, a distância focal para deixar a imagem nítida a cada cinco segundos. Mike também arrisca com novos movimentos de câmera inspirados. Às vezes o diretor usa planos holandeses, já em outras prefere apresentar a imagem através da visão dos personagens com subjetivas interessantes.
O Lado Sombrio do Cinema
Transformers: O Lado Oculto da Lua funciona como uma lindíssima caixa vazia. A embalagem é fantástica, porém assim que o consumidor tenta vasculhar ávido por algo a mais em seu interior, não encontra nada. Com atuações medíocres, o filme ganha pela estética impecável. A diversão virá eventualmente, mas a enrolação das reviravoltas contidas no clímax consegue cansar até mesmo o espectador carregado a base de Duracell. As sequências de ação mantêm a megalomania característica do diretor e impressionam.
A pancadaria metálica é garantida, mas a experiência disto não adicionará muita coisa em seu intelecto tornando o filme algo fugaz. Mesmo sabendo que ele é previsível, essencialmente chato e narrativamente fraco e ainda quiser conferir, faça um favor a si mesmo e assista em 3D no IMAX. O visual que já era belo fica incrível e o barulho infernal torna-se ensurdecedor, porém já ficou provado que a base de qualquer filme não é sua qualidade visual, mas sim seu roteiro. O efeito alucinógeno e a tontura vão embora a poucos minutos assim como a lembrança de algum diálogo interessante da fita. A recíproca é triste, mas verdadeira.
A qualidade do filme começa a cair assim que o nome Transformers aparece na tela.
Transformers: O Lado Oculto da Lua (Transformers: Dark of the Moon, EUA - 2011)
Direção: Michael Bay
Roteiro: Ehren Kruger
Elenco: Shia LaBeouf, Rosie Huntington-Whiteley, Patrick Dempsey, John Malkovich, Frances McDormand, John Turturro, Ken Jeong, Josh Duhamel, Tyrese Gibson, Peter Cullen, Hugo Weaving, Leonard Nimoy, Buzz Aldrin, Alan Tudyk
Gênero: Ação
Duração: 157 min
https://www.youtube.com/watch?v=Nj0HkNrPK5k
Crítica | Carros 2
Existe um famoso provérbio que define muito bem a história da produção de “Carros” – “Depois da tempestade vem sempre a bonança”. Após o lançamento do longa, o filme foi taxado como o mais fraco da Pixar, perdeu o Oscar para o musicalmente chato “Happy Feet” e faleceram Joe Ranft (num acidente de carro) – produtor da Pixar – e Paul Newman, ator que dublou o personagem Doc Hudson. Após tantas desgraças no universo automobilístico criado pela Pixar, imaginava-se que a produção estava amaldiçoada, mas o sentimento foi embora assim que a Disney bateu os olhos no saldo financeiro. Revelava-se um dos filmes mais lucrativos da empresa. Só de bilheteria ultrapassou a marca de US$ 400 milhões e nos produtos licenciados quebrou a barreira dos bilhões de dólares. Além disto, as crianças do mundo inteiro se apegaram aos carrinhos de maneira inédita – até Woody ficou com ciúmes. Então, depois de depressões e lucros bilionários, a Pixar resolve explorar mais o universo de “Carros” nesta nova e divertida sequência.
Lightning McQueen já ganhou quatro Copas Pistão e Radiator Springs nunca esteve tão viva como agora. Enquanto isso, Miles Axlerod inventa um novo tipo de combustível que abandona a destilação do petróleo. Para evidenciar a eficiência de seu biocombustível, Miles promove uma disputa jamais vista – uma turnê de corridas entre os melhores carros ao redor do globo. McQueen recusa o convite, pois prefere aproveitar suas férias na cidadezinha com Mater e Sally. Entretanto, depois de várias provocações de Francesco Bernoulli, Lightning entra na disputa para provar que ele é o melhor corredor do mundo e para isso convida Mater a entrar em sua equipe. Chegando ao Japão, McQueen vai à disputa enquanto Mater se envolve acidentalmente em uma trama de espionagem com Finn McMissile e Holley Shiftwell para garantir a segurança da competição.
Dirigindo na contramão
O roteiro de Ben Queen, John Lasseter, Dan Fogelman e Brad Lewis parece ter esquecido a significativa mensagem do primeiro filme. Anteriormente, os roteiristas enfatizavam a importância de valorizar as coisas simples da vida, a nostalgia do passado, o altruísmo, a amizade, livrar-se da ganância por prêmios “vazios”, deixar de lado a correria, o estresse cotidiano, o egoísmo. Além disto, construía uma das melhores críticas à sociedade que já vi.
Muitos críticos reclamam que o universo ambientado do Carros 2 não possui humanos, o que afeta a relação espectador-personagem. O que muitos não percebem é que na verdade os carros são os próprios homens. Reparem, nos tempos modernos nós passamos a maior parte do tempo dentro de veículos engarrafados no trânsito e já que esse processo tende a eternidade, nada mais apropriado que os homens acabem virando carros, aviões, trens, etc.
Colocando o ritmo lento e a tranquilidade do campo em escanteio, os roteiristas apostaram em uma sequência extremamente agitada, divertida e repleta de cenas de ação. Aqui, tem a oportunidade de ampliar o universo do filme apresentando novos veículos, ampliando as relações sociais e revelando personalidades reais em suas versões “automobilísticas”. Eles também optam por deixar McQueen como coadjuvante nesta aventura. Mater – um dos personagens mais legais da Pixar, fica como protagonista, decisão que facilita a inserção de diversas piadas.
O roteiro tenta arrancar diversas risadas do público, porém seu humor agradará muito mais as crianças do que os adultos, visto que a maioria delas se baseia em trocadilhos infantis de palavras e nas situações ridículas que o roteiro encaixa o novo protagonista. Eventualmente, as risadas chegarão aos adultos causadas por piadas muito inteligentes. Os roteiristas colocam os personagens em situações típicas do cotidiano humano como a burocracia dos aeroportos, talk shows, a simbologia dos banheiros, as especiarias japonesas, etc. Além disto, cria oportunidades interessantes de brincar com a anatomia dos personagens.
Os roteiristas sabiam que a história não seria forte o suficiente se a sequência permanecesse em Radiator Springs. A conclusão óbvia para dar continuidade para um dos filmes mais fracos da Pixar seria que a série enfrentasse parâmetros mundiais e foi o que aconteceu. Assim, a narrativa desloca-se em várias cidades – Tóquio, Paris, na fictícia Porto Corsa e Londres. Consequentemente, surgem as piadas estereotipadas que funcionam muito bem. Além das piadas, têm a oportunidade de explorar a cultura das cidades citadas. As gueixas, samurais, cirandas italianas, pubs ingleses, leis de trânsito são meros exemplos da vastidão de costumes que o roteiro aborda.
Além disto, existe a trama de espionagem que segura o filme e o interesse do público. Muitos estão reclamando da violência proporcionada por essa razão. Graças a esta narrativa, o filme possui tiroteios, explosões e mortes. Entretanto, no mundo banalizado em que vivemos, duvido que isto afete as crianças. Afinal, não é a primeira vez que a Pixar aborda a violência de maneira excessiva, vide “Os Incríveis”. E mais, cresci assistindo “Dragon Ball Z” e vi o Kuririn morrer das mais diversas maneiras e não me tornei um psicopata, então esta história de que jogos, desenhos e filmes influem na personalidade do espectador é pura balela.
Com esta narrativa que homenageia os clássicos filmes de espionagem, os roteiristas aproveitam para inserir várias paródias, traquitanas de espionagem e situações absurdas. Por exemplo, as manobras de Finn McMissile no início do longa. Existe também referências a vários filmes da série “007”. A mais expressiva é a que homenageia “007 – O Espião que me Amava” de 1977, um dos melhores filmes de James Bond interpretado por Roger Moore. Também faz referencia ao “O Poderoso Chefão” na divisão das famílias dos “tranqueiras” – personagens que controlam as maiores petroleiras e contrários ao novo biocombustivel. Vale citar que a história é bem complexa, amarrada e construída, mas pode ser de difícil compreensão para alguns pequenos.
Os novos personagens são praticamente indiferentes em relação ao público. McMissile e Shiftwell são estereótipos de James Bond e Bond Girl. O único que se sobressai e consegue realmente divertir é Francesco Bernoulli. Já o novo antagonista, Professor Z, é o personagem mais chato e irritante do longa inteiro. O roteiro também cria um conflito bem forçado entre McQueen e Mater que desconstrói boa parte do trabalho do filme anterior visto que McQueen ainda é extremamente competitivo e pavio curto. Através de Mater a Pixar transmite suas habituais mensagens que tocam o coração do espectador, só que neste caso, ela é inferior a de todos filmes da empresa, não emociona e pior, cai no clichê tão desprezado pela produtora. Infelizmente, os roteiristas desperdiçaram a chance de explorar um pouco mais afundo o universo do longa. Ainda estou curioso a respeito de onde que os bebês carros vem…
Motoristas ocultos
O trabalho de vozes do elenco não é fantástico como o de “Toy Story 3”, mas é bem feito. Como havia dito anteriormente na crítica de “Meia-Noite em Paris” na semana passada, Owen Wilson não é um ator ruim, é apenas mal dirigido e é exatamente isso que acontece aqui. Lightning McQueen já não recebe muito tratamento do roteiro e tem pouca participação então Wilson deveria ter se esforçado mais para destacar o personagem. Infelizmente, isso não acontece. Sua atuação passa batida, praticamente irrelevante. O personagem tem suas falas, claro, mas não existe nada atraente na voz morna e levemente arrastada do ator pouco condizente com a figura veloz de McQueen.
O destaque fica por conta de Michael Cane. Seu sotaque britânico acompanhado da voz levemente rouca dá um charme especial para Finn McMissile. Emily Mortimer também empresta seu sotaque a Holley Shifwell mas abusa da elocução exageradamente “meiga” de sua voz. Quem rouba a cena é o ótimo John Turturro dublando Francesco Bernoulli. Seu sotaque italiano é extremamente caricato e divertido assim como sua dicção praticamente perfeita.
Larry the Cable Guy ou Daniel Whitney continua com seu trabalho energizado com Mater. O sotaque tipicamente caipira pode cansar depois de um tempo. A voz extremamente aguda e áspera também contribui para isso. Entretanto, o ator não deixa de divertir com a pronunciação de gírias, onomatopéias e vários gritos estridentes do personagem. Outro ator que merece atenção é Thomas Kretschmann que dá voz ao chatíssimo Professor Z. Ele encarnou toda alma dos monótonos antagonistas alemães de filmes de espionagem. Sua fala é relativamente lenta com sotaque alemão suave, porém marcante.
Paul Newman obviamente não volta para a sequência assim como Doc Hudson, seu personagem. Um ato muito bonito por parte da Pixar que encontra uma forma sutil de demonstrar o luto. Eddie Izard, Bonnie Hunt, Vanessa Redgrave e John Ratzenberger completam o elenco.
Mundo de cores e sensações
Na crítica de Kung Fu Panda 2 disse que a DreamWorks tinha, finalmente, poderio tecnológico para equiparar-se com a Pixar. Retiro tudo o que disse. Cometi um erro ao afirmar isto. A DreamWorks ainda possui uma animação mais fluida do que a da Pixar, mas em termos de beleza e conceito visual perde feio. A concepção dos personagens continua muito bonita e ganha mais polimento nesta sequência. A escolha do modelo do Aston Martin para Finn McMissile não poderia ser mais simbólica.
As expressões dos carros estão melhores definidas e passam dar mais importância para as rodas que são utilizadas para enfatizar com gestos as falas dos personagens – isso acontecia raramente no primeiro filme. O que realmente destoa à tecnologia da Pixar é concepção artística dos cenários. Logo no início do filme, o espectador encontra majestosas plataformas de petróleo no meio do oceano e são nelas que acontecem o show das físicas da água e do fogo. A água e a espuma do sal são renderizados simultaneamente até o horizonte do cenário em um efeito de cair o queixo da platéia devido à complexidade da composição.
Logo depois, o espectador encontra um espetáculo de luzes e cores na recriação praticamente perfeita da cidade de Tóquio. Ali, a fotografia que não segue nenhum padrão de iluminação, se transforma. Existem várias fontes de luz interagindo com o cenário que reage a cada uma delas. Os neons também impressionam. Até mesmo os faróis dos carros iluminam a pista, árvores, folhas e outros veículos da corrida noturna de maneira única. Nesta pista em particular, os animadores adicionam reações e comportamentos físicos nas rodas dos carros que reagem levantando terra das pistas.
A animação também confere um tratamento muito bonito à torcida das corridas que também passa a conter movimentos e gritos organizados. Já em Paris, os animadores recriam todas as belezas arquitetônicas – é praticamente impossível acreditar que são feitas graficamente. Eles adaptam as características dos monumentos para o universo do filme, ou seja, ao invés de homens ou anjos dourados em cima de pontes, colocam corvettes e fuscas. Durante o filme inteiro é possível perceber que os parachoques dos carros refletem todo tipo de iluminação assim como o cenário. Estes reflexos variam em tempo real enquanto os personagens se locomovem nos espaços. Por sua vez, o piso dos cenários também reflete todos os elementos que interagem com ele. Praticamente tudo foi tratado com extremo nível de detalhamento por parte dos animadores.
Em Porto Corsa a iluminação passa a ficar levemente amarelada sugerindo o espírito antigo da cidade, mas não é isso que chama a atenção da audiência. É a criação fantástica e inspirada do local que é cheio de texturas diferentes de Tóquio e Paris. Neste lugar em especial acontece um evento físico de iluminação muito interessante. Durante um plano, Mater está para entrar em um cassino. Repare na vidraça que envolve o portão do lugar, pois lá é que acontece o efeito. Debaixo da vidraça a iluminação torna-se azulada enquanto os outros cantos do cenário continuam a receber a iluminação natural. Assim os animadores tem o cuidado de respeitar as leis dos prismas polarizados ópticos – nunca vi isso acontecer em um filme de animação.
Já em Londres as cores do cenário passam a ficar frias e pálidas, mas os personagens coloridos quebram a gelidez do lugar. Os céus são encobertos por nuvens e as ruas continuam eternamente úmidas pela constante chuva da cidade inglesa. Com a temática agitada, as explosões se fazem presentes e cada uma delas é diferente da outra. São inúmeras animações para varias explosões. Existem também flashes de luz provenientes dos tiroteios, obviamente as sombras se comportam inteligentemente com este efeito. Aliás, todas as sombras do filme são espetaculares e algumas vezes, são vitais para o desenvolvimento do roteiro.
+Banjo Bond
Michael Giacchino é um ótimo compositor e já recebeu um Oscar por seu trabalho magnífico em “Up”, mas parece que ele não estava muito inspirado na trilha de “Carros 2” que cai na repetição. O maior problema da trilha é que todas as músicas são parecidas e quase nunca chegam a impressionar. Ele utiliza instrumentos tipicamente caipiras como rabecas e banjos para compor algumas músicas.
O tema principal do filme é uma sátira aos temas de James Bond. Ele utiliza várias vezes às mesmas notas musicais distorcidas de uma guitarra para compor. Isso funciona no início, mas depois que a musica é tocada pela milésima vez, o espectador começa a se cansar com o tema repetitivo. As composições também fogem da grandiosidade. Algumas tem uma variedade de instrumentos interessantes. Giacchino utiliza órgãos elétricos, trombones, violinos, trompetes, entre outros. As melhores composições são as que ele varia seus instrumentos, mas como escrevi antes, nenhuma anima devidamente o espectador. Algumas músicas também são parecidas com as de “Os Incríveis”, um de seus trabalhos passados.
O que tira o marasmo musical de Giacchino é a trilha licenciada. Ela conta com o cover de “You Might Think” do Weezer, “Collision of Worlds” de Robbie Williams, “Polyrhythm” de Perfume e “Mon Coeur Fait Vroum” de Bénabar. A sonoplastia do filme também merece um destaque. Os roncos dos motores possantes encantam os ouvidos do espectador assim como o barulho dos tiroteios e explosões. A sonoplastia também respeita leis da física abafando sons externos em ambientes fechados e aumentando o som dos carros quando estes entram em túneis.
Lasseter, John Lasseter
Em um belo dia nos estúdios Disney o jovem animador John Lasseter foi chamado para uma pequena reunião após sua proposta de fazer animações completamente computadorizadas. Chegando lá, o mundo de Lasseter desabou – foi despedido pelos CEOs da companhia que julgavam sua idéia infrutífera e dificílima. Apesar do grande abalo, Lasseter investiu seu próprio capital e pediu ajuda financeira a seu amigo Steve Jobs para fundar a PIXAR Animation Studios.
Após a produção do primeiro curta-metragem Tin Toy em 1988 e o faturamento do Oscar de Melhor Curta de Animação do ano de 1989, em 1991 a Disney assina um acordo para a produção de três longas originais e assim nasceu “Toy Story”. Agora, com a fusão da Disney com a Pixar, Lasseter tem a permissão de fazer sequências das obras originais. “Carros 2” saiu e “Montros S.A. 2” será lançado em 2013.
Lasseter foi o homem que tirou a Disney de sua era ridícula de produções pouco imaginativas. Com sua grande capacidade de contar histórias, conseguiu alavancar os lucros da empresa para o superavit infinito. Hoje, ele é considerado o Walt Disney de nossa época. Por essas e muitas razões, é preciso ter cuidado ao falar impensadamente desta grande personalidade.
A direção de Lasseter é criativa, assim como sua concepção visual. O mais legal de sua direção são os movimentos câmera. Inspiradíssimos, são referências claras as técnicas de filmagem das disputas de Fórmula 1. A coreografia das sequências de ação empolgam também pelo manejo inteligente das câmeras sendo o melhor exemplo disto a abertura fenomenal do filme.
A construção de Francesco Bernoulli, tanto do psicológico quanto do visual, é claramente uma crítica a equipe da Ferrari. O cineasta também não deixa de criar referências ao universo da Pixar e de vários filmes de espionagem. Algumas tomadas relembram “A Identidade Bourne”; “007 – Cassino Royale” e até mesmo “Encontro Explosivo”. Através das trapalhadas de Mater, Lasseter também menciona “A Pantera Cor de Rosa” visto que o personagem relembra as idiotices de Jacques Closeau. O diretor gosta de abrir as lentes das câmeras optando sempre em mostrar a grandiosidade dos cenários produzidos – dificilmente o espectador encontrará closes neste filme. Ele também sabe conversar com a audiência jovem como ninguém. É impossível não se encantar com a fofura do filme e de seus personagens.
Um dos destaques da direção de Lasseter é sua edição inteligente. Tenta de todas maneiras torna-la invisível aos olhos desatentos evitando cortes bruscos na imagem. Diversas vezes, utiliza elementos do cenário ou personagens para mudar sutilmente as cenas de seu filme.
Entretanto, Lasseter também comete algumas escolhas infelizes. O diretor gosta de fazer colagens no plano inserindo várias imagens a fim de lembrar transmissões de TV. Isso foi herdado de “Carros” e continua a estragar o belo visual do filme. Durante um momento do filme, Mater tem um epifania. Na cena, Lasseter trabalha com várias sobreposições de imagens resultando em algo visualmente brega. No entanto, isso pode ter várias interpretações. Acredito que a intenção do diretor era justamente esta – deixar a imagem pobre de concepção já que o personagem está sofrendo uma revelação de suas atitudes. O efeito 3D funciona apenas na primeira parte do filme garantindo uma sensação de velocidade única para o espectador, porém no resto da projeção torna-se algo desnecessário e despercebido.
Mais brinquedos!
“Carros 2” não é o melhor filme da Pixar, mas também não é o pior. O filme é divertido, não arranca lágrimas de seus óculos 3D e te faz sair feliz do cinema. Após tantas histórias maravilhosas que a Pixar apresentou para o mundo, é normal a sensação de decepção sobre a história do filme. Porém, falar mal de um trabalho tão bem feito como este apenas por ter uma narrativa fraca é um ato incabível. Como Lasseter diz, “Faço dinheiro para fazer filmes”. Neste caso, ele fez dinheiro e fará muitos outros filmes que irão te emocionar no futuro. O único motivo de seu mau humor será a compra de vários brinquedinhos novos para seus filhos ou sobrinhos. Garanto que as crianças ficarão alucinadas com os dispositivos de Finn e de Mater nesta nova, imperdível e encantadora aventura descompromissada da Pixar.
Crítica | Transformers: O Filme (1986)
Os Transformers são seres alienígenas, originários do planeta Cybertron. Porém eles não são seres orgânicos, mas sim feitos de metal, capazes de se transformarem em qualquer veículo. Eles surgiram primeiramente como uma linha de brinquedo da Hasbro, e depois viraram series animadas na televisão e posteriormente filmes de grande orçamento, e assim a fama deles só foi crescendo durante décadas. Contudo, quem pensa que os filmes dos transformers só surgiram em 2007 com Michael Bay na direção, se engana completamente. Em 1986 foi lançado este filme que marcava o fim da segunda temporada da primeira série animada deles, Transformers: G1 e o início de sua terceira temporada.
O filme se inicia com uma sequência apocalíptica, onde o gigantesco planeta vivo, Unicron, devora um corpo celeste inteiro em questão de minutos, matando todos os seus habitantes. Com isso o público é apresentado a ameaça principal do longa, que é muito maior e mais perigoso que todos os outros vilões apresentados na série.
Então após isso, somos levados a Cybertron, no ano de 2005, onde está ocorrendo uma massiva guerra entre os justos e bondosos Autobots, contra os malignos e cruéis Decepticons, liderados respectivamente pelo líder Optimus Prime e por Megatron. Optimus manda um grupo com seus leais autobots para a Terra, com o objetivo de buscarem suprimentos, porem os Decepticons ficam sabendo, invadem e matam todos os tripulantes da nave que se dirigia a Terra.
Os Decepticons então chegam a Terra e começam a atacar a base autobot, porém durante o ataque, os autobots, conseguem avisar o Líder Optimus sobre a situação, e em alguns minutos, ele chega a Terra para defender seus companheiros. Então se inicia a decisiva luta entre Optimus e Megatron, onde quem sai vitorioso é Optimus, poréem a um grande preço. Os ferimentos que Megatron lhe causou foram fatais, e ele infelizmente acaba morrendo, mas não antes de passar o comando e a Matrix da liderança para o seu leal guerreiro, Ultra Magnus.
Aqui já notamos que o longa tem um clima bem mais pesado que a série, principalmente pelas mortes significativas de personagens queridos da série, como Ironhide, Starscream, Prowl e principalmente do Líder Optimus, que teve uma linda e emocionante cena de morte, bem digna para o personagem. Isso também deixa o filme com uma sensação maior de perigo e urgência, que qualquer um pode morrer a qualquer momento.
Quanto ao Megatron, ele é lançado no espaço ainda vivo, porém seriamente danificado, junto de outros decepticons que estão na mesma situação que a dele. Eles são encontrados pelo Unicron, que os salva e os conserta e também atualiza os seus visuais, com o intuito de torna-los seus capangas, para que possam aniquilar a matriz da liderança, que é o único objeto conhecido capaz de destruí-lo.
O Unicron é dublado pelo famoso Orson Welles, conhecido por seu papel no clássico Cidadão Kane. Infelizmente, este também foi o último trabalho de Welles, pois um ano antes da estreia, ele veio a óbito. Contudo, o resto do elenco de dublagem também não fica atrás, temos o icônico Leonard Nimoy, dublando a versão reconstruída de Megatron, Galvatron, e obviamente os marcantes dubladores da série animada em seus respectivos papéis
O longa, além disso, é o responsável por estabelecer diversas novidades para a mitologia dos Transformers. Como a matrix da liderança, a transformação de Megatron em Galvatron, e também claro o já mencionado Unicron. São elementos que até hoje permanecem presentes tanto nas novas séries animadas, quantos nos filmes do Michael Bay. O longa conseguiu enriquecer ainda mais a mitologia dos transformers, e é bastante lembrado por causa disso também.
Infelizmente, o roteiro escrito por Ron Friedman, não está isento de ter alguns furos. Como por exemplo, na cena onde o Unicron fala que vai destruir Cybertron por causa da traição de Galvatron, pois ao invés de devorar o planeta logo, como ele fez com os outros durante o longa, ele se transforma em sua forma humanoide para fazer isso, e não obtém o mesmo resultado. Tudo bem que eles precisavam mostrar a forma robô dele, porém, poderiam ter achado uma maneira melhor que essa. Também teve a parte onde o Unicron engole o Galvatron junto com a Matrix, que era a única coisa que poderia mata-lo, e ele a jogou dentro de seu corpo. Além de ser uma ideia totalmente estúpida, ainda vai contra tudo que o Unicron argumentou durante o filme.
Uma coisa interessante é que a trilha do filme é basicamente composta por músicas clássicas da década de 1980, que combinaram muito com o estilo aventuresco do longa. Porem em diversas situações, podemos notar que as músicas não são condizentes com o tom das cenas em questão, e acabam ficando deslocadas. Mas na maioria, elas dão um ritmo legal as cenas.
No fim, Transformers – o filme, é de fato o melhor longa sobre os personagens já feito, e desde que foi lançado em 1986, não envelheceu nada mal, principalmente pelo fato do trabalho de animação ser bem simples e totalmente feito à mão, lembrando até um anime em várias ocasiões. Um filme obrigatório para todos aqueles que são fãs dos transformers, principalmente pelos conceitos que eles estabelecem aqui, como o Unicron e a Matrix da liderança.
Transformers: O Filme (The Transformers: The Movie, EUA – 1986)
Direção: Nelson Shin
Roteiro: Ron Friedman
Elenco: Peter Cullen, Judd Nelson, Robert Stack, Leonard Nimoy, Orson Welles, Frank Welker
Gênero: Ficção Cientifica, Aventura
Duração: 84 minutos
Crítica | Em Ritmo de Fuga
Se o nome de Edgar Wright não lhe soa familiar, feche esta página agora e imediatamente siga para o IMDb e o serviço de streaming mais próximo. É o famoso caso de um cineastas impecável, daqueles que realmente dominam a linguagem como poucos na atualidade, mas que infelizmente ainda é um nome desconhecido do grande público; para se ter ideia, os três principais filmes de Wright foram parar direto no mercado home video aqui no Brasil, a famosa trilogia do Cornetto composta por Todo Mundo Quase Morto, Chumbo Grosso e Heróis de Ressaca. E, sim, você definitivamente deveria conferir esses três hilários filmes.
O único filme de Wright que viu a luz nas telas brasileiras foi Scott Pilgrim contra o Mundo, outro filmaço que também é limitado a um nicho muito reduzido, tendo sido um fracasso comercial tanto aqui quanto nos EUA. A grande chance de Wright alcançar o grande público viria com outra adaptação de quadrinhos, no vasto universo cinematográfico da Marvel Studios com Homem-Formiga, projeto que o diretor vinha desenvolvendo antes mesmo de Homem de Ferro estrear. Infelizmente, divergências criativas com Kevin Feige acabaram forçando a saída de Wright do filme, partindo então para realizar sua própria investida no subgênero do heist (algo que Homem-Formiga também se propõe a fazer), e temos aí o nascimento de Baby Driver - traduzido aqui como Em Ritmo de Fuga, e essa é a última vez que irei me referir a este filmaço desta forma.
Basicamente, imaginem se La La Land fosse um filme de perseguição de carros.
A trama é centrada em Baby (Ansel Elgort), um habilidoso piloto de fugas que ajuda o misterioso Doc (Kevin Spacey) em diversos golpes e esquemas criminosos, sendo o melhor motorista do negócio. Afetado por um acidente na infância, Baby está constantemente ouvindo música para abafar um zunido em seu ouvido, praticamente levando sua vida com trilha sonora. Quando conhece e se apaixona pela garçonete Debora (Lily James), Baby promete sair do negócio de direção de fuga ao se comprometer a um último serviço, que conta também com um grupo criminoso formado por Bats (Jamie Foxx), Buddy (Jon Hamm) e Darling (Eiza González).
Subversão de Gênero
A velha e batida premissa do "último serviço e estou fora", aliada das já esperadas reviravoltas de "eu tento sair, mas eles me puxam de volta". Não que isso seja um problema, afinal, convenções de gênero e suas desconstruções sempre foram a especialidsde de Wright, vide o cinema de zumbis em Todo Mundo Quase Morto, o buddy cop em Chumbo Grosso e a ficção científica body snatcher em Heróis de Ressaca. Aqui, o diretor e roteirista abraça por completo a variante do heist, assim como o cinema de ação automobilístico tão bem representado por Steve McQueen nos anos 60 e 70.
Baby Driver segue a mesma fórmula ao levar a sério todas as regras do gênero, mas também inteligentemente quebrando-as ao trazer um humor sagaz e momentos que caçoam de sua própria artificialidade; vide o impagável momento onde o personagem de Spacey oferece um longo monólogo expositivo sobre a origem de Baby, ao mesmo tempo em que desenha um mapa complexo em uma lousa. Nada sutil, mas quando Spacey ironiza e se impressiona com o fato de ter feito um diagrama tão perfeito enquanto "ficava de conversa", vemos que Wright tem ciência dos clichês que aborda. A forma como constrói as relações entre os personagens e estabelece rumos da história também foge do comum, com o roteiro esperto enganando o espectador ao, por exemplo, sugerir que um determinado sujeito seria o melhor amigo de outro, quando na verdade a narrativa o conduz a tornar-se um inimigo letal.
Por um lado, isso garante ao longa um ritmo quase imprevisível e diferente do padrão, mas também um fator que ocasiona no maior problema do filme: sua conclusão. Sem grandes spoilers aqui, mas a necessidade de Wright em amarrar todas as pontas soltas acaba criando um terceiro ato consideravelmente mais inchado e permeado por uma sucessão de cenas que poderiam facilmente servir como o clímax, mas então Wright dobra os esforços e vai oferecendo mais cenas climáticas atrás da outra, o que acaba por cansar o espectador. A elipse que se desenrola próxima do fim também surge inorgânica e apressada, como se quisesse pular logo para um final muito específico, que segue a influência de Wright pela Hollywood clássica. É um mero deslize em um filme que beira a perfeição.
Figurinhas
Esse apuro se estende também ao fabuloso leque de personagens que Wright tem à sua disposição, cada um com um estilo e personalidade próprio, jamais soando genérico ou simples jogadores descartáveis com funções específicas e unidimensionais. O próprio Baby instiga pelo ar cool e introspectivo, características que o ótimo Ansel Elgort absorve bem e ainda evolui para ações como dançar de forma excêntrica na rua ou cantar euforicamente suas músicas preferidas; e Wright merece créditos pela divertida dinâmica com o personagem de CJ Jones, que interpreta seu pai adotivo mudo, rendendo diversas cenas de diálogos em linguagem de sinal.
Os membros da trupe criminosa são uma grande surpresa, especialmente por sempre caírem no triste cenário genérico apontado no parágrafo anterior. A começar por Jamie Foxx, que parece trazer uma versão mais multifacetada e divertida de seu Motherfucker Jones em Quero Matar meu Chefe (a caracterização com as tatuagens é muito parecida), e faz de Bats uma figura inconstante e que rapidamente consegue tornar-se detestável - no bom sentido, e desde Django Livre Foxx não surgia tão inspirado em cena. A química entre Jon Hamm e Eiza González também garante algo diferenciado, com a presença de um casal criminoso arrancando interações inusitadas da dupla com o restante do elenco, além de um background sugerido que garante ainda mais força ao texto de Wright. Por fim, Kevin Spacey nos entrega mais uma performance controlada e suave, com seu perfil sério e rígido sendo o toque perfeito para o misterioso Doc, e quando o personagem mantém essa naturalidade para ameaçar o protagonista de forma assombrosa, vemos que Spacey sempre traz algo novo.
Talvez o ponto fraco esteja na personagem de Lily James, que é vivida de forma adorável e carismática pela atriz, mas não vai além de uma figura unidimensional e sem muita profundidade. As cenas de James e Elgort fazem valer a pena, ainda mais pelos diálogos descontraídos e regados de referências musicais, em um viés Tarantinesco e Linklateriano, e gosto muito da piada de como os dois discutem que, pelo fato de seu nome ser Baby, todas as músicas do mundo são feitas sobre ele.
Velozes e dançantes
Mas então chegamos ao grande truque do filme: a ação musical. Tamanha a importância das manobras de Baby Driver, o nome do coreógrafo Ryan Heffington é um dos primeiros a aparecer durante os créditos de abertura, e é de fato merecido: as perseguições de carro e outras cenas de ação do filme são realmente impressionantes, tanto pelos feitos arriscados e radicais que vemos em cena, quanto pela condução de Wright e a forma como ele dirige e monta tais momentos, com destaque para uma elaborada manobra onde o subaru de Baby rodopia entre dois caminhões. Dono de um estilo incisivo, a montagem de Jonathan Amos e Paul Machliss ajuda a conferir ritmo e organizar todas as ações, como mostrar detalhes do volante, pedais e múltiplos ângulos para a ação - sendo essencial também na sincronização com a trilha sonora.
Adicione tudo isso ao fato de que cada sequência apresenta uma ou duas músicas pop em sua seleção, e o resultado é uma explosão de energia e movimento que há muito tempo não víamos nesse tipo de cinema. Diversas vezes temos uma sincronia de ações e foley com batidas e instrumentos musicais (algo que Wright já havia testado na memorável cena com Queen em Todo Mundo Quase Morto), de forma que sons de tiros sempre são mixados junto com batidas de determinadas faixas, vide o tiroteio regado por "Tequila" ou até mesmo movimentos de carros e corridas, em um verdadeiro balé de ação. É um incrível domínio sonoro aqui, especialmente nas constantes variações entre diegético e não diegético, com a música ficando mais baixa e abafada quando algum personagem remove os fones de Baby. Nem posso imaginar a dor de cabeça dos editores e mixadores de som, que só não serão recompensados com indicações ao Oscar caso a Academia tenha enlouquecido.
E a seleção musical? Certamente a playlist mais caprichada e variada do ano, que mistura um pouco de alguns dos melhores gêneros musicais, do pop, rock, rap e reagge. É preciso um ótimo gosto para reunir uma seleção desse calibre, que conta com Barry White, Queen, The Beach Boys, T.Rex, entre outras inúmeras canções que o espectador definitivamente vai querer em suas playlists após o final do longa. Ah, e só preciso confessar como "Bellbottoms" do The Jon Spencer Blues Explosion, música que abre o filme, é uma peça musical absolutamente viciante. Muito obrigado, Edgar Wright, por preencher meu celular de novas músicas.
Com uma condução mais segura e amadurecida, Baby Driver é um dos melhores filmes de Edgar Wright, que cada vez mais se firma como uma das vozes mais vibrantes e originais do cinema contemporâneo. Com uma combinação explosiva de ação e música, esse é o tipo de filme que o cinema americano precisa cada vez mais.
Em Ritmo de Fuga (Baby Driver, EUA - 2017)
Direção: Edgar Wright
Roteiro: Edgar Wright
Elenco: Ansel Elgort, Lily James, Kevin Spacey, Jamie Foxx, Jon Hamm, Eiza González, Jon Bernthal, CJ Jones, Micah Howard, Lanny Joon
Gênero: Ação
Duração: 112 min
https://www.youtube.com/watch?v=TJrKYWPBTrc&t
Crítica | Toy Story 3
Uma vez me disseram que a cena de abertura de um bom filme era uma de suas partes mais importantes. Ela deve ter o poder de atrair quem começa a assistir e incentivar-nos a ficar até o fim. Toy Story 3, seguindo essa linha, começa com tudo ao mexer com nossa nostalgia em uma setpiece de faroeste estrelada por Woody Pride, nosso xerife favorito. Ele e o Sr. Cabeça de Batata combatem um ao outro, o segundo um vilão digno de um western de respeito - quer personagem melhor para se prestar à esse papel, se não o mesmo cara que sempre é o primeiro a questionar as decisões tomadas pelo cowboy?
Quando pensamos que a luta está perdida para o lado do bem, aparecem Jessie montada no fiel Bala no Alvo e então um imponente Buzz Lightyear. A cena introduz nossos personagens favoritos um à um e, aos poucos, as coisas vão ficando bizarras, com direito à uma nave espacial em formato de porco e elementos de sci-fi. Este é quase um pequeno curta Pixar dentro do filme principal, se revelando então ser uma brincadeira de criança vista pela mente ativa do pequeno Andy, que a transforma em realidade.
Porém o filme não conta a história do pequeno Andy e seus brinquedos, como foi o caso de seus dois predecessores. Muito pelo contrário: o foco agora é um futuro distante do que foi apresentado antes, onde as crianças já estão crescidas. Uma coleção de clipes caseiros delimita a passagem do tempo, um recurso fofo que, novamente, remete à nostalgia que esse capítulo da trilogia procura enfatizar. Essas cenas são regidas pela icônica Amigo Estou Aqui - em inglês, a frase “as years go by our friendship never die” (conforme os anos passam, nossa amizade nunca morrerá, em tradução livre) é cantada no momento em que as brincadeiras dão lugar à Woody e seus amigos encolhidos em um baú antigo, após o passar dos anos… esquecidos.
15 anos depois
A realidade é que, assim como os espectadores, Andy cresceu. De 1995, ano da estreia de Toy Story, para 2010, quando o terceiro filme foi lançado, se passaram 15 anos. Agora o menino que conhecíamos está prestes a ir para a faculdade. Essa é uma jogada de mestre da equipe da Pixar, igualando a idade do personagem àqueles que assistiram ao primeiro filme nos cinemas. A identificação, afinal, é uma arma poderosa para envolver o espectador. Assim, Toy Story 3 já fisga a segunda fatia de seu público - a nova geração já havia sido conquistada na cena lúdica da abertura -, que irá passar o filme todo refletindo sobre o fim da infância e o destino dos nossos brinquedos quando crescemos.
Não importa o quão comprometidos estejamos com a vida adulta, todos sentimos saudades da infância e a ruptura entre as duas fases não é simples ou indolor. Mesmo já tendo até terminado a faculdade, meus ursinhos de pelúcia continuam em uma caixa na última prateleira do meu armário, sem que eu tenha coragem de me desfazer deles. Andy tinha uma opção parecida: jogar seus antigos companheiros fora, ou guardá-los no sótão. A escolha difícil termina no rapaz colocando Woody na mala que levará consigo, um sinal de que ainda não está preparado para deixar sua infância completamente de lado, e os outros brinquedos vão para um saco preto que será colocado no sótão.
Se fosse simples assim, esse seria o fim do filme. Porém, é só o menino se distrair por alguns momentos para o saco ser confundido pela mãe do rapaz e os brinquedos, desesperados, serem deixados juntos às latas de lixo - crentes, também, de que esse era o destino que Andy pretendia dar à eles. Escapando por um triz de serem pegos pelos lixeiros - cortando o saco usando o rabo pontudo de Rex! - eles entram em uma caixa de doações para uma creche. Desesperado para fazer seus amigos entenderem que não foram descartados por seu dono, Woody foge da caixa destinada à faculdade para encontrá-los.
Se funciona…
O roteiro parece familiar? Oras, é porque é mesmo: assim como as outras edições da franquia, Toy Story 3 segue uma narrativa bem linear focada em uma grande confusão. Erros cometidos, há uma missão de resgate quase impossível e uma grande fuga, como acontece no primeiro filme na casa de Sid, no segundo com o colecionador Al e agora, da creche Sunnyside. A Pixar escolhe não mexer em time que está ganhando, e consegue fazê-lo bem, na verdade. O que poderia ser monótono acaba mantendo a identidade Toy Story e forçando o roteiro à transformar-se em engenhosidades que nos causam diferentes emoções o tempo todo, das lágrimas aos risos - e então lágrimas novamente.
O time todo chega à Sunnyside: Woody, Buzz, Slinky, Rex, Porquinho, Jessie, Bala no Alvo, Barbie, Sr. e Sra. Cabeça de Batata e os três extraterrestres. De primeira eles acreditam que encontraram um verdadeiro paraíso, principalmente quando o urso de pelúcia Lotso conta que ali eles sempre terão novas crianças com quem brincar. O cowboy, acreditando na felicidade dos amigos, tenta voltar para casa e é encontrado por uma garotinha - uma oportunidade de trazer ainda mais desenvolvimento ao personagem, que repensará um pouco seu destino enquanto se divide entre voltar para casa ou reencontrar os outros brinquedos ao descobrir que Sunnyside é um pouco diferente do que parece inicialmente.
Enquanto Woody vive sua própria jornada, fiel ao objetivo de mostrar aos companheiros que Andy não os abandonou, os outros brinquedos conhecem melhor os residentes de Sunnyside.
Entre os novos personagens, Lotso e Ken são os mais marcantes, por motivos completamente opostos. Ken causa risos com facilidade, apaixonado por Barbie e obsecado em provar que não é feito apenas para meninas. Já Lotso é o primeiro vilão importante da franquia sobre brinquedos que é, pasmem, um brinquedo. Enquanto os heróis sempre foram os personagens de plástico e tecido, os vilões dos outros dois filmes eram humanos. A mudança traz também uma nova maneira de se enxergar esse personagem. Antes, havia certo distanciamento do lado anti-heroico, salvo o arco de redenção de Woody no primeiro filme e Pete no segundo (que mal contam, pois nenhum chegou a ser um vilão real). Dessa vez mergulhamos fundo na história do ursinho de pelúcia em uma sequência amarelada de flashbacks, descobrindo inclusive a raiz de toda a sua amargura, à ponto de sentirmos pena dele. A pena logo desaparece.
Nem tudo que reluz é ouro
Entre os três filmes da franquia, esse é o mais cheio de detalhes - obviamente um resultado do avanço tecnológico, já que Toy Story foi o percursor dos longas de animação 3D e em 15 anos muito pode ser feito para melhorá-la. Além da expressividade dos personagens, tanto brinquedos quanto humanos - Toy Story 3 seria assustador se todas as crianças da creche tivessem a mesma carinha da irmã de Andy no primeiro filme - os cenários se tornaram mais cheios e reais.
Continuamos a acompanhar as mudanças na personalidade de Andy pela decoração de seu quarto, por exemplo. Conhecemos a creche durante o dia como um local colorido e lúdico, e durante a abundância de cenas noturnas somos apresentados aos seus lados mais sombrios, com ares de presídio. O jogo de luz é bem aproveitado, dando dramaticidade à certas cenas. Quando os brinquedos de Andy descobrem a verdadeira face de Lotso, o urso é iluminado por trás, de forma que sua silhueta é delineada por um anel de luz que o destaca. Enquanto isso, Jessie e seus companheiros estão ou tomados pela sombra, ou suavemente iluminados. Isso demonstra as relações de poder entre os personagens - com Lotso claramente em vantagem, os outros brinquedos sujeitos à sua vontade.
Em seguida, Buzzlightyear surge das sombras para luz, revelando uma nova personalidade. Capturado por Lotso ao tentar descobrir o que realmente acontecia em Sunnyside, o patrulheiro espacial foi restaurado à sua versão de fábrica, sem nenhuma de suas memórias na casa de Andy. Dessa forma, o vilão consegue transformar um de nossos heróis favoritos em um de seus capangas, colocando-o contra seus amigos. Sorte dele que os brinquedos de bobos não tem nada. Ao tentar recuperá-lo, eles transformam Buzz em uma versão galante com sotaque espanhol de patrulheiro espacial, e assim ele permanece fazendo graça até as cenas finais.
O único defeito - que não é realmente um defeito, mas deixa uma sensação “agridoce” quanto ao filme - é que Toy Story 3 não deixa o espectador descansar. Ele é frenético, sem parar desde o momento em que somos apresentados à creche. A partir daí, da fuga de Woody, para sua volta em resgate aos amigos e os desafios do final do filme, não há momentos desacelerados como dos dois primeiros, à exemplo da cena em que Buzz percebe que não pode voar.
A cena tensa do incinerador, continuando nessa linha de pensamento, nos faz chorar - mas é acompanhada de uma música pulsante que acompanha as batidas do coração e nos deixa nervosos na ponta da cadeira esperando o desfecho - que é ótimo, por sinal, dando sentido aos três personagens mais fofinhos e ao mesmo tempo inúteis de Toy Story.
Até que chega o fim - depois do encontro de Woody com os amigos, da revelação do passado de Lotso e então da efetivação de uma escapada. Aí nosso desafio se torna superar os soluços. Não haveria maneira melhor de fazer jus à uma franquia que marcou gerações que uma passagem da tocha, um ato simbólico de como nós não só entregamos Toy Story à geração seguinte, como também o fim da trilogia dá lugar à novos longas animados destinados à novas crianças.
Toy Story 3 (Idem, EUA – 2010)
Direção: Lee Unkrich
Roteiro: John Lasseter, Andrew Stanton, Lee Unkrich e Michael Arndt
Elenco: Tom Hanks, Tim Allen, Ned Beatty, Michael Keaton, Joan Cusack, Kelsey Grammer, Don Rickles, Jim Varney, Wallace Shawn, John Ratzenberger, Annie Potts, John Morris
Gênero: Animação
Duração: 103 min.
Crítica | Up: Altas Aventuras
Obs: o texto é enorme, leia com calma e separe um tempinho para isso. Há diversas curiosidades dessa produção que merece uma análise aprofundada, além de marcar a primeira vez que adiciono elementos que tornam a leitura um pouco mais interativa. Prepare os lencinhos, pois é impossível falar desse filme sem conseguir chorar.
Up deve ter marcado a primeira experiência verdadeiramente dramática para muita gente, principalmente da geração dos anos 1990. Com esse especial da Pixar, sabia que chegaria a hora de escrever de Up e que, por consequência, teria que rever a esse belíssimo, mas difícil filme. Assim como muita gente, essa animação marcou a primeira vez que eu choraria ao assistir um filme no cinema.
Acredito que Up consiga se comunicar com muita gente por questões extremamente humanas que vão no cerne de relações familiares. Através de uma jornada fantástica, a Pixar consegue contar um conflito extremamente humano e nada abstrato. A repercussão em 2009 foi tão forte que Up virou a terceira animação na História a ser indicada também na categoria de Melhor Filme na cerimônia do Oscar.
Com tantas análises já publicadas sobre Up, o que é ainda pertinente dizer desse clássico moderno? É praticamente unanimidade que o público ama e a crítica reconhece se tratar de uma das muitas obras-primas do estúdio consagrado. E, em especial, a unanimidade está certíssima. Up é uma daquelas obras que merecem ser estudadas com tanto afinco quanto pedem para analisarmos Cidadão Kane tal qual é o poder cinematográfico dessa história.
Balões
A história de Pete Docter e Bob Peterson está intimamente ligada ao trabalho dos dois na direção. Para quem desconhece completamente esse filme, a narrativa apresenta a vida do modesto senhor de 78 anos Carl Fredricksen em busca de uma aventura inesquecível. Óbvio que essa sinopse reducionista é proposital. O restante do texto abordará spoilers inevitáveis então se ainda não viu a Up, é melhor parar o que está fazendo e ir correndo assistir.
Quisera eu ter essa oportunidade de esquecê-lo completamente, só para vê-lo pela primeira vez de novo. Talvez o único defeito de Up seja justamente esse: ser inesquecível. A potência inicial desse filme fica impregnada na memória para sempre conseguindo nortear quase toda a motivação do protagonista ao longo da jornada.
A sequência, claro, é a tão festejada e extremamente triste ‘Vida de Casados’. Sabiamente, para conseguir a comunicação universal tão desejada, Docter e Peterson começam Up nos tornando, literalmente, Carl Fredricksen ainda um menininho se deslumbrando com o cine-jornal.
A obra começa a esse nível de espectador-personagem nos jogando em um pequeno noticiário sobre o explorador Charles Muntz e seu dirigível Espírito de Aventura. Após Muntz conseguir partes da ossada de lendária Ave do Paraíso, cai em descrédito pela comunidade científica e arqueológica simplesmente por estes desacreditarem do feito do lendário explorador.
Em uma trajetória que praticamente é mimetizada pela narrativa maior de Up, vemos Muntz atingir seus melhores e piores momentos através do informativo filminho. Nisso, com Carl 100% mudo, os diretores usam diversos reaction shots do garoto ficando indignado e excitado em observar seu herói sobrepujando as dificuldades e partindo para a sua maior aventura.
A sucessão de eventos é óbvia e terna. Logo depois da sessão, na exibição de créditos do filme, vemos Carl brincando de explorar nas ruas da pequena cidade até se deparar com uma casa bastante decrépita e curiosa até escutar a frase de efeito de seu herói. Na melhor escolha de manter o ponto de vista completamente centrado no protagonista, ele e nós conhecemos a doce personagem Ellie que, por uma coincidência do destino, também preserva o mesmíssimo espírito de aventura que Carl nutre.
Porém, é claro que os diretores tornam todo esse primeiro encontro em algo de charme único. Como já vinha explorando desde sempre, a Pixar investe nos contrastes e, possivelmente, Up é o filme que mais trabalha com esse nível de linguagem e simbologia de entendimento universal e poderoso.
https://www.youtube.com/watch?v=VR8hlvLghrs&ab_channel=valetom19
Não é apenas pelo contraste tremendo entre “frio” e “quente”, mas também pela cena pontuar diversos elementos-chave de toda a narrativa. E, pela primeira vez na história desse site, sinto que é hora de explorar uma vertente possibilitada pela crítica de catálogo: usar trechos. Por isso, é pertinente que assistam as cenas encaixadas para melhor compreensão do fenômeno cinematográfico, pois, como bem sabem, o cinema é a arte do indizível.
Aqui, o que mais se destaca, além do choque do encontro, é a importância do balão azul de Carl que pontua todo o contato de Ellie com ele. Primeiro, toda a apresentação da menina praticamente explicita que ela é a personificação da aventura de uma vida que Carl tanto procurava. Quando o balão escapa de suas mãos, logo vemos Ellie tomar esse lugar, puxando Carl pela mão – o filme praticamente respira para pontuar essa ação importante do contato físico.
Só nesses pouquíssimos minutos, os diretores já associam Ellie a três objetos que viram sagrados para Carl: a casa, o balão e o broche do clube solitário da menina. Depois, já no quarto de Carl, vemos o balão invadir e interromper sua leitura apenas para anunciar a presença de Ellie novamente – segunda conexão. Aqui, outros elementos que fazem de Ellie a vida de Carl, são apresentados: o seu livro de aventuras (representando todos os sonhos dela) e do juramento. Então a cena é encerrada, com Carl sonhando vivo, claramente apaixonado, se apoiando no balão até ele estourar. Segue então a sequência mais bela do filme todo (preparem-se para chorar).
https://www.youtube.com/watch?v=9yjAFMNkCDo
É perfeição cinematográfica em forma de desenho. A sequência difícil consegue despertar emoções fortíssimas na gente por conta de termos acompanhado a história dos dois personagens desde o momento mais puro de suas vidas até, literalmente, a morte. Não é à toa que os filmes mais emocionantes da Pixar tenham o nome de Pete Docter envolvido na direção: Monstros S.A. e Divertida Mente são seus outros dois filmes.
São outros quatro minutos que também jogam diretamente em favor da construção de Carl. Os contrastes são claros em toda a sequência seja nas cores extremamente vivas do começo, para as menos tonificadas nos momentos mais tristes da história. Vemos Carl se casar na mesma igreja que é realizada o velório de sua esposa. Vemos momentos-chave acontecer no mesmo morrinho do velho carvalho. E também vemos como os imprevistos do cotidiano sacrificam o custo da viagem dos sonhos de ambos. Além de, claro, as dicas dos balões de hélio levitando o carrinho de vendas.
Mas o mais importante é sutil de toda essa sequência é a presença dos diferentes tons de magenta. A cor está associada com Ellie em todos os momentos, seja no vestuário ou na iluminação. Repare que até mesmo quando Carl acorda, já em outra sequência do filme, vemos um resquício de magenta ainda presente na luz que banha o lado da cama que Ellie dormia enquanto Carl está totalmente encoberto pela penumbra.
A reafirmação do compromisso do juramento é indicada pela inauguração do potinho de economias e, no final, com Ellie portando o livro de aventuras – os diretores focam na expressão de Carl que claramente se culpa pelo fracasso de não ter realizado o sonho da esposa. E é essa culpa que guia o apego à memória de alguém que já não está mais lá.
Saindo de toda essa introdução mais comportada como uma longa lembrança de Carl, vemos como o personagem ainda está apegado a todo o materialismo afetivo que “ressuscita” a presença de Ellie. O problema é que o tempo passou e há um enorme shopping em construção ao redor de todo o terreno no qual a casa é fundada. Fica claro, pelo choque da imagem, que Carl não pertence mais àquele lugar, um estranho no ninho. Toda a estética desse pequeno segmento de luto se torna uma extensão da espiritualidade de Carl.
Os diretores fazem rimas visuais com planos mostrados na sequência anterior e mostram sempre a ausência de Ellie em poltronas ou na profundidade de campo. As cores acompanham esse desprazer em viver que o personagem sente. E o cenário só piora para Carl quando agride um mestre de obras, sendo processado e condenado a viver em um asilo pelo resto de seus dias.
Encontrando novamente o livro de aventuras de Ellie, a culpa retorna e a motivação fantástica surge. Pela 1ª vez o filme larga seus ares realistas para injetar a magia fantástica que a Pixar sempre adiciona em seus filmes. Finalizando o primeiro ato, Carl iça sua casa aos ares com a ajuda de milhares de balões, em uma viagem repleta de poesia, parando toda a cidade a observar sua proeza. O destino: Paraíso da Cachoeiras, o lugar dos sonhos de Ellie.
Porém, para trazer novos conflitos e mais fôlego ao filme, um companheiro indesejado é adicionado: o garotinho escoteiro Russell.
Ensina-me a Viver
Muito se discute sobre os atos posteriores de Up. Saindo completamente do propósito otimista e de redescoberta do sentido da vida, é possível traçar toda a jornada de Carl no Paraíso das Cachoeiras como sua própria jornada aos céus. Nesse cenário, o protagonista morre antes de fazer sua casa voar pelos ares, mas passa por uma trajetória no purgatório, encontrando demônios e seus acólitos, assim como anjos que guiam Carl até o Paraíso. É perfeitamente possível associar os elementos apresentados no segundo e terceiro ato com essa interpretação, mas não pretendo me prender a essa visão. Up é um filme mais bonito quando visto pelo prisma apresentado pelos diretores.
Com Carl totalmente estabelecido, inserir Russell é outro trabalho de mestre para criar mais contrastes pertinentes em um choque de gerações. Russell é apresentado já como um solícito ajudante para Carl, afinal ele precisa conseguir uma insígnia de ajuda ao idoso nos Escoteiros. Mas com o temperamento aborrecido, Carl sempre nega a presença de Russell.
Ao longo do filme, nuances de carinho entre os dois vão brotando até Russell virar o filho e o neto que Carl nunca pode ter por conta da infertilidade de Ellie. É aqui que o humor do filme aflora a partir da relação de ajuda desastrada de Russell: a perda do GPS, o fracasso da montagem da barraca e, principalmente, pelos aborrecimentos causados por conta de outros dois inesquecíveis personagens: a “narceja” Kevin e o cão falante Dug.
O mais interessante é que Russell não apenas um mero alívio cômico muito carismático, mas sim um personagem completo contando com seus próprios problemas. Apesar de não muito desenvolvido, sabemos que Russell não tem o pai presente como queria, além de ser pouco felicitado por suas conquistas. Logo, ele preenche a lacuna da figura paterna com Carl até o velhinho acabar assumindo o garoto como neto postiço posteriormente. Há então um bom desenvolvimento para Russell.
O mesmo ocorre com Dug, um cão não muito eficiente por ser carinhoso em demasia. Rejeitado pela matilha, todo o conflito de Dug passa a tentar ser aceito por outro grupo o que também leva a mais perigos originados por sua traição. Não há ponto sem nó no roteiro de Up por conta dessa maestria de condução narrativa.
Na estética, com os quatro reunidos na busca do lugar desejado para “estacionar” a casa de Carl, a estética da animação vibra. Carl é todo quadrado com cores neutras refletindo o modo sisudo. Russell é todo arredondado, amistoso, muito corado e cheio de insígnias. Kevin é a ave do paraíso – a mesma que Charles Muntz buscava no começo do filme, toda colorida mas com movimentos de galinha e poses desengonçadas. E Dug, um labrador todo amarelado de feições igualmente arredondadas e expressivas – em completo contraste com os cães mais escuros de Muntz.
O surgimento de Kevin desvia o caminho original que o roteiro seguiria. Com ela, temos um legítimo macguffin para movimentar ambos os lados. Um, interessado em libertar a ave, a guiando de volta para a família. E o antagonista capitaneado por Charles Muntz em capturá-la para reconquistar o prestígio perdido. Mas enquanto funciona como um artifício ordinário de roteiro, Bob Peterson consegue adicionar elementos humorísticos fascinantes para a ave. Todo o humor é pensado para a expressão corporal do bicho com inspirações claras ao trabalho de Charlie Chaplin. A subversão de expectativas, repetições de esquetes e contrastes de diferentes naturezas pontuam o humor sempre eficiente da carismática ave.
Paraíso
Mas mesmo no paraíso há maldade. E também a sacada genial de centrar o antagonismo do filme justo no herói de infância de Carl e Ellie. Charles Muntz, mesmo sendo o personagem mais superficial da trama, é um dos melhores vilões da Pixar. A sua circunstância de isolamento já o torna complexo pelas informações que o filme transmite na introdução. Deduzimos que, através de sua solidão, acabou criando mecanismos de fala para conversar com seus cães, enquanto se isolava em uma busca mística impossível.
Apesar de não ser dita em palavras, os diretores tornam a busca de Muntz ainda mais trágica por conta de Carl e Russell encontrarem a ave do paraíso em questão de minutos enquanto o explorador a procurava por mais de quarenta anos.
Existe muito poder visual para contar a história de Muntz quando Carl e Russell são convidados para conhecer o dirigível do, até então, herói. Ali, tudo o que sabemos da busca dos cães por Kevin é deixado em escanteio. De certa forma, a estética nos obriga a acreditar que Muntz não se tornará um tirano e prejudicará a dupla protagonista. O que realmente acontece, em primeiro momento.
Toda a primeira sequência no Espírito de Aventura é confortável e fascinante. Vemos as conquistas de explorações passadas de Charles, assim como é gratificante ver Carl verdadeiramente feliz depois de um bom tempo. Durante a excelente cena do jantar, os diretores dão um show de domínio de atmosfera ditada apenas pela iluminação e bom guia musical.
O jantar à luz de velas conforta os heróis e deixa o ambiente aconchegante. Mas tudo isso muda quando Muntz se afasta com o lampião e começa seu solilóquio sobre a sua busca ingrata pela ave. Então temos a mudança no discurso com a revelação que Russell conhece o bicho que Muntz caça. Ali, então há a insinuação que o herói de Carl assassinou outros exploradores daquele lugar e que eles seriam os próximos. As cores quentes somem até Muntz mergulhar para o azul da escuridão indicando a ameaça e sua verdadeira natureza.
A crueldade do personagem acaba complicando a relação de Russell com Carl quando o vilão ateia fogo na casa do protagonista a fim de afastá-lo de Kevin, permitindo a captura. Ainda totalmente apegado àquilo que a casa representa, Carl se torna um vilão e entrega a ave para salvar a casa. Russell se decepciona com a fantasia do herói que tinha vestido a figura paterna. No amanhecer, vemos um banho de luz magenta os envolvendo completamente – a memória de Ellie nunca esteve tão forte como nesse ponto decisivo. Rompendo sua amizade com Russell, Carl arrasta a casa até o lugar tão sonhado na infância dos dois, mas não sente plenitude, afinal, o custo de aquilo tudo é tremendo.
Nisso, temos outra cena genial carregada de toques delicados de Pete Docter na direção:
https://www.youtube.com/watch?v=wsG2S_1PRnk
A casa não reflete nenhuma felicidade, pois ela é só um objeto. Sempre vai refletir o estado de espírito de Carl. Por isso, as cores são monocromáticas até a difícil leitura do livro de aventuras de Ellie. A culpa que guia o velhinho finalmente é cessada, mas por acidente quando Carl descobre as outras páginas preenchidas do livro com as aventuras que ambos tiveram ao decorrer de toda a vida.
O ato de virar a página é de simbologia tremenda, pois era justamente aquilo que Carl precisava. Com o recado de Ellie pedindo para Carl ter uma nova aventura, finalmente há a catarse no protagonista. Nada daquilo vale, mas sim sua própria vida, as novas amizades e novas aventuras divididas com quem amamos. Por isso, nesse ponto de virada, Docter usa o mesmo enquadramento do plano conjunto das poltronas. Agora as cores estão vivas mais uma vez e, na poltrona de Ellie, está a faixa das insígnias de Russell. A indicação é bela: Carl precisa deixar que Russell entre na sua vida agora que Ellie não está mais presente.
Sabiamente, os roteiristas não deixam essa transição light: é necessário sacrifício. Com Russell fugindo para resgatar Kevin, Carl não hesita em se desfazer de toda a quinquilharia da casa para permitir que ela “voe” novamente. Até mesmo a postura de Carl e a velocidade da movimentação são revigoradas. Finalmente ele se torna o herói de aventuras que tanto queria ser ao partir para o resgate.
Todo o humor é retomado, principalmente na hilária cena da luta entre Charles e Carl. O importante nela, além das piadas, é denotar quão profunda é a obsessão de Muntz pela ave a ponto de destruir todo o seu museu pessoal, seu passado, identidade e história durante a batalha. Como Harvey Dent diria, Charles viveu tempo o suficiente para se tornar um vilão.
E seu final é igualmente trágico. Caindo para o esquecimento, mesmo amarrado pelos balões de Carl. É como se a própria Ellie ajudasse os heróis ao prender Muntz nas cordinhas dos balões. Aliás, novamente nessa cena, há o uso diferenciado da mangueira. Esses objetos do cotidiano de um idoso sempre ganha um propósito novo em seu uso para tirar a dupla de diversas enrascadas. Portanto, os objetos intrínsecos ao cotidiano de Carl apenas refletem essa jornada de descobrimento e renovação que ele também passa ao longo da história.
Também é preciso comentar de apenas duas coisas para enfim encerrarmos essa análise. A primeira é a força da cena que Carl entrega a insígnia de Ellie para Russell, literalmente deixando a herança da aventura para o pequeno menino. Quase da mesma forma que a aventura foi simbolizada para ele através desse presente da esposa quando ainda jovens.
E a segunda, obviamente, é a trilha surreal de Michael Giacchino. Uma música que dá tanta leveza e orientação ao filme é tão colada em sua estética que, somente com uma assistida ao longa, fica impossível escutar as melodias e não ficar levemente emocionado somente com elas. É uma força musical raramente vista nos cinemas e que provavelmente Giacchino nunca mais atingirá em vida. É daquelas obras-primas únicas que marcam a vida de um compositor para todo o sempre.
O que a deixa tão viva é sua consistência se comportando quase como um manifesto. Há alguns lunáticos que dizem que a trilha de Up é repetitiva e que, por isso, é ruim. Por isso digo, é óbvio que a música é repetitiva, pois há um propósito por trás disso. Quase todas as faixas são alterações do tema de Ellie. Nada mais justo, afinal é a onipresença invisível da personagem que guia as decisões de Carl a todo o momento. O protagonista só pensa nela e, como extensão do personagem, a trilha “ressuscita” Ellie com diversas alterações de ritmo e compasso. Nenhum outro tema consegue superar o brilho desse, porém existem outras composições que agregam para criar diferentes atmosferas.
Te conheço há tempos e continuo te amando
Up funciona exatamente como uma flechada de um cupido. É muito difícil não se apaixonar pela fantástica história de amor e aventura trazida Docter e Peterson. É um estado de realização estupendo conseguindo injetar e desenvolver praticamente todos os elementos com um nível de satisfação que tanto faz falta no cinema atual.
Mesmo apaixonado pela história, é sempre difícil revisitar esse filme por conta das muitas emoções e memórias afetivas que ele desperta em mim. Aqueles detalhes da infância que nunca cessam de existir.
Porém, assim como Dug tão sabiamente fala: Acabei de te conhecer e já te amo – uma premonição do que o espectador sente depois da primeira exibição – posso afirmar com bastante critério que, mesmo depois de oito anos da minha mágica primeira visita, o amor que sinto por esse filme é verdadeiramente eterno.
E agora, mais do que nunca.
Up – Altas Aventuras (Up, EUA – 2009)
Direção: Pete Docter e Bob Peterson
Roteiro: Pete Docter, Bob Peterson, Tom McCarthy
Elenco (vozes originais): Edward Asner, Christopher Plummer, Jordan Nagai, Bob Peterson, Delroy Lindo, Jerome Ranft
Gênero: Animação Infantil, Aventura, Drama
Duração: 96 minutos
Crítica | A Vida de uma Mulher
Depois de filmes notáveis, como O Valor de um Homem, Uma Primavera com a minha mãe e Mademoiselle Chambon, o diretor francês Stéphane Brizé sai dos cenários contemporâneos para realizar seu primeiro “de época”. Para isso, recorreu à literatura de seu país e optou pelo primeiro romance do célebre Guy de Maupassant, Une vie – que também é o título original do filme. Para cá veio como A Vida de uma Mulher. Essa “vida”, porém, que nas letras invocava algo mais abrangente, embebida nas influências de Flaubert e Balzac, na tela ganha traços de um Lars Von Trier de segunda.
Esse destaque, diga-se, é despertado logo nos primeiros planos, com a câmera na mão e seus cortes bruscos e a textura granulada numa tela com razão de aspecto limitada. Nessa prisão visual, porém, não há uma dinâmica entre os corpos, nem uma dramaturgia que a justifique. Brizé opta por contar a história com grandes elipses de tempo, filmando apenas os picos do relevo dramático. Acaba desenhando um terreno tortuoso, não porque complexo, mas porque incapaz de alcançar uma unidade.
No caminho unívoco que segue o enredo, a empatia com a personagem de Jeanne (Judith Chemla) depende de todo o desenvolvimento dramático. A moça acaba de voltar para casa dos pais após completar os estudos e é levada a casar-se com Julien (Swann Arlaud), um moço bem quisto na região. Duas ou três sequências depois, já estão juntos na cama, passando a ideia de uma união matrimonial/sexual forçada. Momentos depois, descobrimos que o tal príncipe não passa de um patife, quando a mulher descobre o adultério com uma das serviçais. Por influência do pároco e da família, Jeanne perdoa o marido e prossegue estoicamente em seu sofrimento. Com a ferida ainda fresca, seguem-se outros deslizes por parte do homem, que terminam tragicamente.
Esses grandes saltos temporais são uma boa ideia de representar as feridas que não saram. Por outro lado, para ter um corte, é preciso ter superfície, e para a emoção, alguma profundidade. E, por todo o filme, a câmera deixa Jeanne por poucos momentos. Mas como tudo é embalado na obviedade e numa aparente presunção, resta senão a impressão de um romanesco preguiçoso, não aquele que deu destaque para os artistas do período, nem nos seus desdobramentos.
A Vida de uma Mulher desconjunta-se em diversos retalhos, da mesma maneira como o recente Moonlight - Sob a Luz do Luar não conseguia sustentar a balança entre a história e seu personagem em seus três capítulos. São dois filmes bem parecidos, inclusive, na abordagem da trajetória de seus protagonistas-vítimas. A trajetória de Jeanne encerra-se num desfecho moralista (“A vida nunca é tão boa nem tão ruim quanto se pensa”), ao mesmo passo que a de Chiron segue a busca pelo individual num destino social bem traçado. Jeanne sofre, intransponível, poética para si e talvez para quem a conheça. Mas o tom universalizante deixado pela “lição final” não reflete o restante do filme, assim como Moonlight exigia no último momento uma ligação sentimental não construída.
Jeanne é nobre, filha de barões, vive no ambiente rural, escreve, solta uma verso aqui e outro acolá. Sofre com a canalhice do marido, com o sanguessuguismo do filho, com a morte da mãe… E o filme prossegue, filmando essa esponja de desgraças, repetindo os mesmos sons no piano, entre a alcova, os jardins e a vista do mar, com momentos mais alegres no verão verde-amarelo e mais tristes no inverno azul-preto – tudo para que o clímax sangrento ganhe feições fantasmagóricas que o justifiquem. O ritmo tedioso “intencional” mostra-se um experimento (que não é novidade alguma) desde o princípio malfadado.
Desse reducionismo, não parece sobrar nada que não um conformismo datado, com os trajes de um romântico de lentes modernas. Essa vida, porém, não consegue se desdobrar o bastante para falar de uma mulher nem de ontem, nem de hoje.
A Vida de uma Mulher (Une vie, França - 2016)
Direção: Stéphane Brizé
Roteiro: Stéphane Brizé e Florence Vignon
Elenco: Judith Chemla, Jean-Pierre Darroussin, Yolande Moreau, Swann Arlaud, Nina Meurisse, Olivier Perrier e Clotilde Hesme
Gênero: Drama
Duração: 119 min