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Crítica | Em Ritmo de Fuga

Se o nome de Edgar Wright não lhe soa familiar, feche esta página agora e imediatamente siga para o IMDb e o serviço de streaming mais próximo. É o famoso caso de um cineastas impecável, daqueles que realmente dominam a linguagem como poucos na atualidade, mas que infelizmente ainda é um nome desconhecido do grande público; para se ter ideia, os três principais filmes de Wright foram parar direto no mercado home video aqui no Brasil, a famosa trilogia do Cornetto composta por Todo Mundo Quase Morto, Chumbo Grosso e Heróis de Ressaca. E, sim, você definitivamente deveria conferir esses três hilários filmes.

O único filme de Wright que viu a luz nas telas brasileiras foi Scott Pilgrim contra o Mundo, outro filmaço que também é limitado a um nicho muito reduzido, tendo sido um fracasso comercial tanto aqui quanto nos EUA. A grande chance de Wright alcançar o grande público viria com outra adaptação de quadrinhos, no vasto universo cinematográfico da Marvel Studios com Homem-Formiga, projeto que o diretor vinha desenvolvendo antes mesmo de Homem de Ferro estrear. Infelizmente, divergências criativas com Kevin Feige acabaram forçando a saída de Wright do filme, partindo então para realizar sua própria investida no subgênero do heist (algo que Homem-Formiga também se propõe a fazer), e temos aí o nascimento de Baby Driver – traduzido aqui como Em Ritmo de Fuga, e essa é a última vez que irei me referir a este filmaço desta forma.

Basicamente, imaginem se La La Land fosse um filme de perseguição de carros.

A trama é centrada em Baby (Ansel Elgort), um habilidoso piloto de fugas que ajuda o misterioso Doc (Kevin Spacey) em diversos golpes e esquemas criminosos, sendo o melhor motorista do negócio. Afetado por um acidente na infância, Baby está constantemente ouvindo música para abafar um zunido em seu ouvido, praticamente levando sua vida com trilha sonora. Quando conhece e se apaixona pela garçonete Debora (Lily James), Baby promete sair do negócio de direção de fuga ao se comprometer a um último serviço, que conta também com um grupo criminoso formado por Bats (Jamie Foxx), Buddy (Jon Hamm) e Darling (Eiza González).

Subversão de Gênero

A velha e batida premissa do “último serviço e estou fora”, aliada das já esperadas reviravoltas de “eu tento sair, mas eles me puxam de volta”. Não que isso seja um problema, afinal, convenções de gênero e suas desconstruções sempre foram a especialidsde de Wright, vide o cinema de zumbis em Todo Mundo Quase Morto, o buddy cop em Chumbo Grosso e a ficção científica body snatcher em Heróis de Ressaca. Aqui, o diretor e roteirista abraça por completo a variante do heist, assim como o cinema de ação automobilístico tão bem representado por Steve McQueen nos anos 60 e 70.

Baby Driver segue a mesma fórmula ao levar a sério todas as regras do gênero, mas também inteligentemente quebrando-as ao trazer um humor sagaz e momentos que caçoam de sua própria artificialidade; vide o impagável momento onde o personagem de Spacey oferece um longo monólogo expositivo sobre a origem de Baby, ao mesmo tempo em que desenha um mapa complexo em uma lousa. Nada sutil, mas quando Spacey ironiza e se impressiona com o fato de ter feito um diagrama tão perfeito enquanto “ficava de conversa”, vemos que Wright tem ciência dos clichês que aborda. A forma como constrói as relações entre os personagens e estabelece rumos da história também foge do comum, com o roteiro esperto enganando o espectador ao, por exemplo, sugerir que um determinado sujeito seria o melhor amigo de outro, quando na verdade a narrativa o conduz a tornar-se um inimigo letal.

Por um lado, isso garante ao longa um ritmo quase imprevisível e diferente do padrão, mas também um fator que ocasiona no maior problema do filme: sua conclusão. Sem grandes spoilers aqui, mas a necessidade de Wright em amarrar todas as pontas soltas acaba criando um terceiro ato consideravelmente mais inchado e permeado por uma sucessão de cenas que poderiam facilmente servir como o clímax, mas então Wright dobra os esforços e vai oferecendo mais cenas climáticas atrás da outra, o que acaba por cansar o espectador. A elipse que se desenrola próxima do fim também surge inorgânica e apressada, como se quisesse pular logo para um final muito específico, que segue a influência de Wright pela Hollywood clássica. É um mero deslize em um filme que beira a perfeição.

Figurinhas

Esse apuro se estende também ao fabuloso leque de personagens que Wright tem à sua disposição, cada um com um estilo e personalidade próprio, jamais soando genérico ou simples jogadores descartáveis com funções específicas e unidimensionais. O próprio Baby instiga pelo ar cool e introspectivo, características que o ótimo Ansel Elgort absorve bem e ainda evolui para ações como dançar de forma excêntrica na rua ou cantar euforicamente suas músicas preferidas; e Wright merece créditos pela divertida dinâmica com o personagem de CJ Jones, que interpreta seu pai adotivo mudo, rendendo diversas cenas de diálogos em linguagem de sinal.

Os membros da trupe criminosa são uma grande surpresa, especialmente por sempre caírem no triste cenário genérico apontado no parágrafo anterior. A começar por Jamie Foxx, que parece trazer uma versão mais multifacetada e divertida de seu Motherfucker Jones em Quero Matar meu Chefe (a caracterização com as tatuagens é muito parecida), e faz de Bats uma figura inconstante e que rapidamente consegue tornar-se detestável – no bom sentido, e desde Django Livre Foxx não surgia tão inspirado em cena. A química entre Jon Hamm e Eiza González também garante algo diferenciado, com a presença de um casal criminoso arrancando interações inusitadas da dupla com o restante do elenco, além de um background sugerido que garante ainda mais força ao texto de Wright. Por fim, Kevin Spacey nos entrega mais uma performance controlada e suave, com seu perfil sério e rígido sendo o toque perfeito para o misterioso Doc, e quando o personagem mantém essa naturalidade para ameaçar o protagonista de forma assombrosa, vemos que Spacey sempre traz algo novo.

Talvez o ponto fraco esteja na personagem de Lily James, que é vivida de forma adorável e carismática pela atriz, mas não vai além de uma figura unidimensional e sem muita profundidade. As cenas de James e Elgort fazem valer a pena, ainda mais pelos diálogos descontraídos e regados de referências musicais, em um viés Tarantinesco e Linklateriano, e gosto muito da piada de como os dois discutem que, pelo fato de seu nome ser Baby, todas as músicas do mundo são feitas sobre ele.

Velozes e dançantes

Mas então chegamos ao grande truque do filme: a ação musical. Tamanha a importância das manobras de Baby Driver, o nome do coreógrafo Ryan Heffington é um dos primeiros a aparecer durante os créditos de abertura, e é de fato merecido: as perseguições de carro e outras cenas de ação do filme são realmente impressionantes, tanto pelos feitos arriscados e radicais que vemos em cena, quanto pela condução de Wright e a forma como ele dirige e monta tais momentos, com destaque para uma elaborada manobra onde o subaru de Baby rodopia entre dois caminhões. Dono de um estilo incisivo, a montagem de Jonathan Amos e Paul Machliss ajuda a conferir ritmo e organizar todas as ações, como mostrar detalhes do volante, pedais e múltiplos ângulos para a ação – sendo essencial também na sincronização com a trilha sonora.

Adicione tudo isso ao fato de que cada sequência apresenta uma ou duas músicas pop em sua seleção, e o resultado é uma explosão de energia e movimento que há muito tempo não víamos nesse tipo de cinema. Diversas vezes temos uma sincronia de ações e foley com batidas e instrumentos musicais (algo que Wright já havia testado na memorável cena com Queen em Todo Mundo Quase Morto), de forma que sons de tiros sempre são mixados junto com batidas de determinadas faixas, vide o tiroteio regado por “Tequila” ou até mesmo movimentos de carros e corridas, em um verdadeiro balé de ação. É um incrível domínio sonoro aqui, especialmente nas constantes variações entre diegético e não diegético, com a música ficando mais baixa e abafada quando algum personagem remove os fones de Baby. Nem posso imaginar a dor de cabeça dos editores e mixadores de som, que só não serão recompensados com indicações ao Oscar caso a Academia tenha enlouquecido.

E a seleção musical? Certamente a playlist mais caprichada e variada do ano, que mistura um pouco de alguns dos melhores  gêneros musicais, do pop, rock, rap e reagge. É preciso um ótimo gosto para reunir uma seleção desse calibre, que conta com Barry White, Queen, The Beach Boys, T.Rex, entre outras inúmeras canções que o espectador definitivamente vai querer em suas playlists após o final do longa. Ah, e só preciso confessar como “Bellbottoms” do The Jon Spencer Blues Explosion, música que abre o filme, é uma peça musical absolutamente viciante. Muito obrigado, Edgar Wright, por preencher meu celular de novas músicas.

Com uma condução mais segura e amadurecida, Baby Driver é um dos melhores filmes de Edgar Wright, que cada vez mais se firma como uma das vozes mais vibrantes e originais do cinema contemporâneo. Com uma combinação explosiva de ação e música, esse é o tipo de filme que o cinema americano precisa cada vez mais.

Em Ritmo de Fuga (Baby Driver, EUA – 2017)

Direção: Edgar Wright
Roteiro: Edgar Wright
Elenco: Ansel Elgort, Lily James, Kevin Spacey, Jamie Foxx, Jon Hamm, Eiza González, Jon Bernthal, CJ Jones, Micah Howard, Lanny Joon
Gênero: Ação
Duração: 112 min

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Publicado por Lucas Nascimento

Estudante de audiovisual e apaixonado por cinema, usa este como grande professor e sonha em tornar seus sonhos realidade ou pelo menos se divertir na longa estrada da vida. De blockbusters a filmes de arte, aprecia o estilo e o trabalho de cineastas, atores e roteiristas, dos quais Stanley Kubrick e Alfred Hitchcock servem como maiores inspirações. Testemunhem, e nos encontramos em Valhalla.

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