Certa vez, Alfred Hitchcock disse ser essencial que, ao ver um filme pela primeira vez, o espectador sinta que todos os acontecimentos são verossímeis, mesmo que o roteiro tenha alguns “furos”. Claramente, muitas das obras que conquistam a simpatia inicial do público, quando revistas, não se sustentam e revelam ter erros que passaram despercebidos anteriormente. Exemplos cristalinos disso são as dirigidas por Christopher Nolan. À primeira vista, causam deslumbramento. Numa revisão, perdem boa parte de seu charme. No entanto, nem todas elas sofrem desse problema. Casos como A Origem e, principalmente, Amnésia (o assunto desta crítica), ao invés de empobrecerem em consultas posteriores, enriquecem cada vez mais.
Desenvolvido pelo próprio diretor a partir de uma história escrita pelo seu irmão, Jonathan Nolan, o roteiro conta a história de Leonard (Guy Pearce). Em decorrência de um ataque sofrido no momento em que a sua esposa (Jorja Fox) era estuprada e assassinada, ele desenvolveu uma doença cognitiva constituída da perda de qualquer memória adquirida recentemente. Como deseja ir atrás do sujeito responsável pelos principais males de sua vida, pinta o corpo de tatuagens e tira fotos de todas as situações pelas quais passa para se lembrar das coisas que lhe acontece. Para piorar, tem de conviver com Teddy (Joe Pantoliano) e Natalie (Carrie-Anne Moss), duas pessoas cujo comportamento é escuso.
Em essência, a história de Amnésia é extremamente simples. A quantidade de filmes que giram em torno de premissas similares é incontável. Na verdade, o mérito de Nolan não reside no conteúdo da trama e sim na maneira com que ela é contada. Assim como William Faulkner colocou o leitor na mente de um autista no romance Som e Fúria, o diretor, no seu segundo longa-metragem, nos faz enxergar o Mundo através dos olhos de um sujeito portador de amnésia. É através da fragmentação de sua memória, que oscila entre lembranças pretéritas e o desaparecimento gradual dos últimos acontecimentos, que nós tentamos encaixar as peças do quebra-cabeça.
Para obter esse efeito de cumplicidade entre o público e o protagonista, Nolan lança mão de três recursos: a proximidade da câmera, uma história que se desenrola do fim para o começo (o efeito retroativo na cena inicial é um inteligente foreshadowing) e o emprego de cores em uma das duas narrativas. O primeiro aspecto é essencial para criarmos intimidade com os conflitos de Leonard e, assim, acreditar no que ele diz e ouve; a segunda, porque nos faz enxergar a história da mesma forma que o personagem, ou seja, através de uma perda progressiva das lembranças mais recentes. Ainda sobre esse segundo aspecto, é importante ressaltar a subversão realizada pelo diretor. Quase todas as histórias caminham para um terceiro ato em que as pontas soltas são atadas e a trama culmina em um clímax poderoso. Ao começar pelo fim e voltar até o início, o diretor transforma o terceiro ato na epítome da jornada interior do protagonista e não da história, pois passamos a flertar com ponto decisivo da sua vida: a morte da esposa. Por fim, o terceiro aspecto, que diz respeito às cores, serve para criar choques entre tons (a vivacidade da camisa azul cria um contraste forte com a palidez do terno creme) e desnortear, parcialmente, o espectador.
Esses três elementos, juntamente com a narração em off, que verbaliza os pensamentos de Leonard, são vitais para permanecermos num estado de confusão idêntico ao do personagem. É impossível saber em quem confiar ou discernir a verdade da mentira. Nesse sentido, o filme atinge um nível sufocante de tensão e, mesmo que por breves momentos, podemos sentir a angústia proveniente da incapacidade de construir a própria história, uma vez que o tecido usado na confecção de nossas biografias é o mesmo empregado na formação das lembranças. Além disso, não há como não se entristecer vendo a pequenez das pessoas que se aproveitam de uma deficiência alheia para obter algo.
Porém, como não parece ser do interesse de Nolan deixar toda a história na seara da subjetividade, inteligentemente, ele introduz uma narrativa paralela muito mais objetiva. Usando um preto e branco acinzentado, sem muitos contrastes, alguns planos distantes da ação, uma subtrama envolvendo uma interessante anedota, além, é claro, de um desenrolar linear, o diretor adota uma atmosfera mais sóbria para oferecer sutilmente as chaves necessárias para que possamos chegar às nossas próprias conclusões. Àqueles que têm dificuldades para entender as linhas temporais do filme, basta usar o seguinte exemplo numérico: 1 é o começo da história, e 10, o fim. A narrativa em cores começa pelo fim, isto é, no número 10, e a preta e branca se inicia no número 1. Como anda de trás para frente, a que começa no número 10 vai até o número 4, e como a que começa no número 1 é linear, ela vai do início também até o número 4. Nesse exato momento, as bifurcações se conectam.
Também achando espaço para comover o espectador (mérito da vulnerabilidade que Pearce consegue transmitir pelos olhos e da pontual e eficiente trilha sonora de David Julyan), Amnésia é um experimento com a linguagem perfeitamente funcional de um diretor que ainda estava dando os seus primeiros passos no Cinema. A segurança e domínio de certas ferramentas que Nolan mostra ter aqui são impressionantes. Melhorando ainda mais o filme, alguns problemas que se tornariam recorrentes nos longas posteriores, como diálogos expositivos, pobreza cênica e dificuldade em estabelecer a geografia das cenas, não dão as caras neste seu segundo longa. Finalmente, é uma obra que consegue sobreviver às revisões.
Seria muito dizer que é uma das grandes obras-primas de sua carreira até o momento?
Amnésia (Memento, EUA – 2000)
Direção: Christopher Nolan
Roteiro: Christopher Nolan
Elenco: Guy Pearce, Joe Pantoliano, Carrie-Anne Moss, Jarja Fox
Gênero: Suspense/Drama
Duração: 113 min