Crítica | Carros 3
É inegável. A Pixar sofreu mudanças profundas em seus, até então, dogmas. Apesar da primeira sequência de Toy Story, era praticamente lei priorizar histórias originais que sempre desafiassem a equipe criativa do estúdio a nunca estacionar na zona de conforto. Mesmo que quase todos os dezoito filmes sempre contenham uma dose de “fator Pixar”, algumas obras deixaram bastante a desejar. É praticamente um consenso que os filmes Carros marcam os trabalhos mais decepcionantes da louvada produtora. Porém, Carros 3 chega para mudar esse senso comum.
Na verdade, há muita coragem envolvida nessa terceira incursão na franquia Carros. Enquanto o primeiro filme continha audácia em sua conclusão, o segundo caminhou para uma narrativa de espionagem completamente alheia a mitologia do universo, além de marcar a primeira vez que o estúdio apostaria em uma obra guiada pelo coadjuvante do original – isso se repetiu com Procurando Dory.
Entretanto, a parte final da trilogia indica um amadurecimento que dificilmente acreditaria ver em Carros. Aliás, é algo bastante corajoso, pois se trata de uma das marcas mais infantis da produtora, mas todo o conflito dessa obra é bastante abstrato para muitas crianças. Em si, os filmes da Pixar se comunicam bem com o público infantil por conta da natureza universal de seus dramas: seja um embate de inveja como em Toy Story, o drama entre pai e filho de Procurando Nemo, as amizades improváveis por conta de preconceitos de uma sociedade como visto em Monstros S.A. até a aceitação plena da necessidade da tristeza na vida de cada um em Divertida Mente.
Já Carros 3 certamente encontrará alguma dificuldade em mesmerizar o público infantil. Aliás, até imagino que muitas crianças sairão decepcionadas.
O Tempo Voa...
...E Relâmpago McQueen sente isso na principal proposta do argumento do diretor Brian Fee e mais três pessoas para essa narrativa que conclui a trilogia mais rentável da Pixar até agora. Aqui, McQueen sente o peso da idade. Quase sempre dominando as pistas, não há real desafio para o fenômeno das corridas. A pista vira um terreno de convívio social, entre amigos, de diversão e terapia para McQueen.
Porém, a chegada de um carro novo, mais tecnológico e treinado com simuladores chamado Jackson Storm inicia uma virada no jogo. Diversos outros competidores antigos são substituídos pelos companheiros high-tech de Storm. E McQueen perde, perde e perde. Por fim, também perde o temperamento, age impensadamente na vã tentativa de ganhar a corrida e acaba sofrendo um terrível acidente que pode trazer sua aposentadoria. Tentando recuperar a confiança perdida, McQueen se submete aos treinos de Cruz Ramirez, sua personal trainer, para conquistar uma última vitória.
Existe a audácia boa e exista a burra. Estranhamente, o texto de Carros 3 consegue atingir esses dois extremos ao mesmo tempo. A pura verdade é que a temática desse filme é muito abstrata para o seu público-alvo, mas traz mensagens interessantes para os adultos que as acompanharem no cinema.
Este Carros traz um debate sobre aposentadoria no esporte, sobre os limites de cada esportista e saber a hora de parar. Temas pertinentes, interessantes e totalmente alheios com o que essa franquia representa. Apesar da justificativa do fracasso de McQueen se centrar na obsolescência da tecnologia que compõe seu corpo, é completamente injustificado dentro da história a completa inexistência de alternativas que permitissem um upgrade em seu modelo, o colocando como um adversário formidável para o vilão. Mas, ironicamente, em Carros, cada carro é um carro absoluto, sem possibilidade de modificações que aperfeiçoem o desempenho.
Em vez de seguir esse rumo que seria familiar às propostas dessa trilogia, Carros 3 escolhe a típica narrativa do underdog assim como foi feito em Rocky 3, 4 e Rocky Balboa (principalmente este). Acompanhamos o árduo treinamento de McQueen para recuperar a glória de outrora, mas optando por seguir os passos nada ortodoxos da novata Cruz Ramirez (dublada por Geovana Ewbank carregando excessivamente no sotaque). Porém, por conta do sacrifício, o protagonista sente saudade de casa e de seus amigos, além de relembrar a todo instante do seu antigo mentor, Doc Hudson.
Aliás, esse é um ponto importante da história. A Pixar optou por matar o personagem quando Paul Newman morreu antes mesmo da estreia do primeiro filme. Agora, isso certamente deixará as crianças um tanto perdidas, já que os roteiristas tratam isso tudo com panos quentes, nunca deixando claro o motivo de Doc ter falecido na narrativa – o diretor tenta resolver isso com inserções de sonhos ternos nos quais McQueen imagina a presença de seu amigo e mentor.
É justamente nessa abordagem intimista de McQueen interpretar as motivações de seu mentor que os roteiristas desenvolvem o protagonista. Afinal, o que vale mais? Correr para sempre ou pendurar as luvas? Diversas sequências mostram os limites de McQueen enquanto ele mesmo passa a virar tutor da sua personal trainer ao decidir treinar no interior dos EUA em uma viagem até a Flórida, lugar onde acontece a corrida final.
Logo, há essa inversão de papeis de treinadores em uma boa experiência de troca de conhecimentos. McQueen também já é um personagem bastante diferente, mais humilde e menos aficionado à pista. O dito “vilão” da história, Storm, é basicamente um espelho do temperamento arrogante do personagem no primeiro filme – um fantasma personificado do passado caindo na velha máxima de “o seu maior inimigo é sempre você mesmo”.
E realmente, nessa questão, a Pixar vai fundo em desenvolver McQueen. Ele é o crowd pleaser da franquia e foi satisfatório ver tanta atenção para uma nova jornada de amadurecimento. O problema, talvez, resida no total esquecimento dos outros personagens queridos da franquia como Sally e Mate. É um espaço reduzido que tira humor e personalidade dessa história porque os novos personagens nunca cumprem o vazio deixado pelos outros.
A começar com a coadjuvante principal Cruz Ramirez. Ela toma uma importância enorme no clímax da obra e, sim, é sugerido que algo importante aconteça com ela. Mas é uma virada inacreditável que pode deixar muita gente frustrada com a conclusão da obra. O fato é que há muito pouco que sustente a personagem, pois todo o trabalho é focado em McQueen. Há algum backstory para ela, mas trata-se da mesma relação fã-astro genérica que marca diversos outros filmes.
Já Luigi e Guido, os únicos da velha guarda que acompanham McQueen, recebem menos trabalho ainda. Viram meros acessórios para auxiliar algumas sequências de treinamento, nunca colaborando de fato a jornada psicológica e o luto que o protagonista passa. Entram mudos e saem calados, fazendo as mesmas piadas em duas cenas. O novo personagem símbolo do passado, Smockey, também não recebe tratamento satisfatório, mas ajuda McQueen a atingir a catarse.
A Sabedoria Mística do Interior
Outra característica muito curiosa de Carros 3 é o seu elogio e crítica aos costumes interioranos do sul americano. Quando enfim os personagens começam a jornada para o treinamento “raiz” de McQueen, sem parafernalhas tecnológicas, o filme começa a se lembrar que se trata de uma obra infantil. Claro que o texto, apesar do tema complexo, não é denso a ponto de perder a atenção das crianças, mas o ritmo sofre bastante com sequências de corrida cada vez mais espaçadas.
Existe ação e carisma, mas os treinamentos em si não são exatamente corridas. Logo, há uma carência de set pieces para fazer o público infantil vibrar. A que surge no meio visa expandir o universo com a disputa de Thunder Hollow que é uma arena para carros se destruírem em competição (um UFC de carros?). A sequência é bipolar, pois é sombria demais para agradar a criançada e estúpida demais com personagens histéricos para os adultos. A ação que Brian Fee organiza também é bem confusa, não dando margem para uma apreciação melhor do que acontece em tela.
Já as outras novamente envolvem o treinamento de McQueen na cidade do mentor de Doc, Smockey, para enfim chegar aos finalmentes com o clímax da obra. Entretanto, novamente o segmento repetido de treino se sustenta por aprofundar mais a relação de Doc com McQueen revelando novas características da amizade.
É justamente aqui que as sutilezas surgem já justificando a virada inacreditável da corrida final.
Sob Nova Direção
Já era mais que hora para o gênio John Lasseter deixar a direção de Carros. A mudança para Brian Fee é sentida e bastante bem-vinda, apesar da confusão visual que ele cria para cenas de ação – as de corrida são os espetáculos visuais e sonoros de sempre.
O legal é o fato de Fee respeitar algumas marcas já icônicas da franquia vindas de Lasseter. O começo do filme acompanha a clássica preparação psicológica de McQueen enquanto interpola com rápidos planos de carros cruzando em alta velocidade. O efeito de nostalgia surge na hora. O mesmo começo eufórico visto no primeiro filme ilustra a alegria de McQueen em correr sempre com seus amigos.
Em uma sacada convencional, a música licenciada rapidamente é substituída pela trilha do ótimo Randy Newman quando o jogo começa a mudar com a vinda dos novos competidores high-tech. Depois, Fee assume uma função meramente descritiva para a câmera, sem inventar muitos floreios na linguagem simples da obra.
Claro que o momento tão alardeado, a do acidente que o protagonista sofre, é fortíssima. Com McQueen surgindo no topo do plano, já desmaiado, rodopiando em piruetas no ar até cair no chão em slow motion. O ponto alto de Fee é a atenção no olhar dos personagens. Certamente, Carros 3 oferece o insight mais valioso na expressividade desses veículos tornando todo o drama de McQueen muito mais realista e de rápida empatia.
Nesse domínio de clima e atmosfera, é difícil também ficar indiferente a recorrência constante à Doc Hudson. As memórias, sempre coloridas e de iluminação angelical, contrastam com a realidade mais opaca de um mundo onde correr já não é mais tão divertido. Até chegar na explosão de cores vivas no fim, o caminho por praias nubladas e cidadezinhas encobertas por névoa é constante. Aliás, essa névoa se dissipa após uma das catarses de McQueen. Logo, é uma singela analogia para o estado de ignorância e insistência do protagonista.
Pode parecer estranho, mas a qualidade de texturas e luz, apesar de ainda soberba, não consegue superar o trabalho visto em Dory ou O Bom Dinossauro. Até mesmo se comparada a Carros 2, dono de uma direção de arte estupenda, esse filme fica empalidecido, infelizmente. Os cenários fotorrealistas ainda capturam a beleza interiorana americana, além de Fee fazer uma jogada legal de montagem durante uma das sequências que mostram os carros viajando estrada a fora. Aliás, importante dizer que esse Carros é o mais NASCAR da franquia. Desde referências muito obscuras sobre lendas esquecidas do esporte até extrema fidelidade na física da pista ovalada, dos detritos diversos e das regras da corrida. Uma atenção que realmente destaca esse filme dos demais.
Uma das principais deficiências do diretor, portanto, é essa falta de coesão entre o visual e a proposta vinda pelo texto. Isso envolve diretamente McQueen. É claro que existe um contraste entre ele com os modelos novos que dominam as pistas, mas é bastante abstrato o conceito dos fracassos do personagem sendo que o seu visual continua o mesmo dos seus dias de glória. Envelhecer um pouco a lataria do personagem teria potencializado essa questão da idade tão martelada na história.
Carros para Adultos
Longe de ser a melhor obra da Pixar, Carros 3 tem suas doses de carisma e emoção pela bonita mensagem de altruísmo. Porém, como apontado anteriormente, seus problemas são graves, principalmente pelos segmentos desonestos que o filme indica que irá trilhar para subverte-los totalmente ao fim do terceiro ato. Enquanto para a plateia mais adulta a situação fará sentido, será difícil de lidar para as crianças cujo filme deveria ter sido pensado para elas, principalmente.
Mesmo com suas qualidades que elevam a obra e a tornam especial, muitas escolhas tomadas devem frustrar os pequenos. E quando uma experiência infantil pode dar margem à frustração, certamente há algo de estranho nos meandros explorados aqui. Com grande coração e passagens bipolares, Carros 3 perpetuará a marca registrada dessa trilogia: a divisão entre o público.
Carros 3 (Cars 3, EUA – 2017)
Direção: Brian Fee
Roteiro: Brian Fee, Ben Queen, Eyal Podell, Jonathon E. Stewart, Kiel Murray, Mike Rich, Bob Peterson
Elenco (vozes no original): Owen Wilson, Armie Hammer, Cristela Alonzo, Chris Cooper, Nathan Fillion, Larry the Cable Guy, Bonnie Hunt
Gênero: Animação Infantil
Duração: 106 min.
Crítica | Castlevania - 1ª Temporada
É uma pena o que anda acontecendo com uma das maiores franquias dos videogames. Desde o fracasso de Lords of Shadow 2, Castlevania só foi jogada às traças pela Konami. O que não é exclusividade dessa franquia. Não se trata, porém, aqui, de discutir o mundo dos games, senão da nova produção original da Netflix. Quando um espectador desavisado se depara, nos créditos iniciais com o nome de Warren Ellis no comando do roteiro de um projeto que não pode viver sem uma violência comicamente perturbadora, parece, na hora, não existir melhor opção entre os autores norte-americanos. Escritor de histórias em quadrinhos como a ácida Transmetropolitan, e outras célebres como The Autority, Planetary, sem esquecer de sua passagem por Hellblazer, idealmente, Ellis parece ser o par perfeito para entregar nas telinhas um bom roteiro extraído de um jogo que mais é do que diz.
O que esses primeiros episódios de Castlevania mostram é que, sim, é possível formular algo com base em Castlevania III: Dracula’s Curse. Sim, é possível dar carisma aos personagens, assim como formular diálogos que não imitem o aspecto travado e sinceramente descartável dos antigos jogos. Não falta conteúdo para que a franquia chegue às telinhas como entretenimento aos loucos por sangue, por vísceras, por iconoclastia, esquartejamento, vampiros, monstros, padres, magia, enfim, tudo de atraente no universo de Castlevania. É uma pena, porém, colocar esses produtos lado a lado, os jogos e a série, e perceber que o esmero, a lapidação de uma obra parece ter estacionado em algum lugar remoto.
Pontue-se que a alta fidelidade à dita essência de um jogo (normalmente, a que pintam os seus fãs) não é garantia de um bom derivado. Para alegria de muitos, esse Castlevania bebe em suas origens e entrega um conjunto bem sóbrio e reconhecível. O cenário medieval mistura-se com os avanços industriais do castelo do Drácula estão presentes para pontuar uma identidade. Dito isso, é ótimo o começo do primeiro episódio. Na visita de Lisa ao castelo de Drácula, o roteiro encontra uma ótima solução para apresentar esse universo e dar a premissa da série. Nesse embate entre os benefícios da ciência e a deturpação da fé, há muito espaço para o sobrenatural se desenrolar com uma ponta de História. Quando a Inquisição joga Lisa na fogueira, acusada de bruxaria, e Drácula volta como homem, a estupidez da Igreja desencadeia a maldição que a jovem queria tanto evitar. Drácula solta seus exércitos de criaturas da noite um ano depois do ocorrido e a morte se alastra por vários feudos.
Feita essa introdução pelo primeiro episódio, seguiremos então Trevor Belmont, último filho da família de caçadores de monstros, e seu passeio pelas cidades à busca de um lastro de vida. Os grandes problemas começam a se mostrar na cena do bar, na longa exposição sobre a situação da família Belmont perante a Igreja na voz de um beberrão. Para tentar algum dinamismo, a câmera passeia pelos personagens presentes, insere uma ou outra interrupção alheia, mas, no final, a sensação é de um diálogo que queremos pular com o aperto de um botão. Ao menos, nesse caso, há o estilo jocoso e despreocupado do Belmont.
Seria tolerável se fosse essa uma situação ímpar. Mas, basta mais alguns minutos para perceber que essa rédea solta, de um roteiro sem edição, a la chiclete sem gosto, mascado por obrigação, não atende nem o lado que deseja substância nos diálogos, nem aquele que só pensa em ação. Até que, no geral, a série soube dosar a proporção entre os dois, priorizando o primeiro lado. Porém, é só volume, é só indesejável camada de gordura em uma carne sola de sapato.
Pouco depois da metade do percurso, ficam claro os volteios do roteiro, assim como a falta de fluidez das animações nas cenas de batalhas. A violência, então, ora é escancarada, como choque (um bebê na boca de um monstro, cabeças empaladas, órgãos à mostra, pilhas de corpos), ora fica em elipse, sem sabermos o porquê. De maneira similar, há pitadas de humor, na maioria deslocadas em diálogos pouco importantes e que beiram leves suspensões de descrença. Em meio à austeridade exigida pelo cenário preocupante e pela classificação indicativa alta, não caberia algo mais obscuro?
Contagiante, mais do que uma preguiça, esse desrespeito com o público – fã ou não, pouco importa –, se alastra como tentáculos escorregadios. Que prova precisa-se mais para enxergar que o modo de produção afeta a obra esteticamente? Que outra explicação poderia se dar para o lançamento de apenas quatro episódios de 25 minutos nos quais a produção aparece de forma tão desvalorizada? Esse Castlevania que nos foi apresentado não passa de um vampiro que dormiu pouco e está sem tesão algum para morder gargantas. Não maturou o suficiente. Tivesse, antes, ido de retro que apresentado essa quadrilha de paróquia – no lugar de um baile nos infernos.
Castlevania - 1ª Temporada (Castlevania - Season 1, EUA - 2017)
Direção: Sam Deats
Roteiro: Warren Ellis
Elenco (vozes originais): Richard Armitage, James Callis, Graham McTavish
Gênero: Animação adulta, Gótico, Terror, Aventura
Duração: 24 min/episódio.
Crítica | Transformers: O Último Cavaleiro
O processo de decisão para definir se um filme blockbuster terá ou não sequencia é simples: se ele fez bilheteria suficiente e houve recepção positiva, com certeza. Se houve baixa bilheteria mas alta popularidade, também. Quando o propósito é se tornar franquia, uma produção precisará fracassar fenomenalmente em bilheteria e em crítica. Exemplos recentes deste cenário seriam Caça-Fantasmas de 2016 e Quarteto Fantástico de 2015. A crítica em segundo lugar, porque mesmo com críticas negativas, um filme de bom retorno tem grandes chances de ganhar sequência, como Esquadrão Suicida que já possui sequência e spin-offs planejados.
E é nessa categoria que Transformers se encaixa já há muito tempo. Desde a fraquíssima continuação Transformers: A Vingança dos Derrotados que Michael Bay parece não acertar os ponteiros com a crítica, mas sempre foi capaz de arrebatar um número suficiente de fãs para garantir mais e mais sequências no que se tornou uma das maiores esbórnias do cinema moderno.
Expectativa e Michael Bay
Até o último lançamento, Transformers: A Era da Extinção, qualquer pessoa poderia alegar certo prazer culpado nos filmes. Histórias fracas, sem muito sentido ou brilhantismo, mas com ação interessante e divertida que nos permite suportar as agruras dos outros minutos de filme. Mas esta última entrada promete mudar a forma como seus fãs acompanham esta saga de forma negativa.
Ao fim de Transformers: A Era da Extinção, Optimus Prime se deslocava para encontrar seu criador e prometia chutar muitas bundas intergalácticas. Esperava-se, portanto, um filme mais centrado em Cybertron e com menos foco nos personagens humanos.
Ledo engano, caro leitor. Michael Bay prova mais uma vez que qualquer expectativa colocada nele é frustrada de forma dupla: desaponta por seguir caminhos diferentes e surpreende por conseguir inovar em maneiras de destruir a franquia e, consequentemente, frustrar os fãs.
Mais Robôs e Menos Carisma
Se existia qualquer reclamação com robôs barulhentos, chatos e, por vezes, com conotações sexuais irreverentes e totalmente fora de tom para um filme deste tipo, agora Bay os multiplica por dez. São diversos robôs pequenos ou matraqueadores, pulando de um lado para outro com voz digitalmente alterada que se assemelha mais com Alvin e os Esquilos versão robô do que com um robô propriamente dito. Existem inexplicáveis Mini-Dinobots e outros baixinhos já conhecidos (e odiados) da franquia. É como se Michael Bay descobrisse a fórmula para recriar Jar Jar Binks e a colocou em diversas roupagens diferentes pelo filme.
Falando em robôs, existem milhares deles. Mas não perca tempo em lembrar de nomes ou quaisquer peculiaridades para lhe ajudar com identificação. Será mais fácil saber todas as casas de Westeros e seus respectivos jargões do que lembrar de personagens tão esquecíveis que dão as caras nesta película. Todos os Transformers, com exceção de Optimus Prime e Bumblebee, são amontoados de bagunça, sujeira e peças que, não fossem por movimentos, nem reconheceríamos em meio à poluição visual que as cenas são. O CGI é igualmente fraco, dando a leve impressão que em meio ao processo de produção a equipe simplesmente parou de renderizar e decidiu jogar truco ou futebol.
E pensar que o menor problema do filme são os Transformers...
"Roteiro"
Com um dos roteiros mais previsíveis e furados da franquia até então, somos obrigados a ver novamente (pelo que deve ser a quarta vez seguida) Autobots e Decepticons atrás de um artefato misterioso que envolve alguma lenda antiga (a da vez é a de Merlin e o Rei Arthur) que reconstruirá Cybertron mas destruirá o planeta terra no processo. Parece similar? É porque já vimos esse mesmíssimo plot nas entradas anteriores da franquia. A única coisa que temos diferente dessa vez é a ausência de Optimus Prime por praticamente dois atos do filme para reaparecer “do mal” e voltar ao normal em poucos minutos para a grande batalha final.
De resto, temos tudo que podemos esperar de Michael Bay. Personagens são jogados pra cima e pra baixo em meio a explosões, câmera tremida, personagens exagerando atuação para efeito cômico (sem sucesso), incoerências de roteiro (Optimus leva anos para chegar a Cybertron e Cybertron leva três dias para chegar à Terra). E se você achava que a porção do filme que se passa durante a época do Rei Arthur estaria livre de explosões, você claramente não conhece todo o potencial de Michael Bay.
Elenco Apagado
O elenco não ajuda de forma alguma. Pobre Anthony Hopkins. Em meio ao filme, ao ver sua atuação perante um dos robôs fazendo piadas fora de hora, senti uma certa vergonha que deve ter emanado do ator ao ter que interagir em uma cena tão infantil e tosca. Sua atuação é sempre interessante e provavelmente um dos únicos destaques do filme, mas não adianta. É igual ver Neymar disputando a Copa do Mundo contra um time de Teletubbies; impossível de levar a sério. Mark Wahlberg e Laura Haddock devem ser os indicados ao Framboesa de Ouro como pior casal em tela. Com diálogos vergonhosos, zero química e uma persistente sensação de estranheza, cada vez que a câmera tira o foco de ambos é um alívio.
Outro destaque que é totalmente ofuscado por uma direção com ares de insanidade é a atuação da atriz mirim Isabela Moner. Com pouco tempo de tela e afetada por um roteiro disléxico, surpreende em seus momentos. Infelizmente, sua necessidade de afirmar a cada frase como ela é forte ou como não precisa de ninguém acaba prejudicando a empatia com o espectador e tornando sua personagem unidimensional.
O Pior da Franquia?
Poderia me estender ainda por páginas e páginas de problemas com Transformers: O Último Cavaleiro, mas o maior pecado deste filme, desta vez, foi a ação. Ao espectador que espera ver embates colossais entre os robôs, somente frustração lhe aguarda. Com cenas bagunçadas e com criatividade nula, somos açoitados com aviões do exército explodindo no ar, uma confusa briga de submarinos que finaliza com um jantar romântico, robôs pulando em câmera lenta exibindo toda sua baixa qualidade de computação gráfica e tiros, muitos tiros. Os principais embates de robôs são resolvidos em instantes, se piscar perdeu. E é por isso que eu considero a péssima qualidade de cenas de ação o maior pecado de Transformers 5. Roteiro, atuação, coesão, trilha sonora, fotografia, dentre outros itens, são coisas que qualquer espectador da franquia já sabe que será ruim ou esquecível. Mas quando até a ação do filme está fora dos trilhos e simplesmente insiste em jogar coisas na tela, Transformers se torna um exercício em autopunição e penitência.
Em minha sessão, havia uma criança sentada a poucas cadeiras de mim. Ela pulava, esperneava e falava durante o filme inteiro, com pequenas pausas entre a bagunça pois sua mãe a mandava ficar quieta. Eu percebi então que Transformers se tornou muito parecida com uma criança birrenta. Em troca da atenção do espectador, Michael Bay em O Último Cavaleiro dirige uma balbúrdia descoordenada, com muito barulho, tentativas de piada e batidas de pé. No entanto, diferente de uma criança, seu público não terá medo de abandonar este filme sozinho no cinema, enquanto a jogada franquia de Transformers continuará implorando por atenção até achar uma direção competente.
E a maior surpresa da sessão foi descobrir que a criança ao meu lado me irritava significativamente menos que o filme na tela.
Obs: Filme assistido em sessão aberta ao público nos EUA.
Transformers: O Último Cavaleiro (Transformers: The Last Knight, EUA – 2017)
Direção: Michael Bay
Roteiro: Akiva Goldsman, Art Marcum, Matt Holloway, Ken Nolan
Elenco: Mark Wahlberg, Josh Duhamel, Anthony Hopkins, Laura Haddock, Isabela Moner, Stanley Tucci, John Turturro, Jerrod Carmichael, Santiago Cabrera, Glenn Morshower e Liam Garrigan
Gênero: Ação
Duração: 149 minutos
https://www.youtube.com/watch?v=KQcGdSXvTuE
Crítica | El Topo
Como já puderam ver em nossa extensa cobertura sobre a figura de Alejandro Jodorowsky, é imediato afirmar que o chileno é artista extremamente polêmico. Algo bastante engraçado de ver acontecer exatamente a mesmíssima coisa nos bastidores do site é como o debate se assemelha assustadoramente ao da única aula que tive na faculdade sobre o infame diretor.
Acho que é algo que será eterno enquanto ao menos duas pessoas assistirem a essas obras: Jodorowsky é um cineasta ame ou odeie. Por não ter visto praticamente nada de sua filmografia, além de El Topo, já fico contentíssimo de poder expressar esse fascínio misterioso que tenho por esse western subvertido – ou ácido, como bem batizou Pauline Kael.
Durante a projeção rudimentar na aula que assistia ao filme, havia um magnetismo naquelas imagens bizarras que o cineasta construía com facilidade assustadora. Enquanto eu e uns poucos ficaram vidrados naquela experiência inédita na vida, diversos outros alunos se retiravam da sala para fazer coisas melhores. Agora, quase quatro anos depois dessa fatídica primeira exibição, estou aqui escrevendo sobre outro filme que nunca imaginei resenhar.
O Antigo Testamento do Deserto
Desde seu primeiro longa, Jodorowski deixa claro obsessão por dois temas que guiarão toda a sua filmografia: o cristianismo e o sexo. Com El Topo, o diretor, roteirista e ator, consegue trabalhar com mão mais elegantes essas simbologias ao traçar toda a jornada de El Topo, o protagonista sem nome, como uma grande analogia ao Antigo Testamento.
Para não deixar quaisquer dúvidas, ele divide a obra em 4 atos: o Nada, o Gênesis, os Profetas e o Apocalipse. Graças a esse fio condutor narrativo, o filme é mais acessível para espectadores de obras alinhadas à narrativa clássica – mesmo que El Topo seja uma obra surrealista que flerta com o cinema experimental que já ganhava força desde 1960 com Andy Warhol.
Tratando o diálogo como mero acessório para remover a ambiguidade de onde não deve existir, toda a narrativa de El Topo é conduzida com eficiência através da encenação acertada de Jodorowsky. Não é preciso esperar nem três minutos para sentir a mão de ferro do diretor para chamar toda a atenção da cena para seu trabalho.
Trabalhando o visual e as cores com olhar apurado, logo contrasta El Topo, uma figura maliciosa totalmente vestida de preto, com seu filho, Hijo, um pirralho pelado na pureza de sua inocência. Durante esse Nada, o diretor joga os personagens em um vilarejo completamente ensanguentado por causa de um violento massacre. Ali, em uma das raras ocasiões de som hiper-realista, Jodorowsky cria uma atmosfera infernal graças ao crocitar altíssimo de corvos que não estão enquadrados.
Nessa situação irritante, assim que El Topo descobre quem são os responsáveis pelo massacre, logo há o corte para apresentar o primeiro lado antagonista que o “herói” terá que enfrentar. Aqui, com alguns dos capangas nojentos do Coronel, Jodorowski começa a trabalhar imagens absurdas sobre sexualidade. Há sempre um jogo de amor e ódio, fascínio e repulsa, entregue na encenação – isso tange, obviamente, o feminino.
Vemos um homem beijando sapatos de salto alto para logo depois atirar em todos eles. Outro picota uma banana em pedacinhos e, por fim, o último forma a imagem de uma mulher com diversos grãos para depois deitar em cima da rocha, devorando as sementes. São imagens que parecem não ser pertinentes para a história, mas pelo caráter fragmentado da narrativa, tornam-se peças que delineiam identidade estética para cada segmento.
No primeiro duelo de El Topo contra os bandidos, novamente há outra experimentação de sons hiper-realistas. Porém, no nível de linguagem visual, Jodorowsky sai do padrão razoável de “contra estética” que seguia até então. Para potencializar a piada de inserir uma bexiga como cronometro para a resolução do impasse, o diretor usa o bê-á-bá da linguagem de faroestes americanos consagrados por John Wayne e John Ford.
A cutucada funciona, mas o que realmente se sobressai e continuam a surpreender até o final do filme, é a qualidade fantástica de efeitos visuais e maquiagem para potencializar a violência chocante que marca toda a obra. Depois, em sua intermitência perene, o diretor parte para agredir o cristianismo. Outros bandidos que subjugam uma nova vila, torturam padres franciscanos e abusam sexualmente de cada um deles. Jodorowsky mimetiza figurinos de santas para travestir os padres e depois fazê-los beijar os bandidos hediondos.
É óbvio que se trata de uma provocação, porém, sabiamente, assim como William Friedkin viria a fazer em O Exorcista, Jorowski não comete o erro de A Bruxa que é apenas criar imagens provocantes por birra pessoal ou entrave ideológico. El Topo, em si, é Deus personificado, um libertador e também um tirano.
Então novamente há outra repetição em o nada, mas consideravelmente mais complexa. Enquanto os bandidos tocam o terror no vilarejo, há toda uma sequência majestosa de grandes-angulares para apresentar o temível Coronel, um falso deus que subjuga tudo e a todos conforme for a sua vontade. Ele escraviza uma Mulher e oferece para seus capangas até a chegada de El Topo.
Nesse embate, finalmente Jodorowsky explícita em diálogo que El Topo é Deus, o Deus verdadeiro. No duelo, quando derrota o Coronel e alguns capangas, o diretor insere planos rápidos mostrando reações satisfeitas dos franciscanos que não condenam a violência depois da tortura que foram submetidos – o intuito é desconstruir a figura beata para inserir camadas humanas em homens santos.
Extermínio
Opto por analisar a simbologia de algumas cenas-chave de El Topo para não cair naquele maldito lugar comum de dizer apenas que “o filme tem diversas simbologias provocantes que parecem condenar a religiosidade enquanto trabalha com elementos sexuais profanos”. Isso é apenas descrever a loucura que é a imagem de Jodorowsky e tocar apenas a superfície. Em El Topo, o cineasta consegue se comunicar bem com qualquer espectador que esteja na mesma sintonia do filme. Ou seja, apesar de ser um arthouse surtado, esse western é uma obra razoavelmente acessível.
O Gênesis em El Topo é marcado pelo abandono de Hijo. O protagonista opta em levar a mulher (sempre vista como uma presença diabólica em toda a obra) e abandonar o filho. Nisso, há uma frase que marca todo o arco posterior: “Nunca confie em ninguém”. Nesse miolo, a obra ganha tons mais narrativos, estabelecendo um objetivo claro para a jornada do herói.
Em uma versão hardcore de Scott Pilgrim, Jodorowsky cria uma missão para o personagem conquistar o coração da amada: matar todos os quatro pistoleiros lendários que vivem no deserto. Matando todos, ele se tornaria o pistoleiro mais perigoso de todo aquele lugar. O interessante é que, ao escutar a exigência da Mujer, El Topo se descontrola e a estupra numa vã tentativa de demonstrar dominação – essa é uma das maiores polêmicas dessa obra, pois pouca gente sabe que Jodorowsky realmente estuprou Mara Lorenzio para realizar a cena. Algo que é obviamente desprezível, pois não somente o ato é hediondo, mas como a própria montagem e decupagem dessa sequência são um verdadeiro desastre por conta do exagero de cortes – claro, é possível interpretar o efeito truculento da montagem como um espelho do estupro, mas, sinceramente, isso é forçar a barra demais.
Quanto enfim a jornada começa, Jodorowksy adota clichês de narrativas kung fu – o western chinês. Os 4 mestres oferecem lições de moral para o herói, ensinando maior sentido para a vida. Esses mestres são os falsos profetas, todos mortos por El Topo com exceção de um que se suicida – única vez que o herói perde o confronto.
Enquanto todos os falsos profetas parecem ser puros de coração, atingindo um nível de esclarecimento espiritual praticamente impossível para El Topo, sempre trajando as vestes negras. Cada mestre também possui elementos visuais impactantes. O primeiro certamente é que marca mais, por ser cego e possuir dois capangas amputados que tentam viver em perfeição simbiótica. O segundo deixa a questão religiosa muito mais clara, com nuances ciganas e incestuosas com sua mãe.
O terceiro mestre é um tanto menos interessante no texto, mas a carga visual é marcante. O homem cria coelhos brancos. Com a chegada de El Topo para o confronto, todos os coelhos morrem subitamente em clara metáfora ao assassinato da inocência. Isso reforça a mensagem que o Deus verdadeiro, El Topo, se trata de um embusteiro. Para conquistar a amada, parte para o genocídio de culturas e, mesmo inferior, derrota todos os seus inimigos na base da trapaça e da mentira. É justamente por isso que há um descontrole de El Topo no quarto deus, por conta da vitória do suicídio.
O Apocalipse
Com o fim dessa segunda narrativa, Jodorowsky consegue criar um bom desenvolvimento para o silencioso protagonista. Sem precisar repetir a frase, lembramos de “Nunca dependa de ninguém.”. Ao longo da jornada, fica claro que El Topo depende cada vez mais da Mujer. Durante o trajeto, uma forasteira os acompanha. Assim como El Topo, ela traja vestes pretas. Novamente a mulher é retratada como um ser diabólico que desestabiliza a ordem masculina, pois a forasteira claramente deseja Mujer – Jodorowsky monta diversas sequências experimentais para deixar isso claro.
Quando El Topo finaliza sua missão, espera pela recompensa: o amor de Mujer. Porém, ele é caçado pela Forasteira, o diabo. Nessa cena, a mulher atira nas mãos e nos pés do protagonista, mimetizando as chagas de Cristo – novamente uma subversão da simbologia cristã. Derrotado, El Topo vê sua mulher ir embora com a Forasteira – rima visual com a encenação do abandono de Hijo, e morre. Aliás, aqui ocorre uma nova experimentação para personagens femininos. O diretor praticamente não usa som direto nos diálogos sendo quase todos constituídos por dublagem. No ultimato e única fala da Forasteira, Jodorowsky insere uma voz masculina para a mulher. O mesmo acontece durante o estupro do escravo, posteriormente.
Então temos o começo da terceira narrativa da obra que “adapta” outros arcos bíblicos como Sodoma e Gomorra e o Êxodo. El Topo é ressuscitado e encontra uma sociedade inteira de deformados, frutos do incesto, que vivem em uma caverna. Assim como a toupeira que dá nome ao personagem, El Topo recebe uma missão redentora: escavar um túnel para que os deformados possam chegar no vilarejo próximo para ali viver.
Acompanhado por uma anã para auxiliá-lo na jornada, El Topo parte para o vilarejo. Aqui, Jodorowsky aproveita para tecer as críticas indispensáveis ao capitalismo tão presentes em obras desse cunho. Assim como anteriormente, o diretor aposta pesado na caricatura esdrúxula tornando todos os habitantes do vilarejo em seres desprezíveis.
A ordem religiosa pagã é uma clara provocação ao Iluminati, todos são racistas e escravocratas, mas totalmente depravados e malditos no âmago que revela toda a hipocrisia sustentada pela “moral e bons costumes”. A obsessão pelo sexo se faz presente, mas torna todo o ato em algo tosco pelas figuras obesas e ridículas que coloca em tela. É uma saraivada de críticas à burguesia como vista por Jodorowsky: ricos idiotas, armamentistas, famintos, vaidosos e cheios de impulsos sexuais hipócritas recorrendo a diversos tipos de submissão como estupro e tortura.
Nada leve, certo? Mas a chegada de El Topo no inferno vivo dos falsos profetas, condena toda aquela sociedade – assim como em Sodoma e Gomorra. Porém, para conseguir construir o túnel, o protagonista e a anã precisam parasitar aquela sociedade a fim de obter os recursos necessários. Logo, eles se tornam os páreas responsáveis em entreter e limpar a cidade pecaminosa.
Entretanto, novamente no que tange a sexualidade feminina, Jodorowsky torna a anã em uma figura sagrada, o único retrato feminino que não é diabólico. Ela vira a verdadeira companheira amorosa do protagonista. Então, da deformidade, há a benevolência e o sagrado segundo o diretor.
Esse segmento se estende além da conta, pois Jodorowsky está mais interessado em criar imagens que visam ofender essa dita burguesia do que realmente avançar a história. Quando finalmente o trecho do Apocalipse começa, as coisas ficam mais interessantes por conta de reviravoltas totalmente inesperadas. A bom manejo de encenação e exagero de zooms deixam claro um ponto crucial para o desenvolvimento da redenção de El Topo.
Sem muita enrolação, Jodorowsky dá sua própria versão do Êxodo e emenda outra crítica à guerra, em especial a do Vietnã, para concluir a trajetória do herói silencioso. É importante salientar que, em momento algum, o diretor apoia a religião que ele adapta na incorporação divina de El Topo.
Esse “Deus” é um personagem detestável, egoísta, estuprador, trapaceiro e, mesmo quando acredita ajudar toda uma população, na verdade a guia para a morte violenta sem qualquer chance de sobrevivência. Para encerrar de vez sua enorme crítica ao Cristianismo, Jodorowsky anarquiza justamente uma das simbologias mais sagradas a essa religião: as abelhas e o mel.
No túmulo de El Topo, o diretor mostra diversas favas e poças de mel em volta. Entretanto, acima delas, não há a benção da luz, lealdade e ordem representada pelas abelhas, um emblema de Cristo. Ali, existem apenas moscas para representar o putrefato, o vilipendioso, o profano – ainda mais quando consideramos que as moscas eram festejadas pelos egípcios, a civilização mais condenada por Deus devido ao falso profetismo.
A Toupeira
Interpretar as simbologias ditas surrealistas de Jodorowsky é um exercício divertido. El Topo em si mesmo é uma obra bastante divertida. Afastando totalmente minhas crenças pessoais, é muito interessante notar esse ponto de vista realmente único de Jodorowsky sobre pontos importantíssimos do Antigo Testamento. Seu completo desprezo é muito mais refinado nesse filme graças a criação de imagens fortes e eficientes para transmitir a mensagem desejada.
Há sim certa ambiguidade e muita gente pode tirar diferentes significados das viagens surrealistas psicodélicas do infame autor. Mas para mim, El Topo é tudo isso que acabei de descrever. E justamente por ser uma alegoria tão bem pensada, conseguindo até mesmo valorizar a trajetória de seus personagens principais e ter caráter totalmente episódico, se sustenta perfeitamente como um ótimo filme de ficção.
É muito arriscado afirmar isso sem ter visto nenhum de seus outros filmes, mas assim como ele, completamente desprovido de medo para afirmar suas ideias na obra, não temo em afirmar que El Topo é sua obra-prima. É uma daquelas viagens únicas que somente o cinema surrealista pode proporcionar. Só é preciso um estômago forte e partir de cabeça aberta.
El Topo (El Topo, México – 1970)
Direção e roteiro: Alejandro Jodorowsky
Elenco: Alejandro Jodorowsky, Brontis Jodorowsky, Mara Lorenzio, David Silve, Paula Romo, Robert John
Gênero: Western Surrealista
Duração: 125 min
Crítica | Homem-Aranha: De Volta ao Lar (Com Spoilers)
Clique aqui apra ler nosso texto SEM SPOILERS
Não é preciso pensar duas vezes. Se o Batman ergueu a casa da DC, o Homem-Aranha é igualmente responsável em sustentar a Marvel por anos. Apesar da Casa das Ideias ter um rol invejoso de heróis populares, as maiores histórias que mudaram toda uma indústria concentram-se nas decisões audaciosas que as diferentes editorias escolheram para contar a eterna história de felicidades e desgraças da vida de Peter Parker.
Vencedor de praticamente todas as decisões polêmicas da Marvel, uma delas certamente é a tragicômica venda dos direitos cinematográficos do personagem para a Sony nos anos 1990. Com a Marvel muito próxima de chegar à falência por conta das péssimas vendas dos quadrinhos por conta de fases horrorosas que assombraram seus personagens.
Para salvar a empresa, a Marvel vendeu o Homem-Aranha para o Sony e os X-Men e Quarteto Fantástico para a Fox (Demolidor também tinha sido vendido, mas como a Fox desistiu do personagem, os direitos voltaram para a agora Marvel-Disney). Uma das poucas cláusulas reveladas ao público era a necessidade de filmes sobre essas marcas saírem no mínimo uma vez a cada quatro anos. Se não acontecesse nenhuma obra nesse tempo, os direitos eram revertidos para a Marvel.
Obviamente, isso seria um doce sonho para a editora que, ainda mais agora comprada pela Disney, está longe de falir. Porém essa realidade deverá continuar por um bom tempo, mas saídas nebulosas foram encontradas para resolver o maior problema do MCU por tempos: como enfiar o Homem-Aranha dentro do universo compartilhado da Marvel?
A resposta é complexa demais, cheia de burocracias com dois estúdios se estapeando para receber mais vinténs que o outro sobre essa propriedade intelectual. Em 2016, finalmente os magnatas acertaram suas contas para “fazer a vontade dos fãs”: Homem-Aranha finalmente voltaria ao lar. Primeiro com uma rápida degustação em sua participação marcante no mediano Capitão América: Guerra Civil. Agora, depois de uma sucinta espera de um ano, finalmente temos Homem-Aranha em toda a sua glória. Ou algo que chegue perto disso.
De Volta ao Lar?
Antes que você pergunte (e também obviamente já sabe), a narrativa escrita por seis pessoas nada tem a ver com o famoso e elogiado arco de Straczinski nos quadrinhos do Teioso. De Volta ao Lar é um filme que tenta ser aqueles clássicos coming of age dos anos 1980 como O Clube dos Cinco, de John Hughes.
Na verdade, De Volta ao Lar pouco tem a ver com o próprio mythos do Homem-Aranha dos quadrinhos. Antes que você esmurre o computador ou xingue minhas passadas gerações, deixe-me apresentar fatos que, goste ou não, são firmados pelo roteiro do filme (escrito por inacreditáveis seis pessoas – tá difícil pensar em uma história pro Teioso, hein?).
Antes de começar, já deixo claro que as coisas mudaram bastante desde 2002 quando o Homem-Aranha surgia nas telonas pela primeira vez. As mudanças e o cinismo de De Volta ao Lar acompanham o feeling inteiro de uma nova geração que é o público-alvo da obra. Logo, há espelhamentos desse novo “clichêzão” do Ensino Médio americano.
Dessa vez, Peter Parker não é o nerd tosco ignorado ou odiado por 90% dos habitantes do colégio. Ele é um rapaz levemente descolado que consegue sair por cima de quase todas as traquinagens bully que Flash Thompson organiza para atacar ele (o casting de Tony Revolori para viver o valentão é bastante flácido). Possui amigos, não precisa se preocupar com emprego, não se culpa pela morte do tio Bem (por enquanto), participa de diversas atividades na escola.
O nerd recluso ficou para trás e a vida como Peter Parker não é mais tão ruim assim. Apesar de jogar fora toda a simbologia poderosa de libertação que é o ato de Peter tornar-se Homem-Aranha e, portanto, embriagar-se com o poder e boas ações, os roteiristas de De Volta ao Lar conseguem se salvar do desastre com boas desculpas psicológicas.
Isso é acertadamente afirmado pelo início bem-humorado e nada convencional com o minidocumentário direto que Peter Parker faz sobre sua viagem à Berlim para ser o trunfo máximo de Tony Stark na batalha do aeroporto. O efeito de lutar ao lado dos Vingadores “oficiais” deixa o personagem completamente alucinado e motiva sua jornada para se tornar um verdadeiro vingador.
O problema é o choque de realidade provocado em seu homecoming. No retorno à rotina banal, o uniforme high tech dado por Stark também vira um vício. Não pela liberdade, mas sim pelo sonho em ser efetivado como um verdadeiro Vingador. Muda-se a natureza do dilema de Peter Parker para algo bem menos complexo, mas condizente com o espírito teen do filme, afinal é um Aranha com apenas 15 anos de idade.
É nesse mérito que o roteiro de De Volta ao Lar se sobressai: o desenvolvimento pleno do protagonista (mesmo que seja bem básico). O MCU possui a irritante constante de simplesmente esquecer o desenvolvimento do protagonista no meio do caminho para injetar doses cavalares de setpieces de ação esquecíveis – isso tem mudado com a Fase 3, glória aos céus.
Dentre todos esses filmes, Homem-Aranha pode se orgulhar de ter o melhor desenvolvimento de personagem desde Homem de Ferro em 2008 – não incluo Guardiões da Galáxia por se tratar de uma jornada de grupo, distinta de uma jornada do herói clássica. Ao longo das duas horas, vemos conflitos muito pertinentes ao universo do Teioso.
Os roteiristas e Jon Watts conseguem conferir a atmosfera de vida dupla necessária para qualquer obra que ouse adaptar o herói mais famoso da Marvel. Peter precisa salvar o bairro de perigos comuns e investigar a trupe do Abutre enquanto concilia seus estudos, vida social e torneios de interescolares.
Em crescente, a vida de vigilante atropela decisões importantes, momentos de virada para Peter Parker, mas totalmente irrelevantes para o Homem-Aranha. Em uma fase conturbada de adolescência, na definição do próprio Ego do personagem, o encaixe da busca pela identidade do protagonista é mais que acertado e confere peso nas decisões que favorecem o vigilante que Peter sempre toma.
Logo, a empatia com o imaturo personagem é garantida rapidamente, afinal Peter Parker é adorável. É um pirralho excitado com tudo, histérico, cínico e humorista nato, tirando sempre a melhor metade da laranja de todas as situações. Nesse sentido, sim, o filme é muito fiel ao espírito mais famoso do personagem tão bem retratado por animações dos anos 1990 e de 2012.
Vida Escolar
Por causa dessa proposta que guiará toda a fase Holland de Peter Parker, o espectador é convidado a observar muitas, mas muitas cenas da vida escolar do personagem. A grande vantagem é esse núcleo inclui o obscuro personagem das HQs Ned Leeds (completamente reformulado, obviamente). Pelo timing fantástico de Jacob Batalon, o humor que transborda nessas sequências contagia. São piadas que funcionam com algumas potencializadas pela montagem inspirada – como a que acompanha Ned infernizando Peter em um dia de escola após descobrir que ele é o Homem-Aranha.
A amizade inocente dos dois guia o filme inteiro, porém, apesar de ser um excelente alívio cômico, Ned não é nada mais que isso. Quando o jogo tenta ser maior, o pior lado do MCU se faz presente em De Volta ao Lar: a falta de urgência, relevância. O perigo parece nunca afetar pessoalmente Peter Parker e a reviravolta principal da obra não é lá de grande gravidade para a integridade familiar do herói justamente pela humanização do vilão, mas seguiremos sobre isso mais adiante.
Aqui, o ponto é Ned. O personagem rapidamente vira de uma nota só, mesmo divertindo. Nunca as ações egoístas/altruístas de Peter decepcionam o personagem. Ele simplesmente aceita o que der e vier. Isso, novamente, não confere peso às ações de Peter. Porém, esse papel é cumprido por Tony Stark como visto nos trailers. Entretanto, seria mais interessante injetar camadas um tanto mais complexa em Ned já que é um cara cheio de potencial. Por enquanto, a amizade de Ash e Pikachu no 1º episódio de Pokémon consegue ter mais relevância do que a de Ned e Peter Parker em um filme milionário.
Se Ned ao menos desperta empatia, o resto do elenco escolar é uma tragédia pela completa irrelevância. Seja com Liz Allen, o primeiro foco amoroso consideravelmente mal trabalhado pelos roteiristas, ou com a esquisitíssima Michelle Jones, uma pseudo Claire Standish de O Clube dos Cinco. Com um discurso e performances irritantes, a personagem de Zendaya podia ser trucidada pelo Abutre que eu não daria a mínima. O mesmo acontece Laura Harrier e sua química tenebrosa com Tom Holland – a jovem sempre mantém uma expressão tanto faz em todas as cenas de tensão romântica com o ator.
O problema é que Liz Allen também não pode ser afetada pelo Abutre. Mas dessa vez a desculpa é melhor: ela é a filha do vilão.
A Reviravolta de Um Milhão de Dólares
Não demorou quase nada para enfim encontrarmos outro bom vilão no MCU após Guardiões Vol. 2. O Adrian Toomes de Michael Keaton é excelente. Muito mais pelo desempenho fantástico do ator do que pelo tratamento do roteiro. A vantagem é que o texto, ao menos, oferece motivação consistente para o vilão, o situando em uma função que faz jus ao nome da ave carniceira, além de mostrar melhor como a Batalha de Nova Iorque de Os Vingadores afetou profundamente a vida dos cidadãos comuns.
A Marvel finalmente aprendeu a utilizar, pela segunda vez, a introdução do filme para fincar com firmeza uma base narrativa para o vilão – algo que eu já tinha reclamado bastante com o medíocre Doutor Estranho. Mesmo que não seja desenvolvido por um tempo enorme, a presença de Michael Keaton a cada nova cena hipnotiza. Aprendemos a temer o vilão, mas seus atos de verdadeira maldade são perdoados com piadas furrecas a la MCU.
O que importa é o motivo do vilão virar traficante de armas modificadas com artefatos Krill: a sobrevivência de sua família. Por isso, quando Peter descobre que seu primeiro amor é justamente a filha do homem que ele tenta colocar na cadeia, há sim um impacto eficiente.
Nisso, Jon Watts busca a eficiência de Sam Raimi na primeira trilogia e recria a fatídica cena de Ação de Graças do clássico. Aqui, Toomes leva Parker e Liz até o baile homecoming. Durante todo o trajeto, pela completa transparência do pânico de Peter, o vilão saca rapidamente que o menino é o mesmo Homem-Aranha que vem atrapalhando seus negócios. Logo, há uma ótima jogada de decupagem e iluminação quando Toomes oferece um monólogo poderoso. No nível pífio de simbologia visual que esses filmes Marvel conseguem construir, a luz vermelha do semáforo, encobrindo sutilmente o rosto do Abutre, é ótima para pontuar a raiva lancinante que o personagem sente, mas que a mantém contida para não assustar sua filha.
O mais interessante é jogo mafioso que Toomes oferece. Ele dá a chance de Peter escolher o que quer: a morte certa ou oferecer uma noite agradável para Liz. Obviamente que o herói abandona a moça no fatídico baile, a decepcionando pela terceira vez (finalmente, Harrier consegue pontuar bem sua emoção frustrada), partindo para o confronto final contra o antagonista.
Essa questão da escolha é ótima para ilustrar a imoralidade de Toomes até mesmo diante com sua família. A busca pelo lucro é tamanha que usa a própria filha como mercadoria para subornar o herói. Essa é também, estranhamente, outra vez que o vilão ganha em um filme de super-herói. A falsa escolha oferecida a Peter o torna sempre refém do Abutre. Ou se torna conivente com o crime, ou triunfa e arruína completamente a vida da menina que ele ama – é óbvio que a morte não é uma opção real para os roteiristas.
Aliás, tamanho medo dessa consequência que é justamente por isso que o clímax é completamente flácido tanto narrativamente quanto na direção. O novato Jon Watts já tinha mostrado imaginação frágil para as setpieces de ação e com o clímax não é diferente. Errando feio na dosagem de planos e montagem, Watts cria uma das sequências mais incompreensíveis que o gênero já viu – também não ajuda em nada o fato do avião camuflado virar uma pseudo Bifrost arco-íris no meio da treta.
O que incomoda é a ausência que fizeram os filmes Raimi serem tão grandes: perigo e uso do cenário durante a batalha. O Aranha sempre foi um herói de tirar vantagens dos elementos mais improváveis e, aqui, isso praticamente inexiste. Igualmente, pelo fato de nem o avião ter pilotos, não há nada em jogo ali. O heroísmo de Parker consiste apenas em derrubar o veículo em uma praia deserta e salvar Toomes dos escombros. Mais sem graça, impossível – só relembre de todos os clímaces de cada um dos filmes Raimi e lamente.
A Eficiência das Boas Ideias
Felizmente, De Volta ao Lar pode se vangloriar por trazer muitas novidades para uma franquia cinematográfica que estava bastante carente de ideias inéditas. No caso, temos a assistente pessoal de Parker: Karen. A simpática I.A. de seu uniforme é o segundo alívio cômico (é bizarro escrever isso já que o filme praticamente não tem fatores dramáticos de peso) da narrativa.
Enquanto Ned representa o humor do cotidiano trivial, Karen é o oposto. Apresenta as quase infinitas possibilidades do traje do Aranha, além de figurar o melhor diálogo de toda a obra no qual Parker faz questões existenciais enquanto tenta matar o tempo dentro de um armazém tecnológico. Aqui, Jon Watts tem uma jogada sutil muito inteligente: manter Parker vestido como Homem-Aranha mesmo sem ter a necessidade disso.
Fica claro que, mesmo abrandando o teor dramático da esfera pessoal do personagem, Peter deseja apenas ser o Homem-Aranha flertando com um transtorno de identidade. Essa jogada é valiosíssima e lamento pelos roteiristas nunca seguirem nisso com firmeza. O evento máximo que força Peter a aceitar sua identidade é quando Stark retira o uniforme que fez para o menino. A conclusão desse “ser ou não ser” que guia Peter acontece no único momento que o personagem passa por perigo real.
Após ficar preso no entulho causado pela destruição do covil do Abutre, Peter teme morrer esmagado. A situação toda espelha a clássica HQ E Se esse for o Meu Destino. Entre pedidos de socorro e muito choro, Jon Watts (novamente em insight brilhante) coloca outro plano carregado por simbologia.
Sem forças, Peter olha para o chão onde sua máscara do traje caseiro parcialmente afundada em uma poça d’água. Quando repara que o reflexo d seu rosto preenche a metade oculta da máscara, a catarse ocorre com eficiência. Peter Parker é o Homem-Aranha. Os dois são um.
Outro fato que Jon Watts consegue lidar com eficiência e a relação de Peter com seu bairro quando trabalha como vigilante mascarado. Já nessa primeira sequência, o espectador compreende que o herói mais cria problemas do que os resolve. Mas as trapalhadas básicas evoluem para outras mais perigosas (apesar de nunca haver risco real, além da cena do Obelisco). Em maioria, Peter está sempre correndo atrás de resolver seus próprios erros.
Os roteiristas levam a máxima “você é o pior inimigo de si mesmo” bastante a sério, ainda que amenizada pelo humor perene. É um discurso válido que serve perfeitamente como jornada de amadurecimento do personagem como herói e também na esfera pessoal. Em vez de Peter destruir relações interpessoais com ações equivocadas, cria perigos que colocam a vida de diversos cidadãos em risco. Genial.
Enquanto mostra ideias bacanas como Peter ter que correr para atravessar um campo de golfe por conta da inexistência de objetos para fixar suas teias, outras novidades pesam negativamente. Uma das principais é a nova May. A personagem praticamente não tem peso algum nas cenas em que aparece, além de nunca oferecer insights valiosos para Peter em suas decisões éticas e morais praticamente ignorando a função primária da existência da tia May. Em suma, parece que a quarentona é tão imatura quanto seu sobrinho.
Outro ponto completamente fora da curva que afronta qualquer lógica é inserção de uma sequência inteira de merchandising da Audi na qual o Homem-Aranha, mesmo com fluído de teia, simplesmente dirige um carro até o destino onde está o vilão.
Sorte ou Azar de Principiante?
O diretor Jon Watts não é lá um nome muito quente da indústria. É outra figurinha do cenário indie jogado em uma produção importantíssima de milhões de dólares. Com uma voz tão inexpressiva, é de ficar surpreso que De Volta ao Lar não se trata um manifesto assinado somente pela vontade de seus produtores.
Como bem disse acima, Watts consegue criar simbologias visuais pertinentes, apesar de trazer as piores sequências de ação que a franquia viu desde O Espetacular Homem-Aranha. Seja pela falta de inspiração ou do manejo ineficiente da montagem, a ação aqui dificilmente empolga pelo fato de recorrer aos efeitos picotados nada realistas e confusos que parecem amaldiçoar essas produções contemporâneas.
Apesar de flertar tanto com os filminhos coming of age dos anos 1980, Watts, infelizmente, não oferece coração para esse Homem-Aranha. Falta certa alma, um feeling que talvez só surja com a experiência de uma longa carreira como Sam Raimi já possuía em 2002. O que Watts tem de positivo é seu olhar sobre as pequenas coisas, em criar um mundo orgânico para as cenas do colégio, focando em diversos estudantes, mostrando Peter tentando conciliar as duas vidas contrastantes, as diferentes tribos e as relações daquele microcosmo com as ações dos diferentes heróis e vilões que interferem em suas vidas.
Já para o núcleo antagonista, parece que há uma preguiça completa. Desde a apresentação estupidamente broxante do Abutre com seu traje pela 1ª vez até tudo o que envolve os péssimos Shockers, capangas de Toomes. Logo, há diversos altos e baixos no desempenho de Watts em seu primeiro grande filme. s primeiras perseguições do Aranha ao Abutre, todas as cenas envolvendo May e outras gags lacradoras que envolvem a personagem de Zendaya.
Mas há elogios para Watts na condução de Tom Holland e Robert Downey Jr. Mesmo com pouco tempo em tela, Downey Jr. domina as cenas pelo desempenho carismático e ótimo trabalho em conjunto com Tom Holland que merece um parágrafo inteiro para si só.
Uma das coisas que mais priorizo na atuação de um Homem-Aranha, são as poses marca-registrada do super-herói. Felizmente, Holland consegue incorporar a iconografia importantíssima do Teioso com perfeição. É uma linguagem corporal eficiente e que também contrasta com os gestos mais contidos do ator quando encarna o encabulado Peter Parker quando em público. Agora, se o personagem está em casa ou com Ned, as coisas mudam completamente. Holland cria uma faceta totalmente histérica e excitada para o Aranha imaturo.
O mais fascinante é a pontuação da tristeza do herói, algo que sempre precisa acompanhar a profunda melancolia que Parker carrega em seu coração. Em momentos-chave, por decepcionar figuras paternas ou a si mesmo, Holland chora. E é um choro tão genuíno, tão frustrado, pueril e inocente que, literalmente, dá vontade de entrar na tela e consolar o nosso amigão da vizinhança, dizer que tudo está bem e para acreditar em si mesmo.
Justamente por isso, não é a toa que dizem que Holland traz a performance mais poderosa de Peter Parker/Homem-Aranha até agora. O que o pessoal falha em identificar é a razão dessa impressão marcar tanto. Não é preciso enfeitar as palavras aqui: o ator é o melhor apenas por conseguir trazer o retrato mais humano do personagem que já vimos. Por favor, que não desperdicem o talento desse jovem britânico em não retratar a hora mais triste da vida do Aracnídeo: a morte do tio Ben.
Underdog
Depois de um hiato de três anos que parecem bem mais do que isso, vemos o nosso estimado amigo retornar em um bom filme aos cinemas. De Volta ao Lar traz vigor e muitas novidades para uma história que muita gente já acreditava ter se esgotado na sétima arte, ainda que carregue características que insistem assombrar quase todos os longas do MCU.
Jogando com segurança e fixado pelo carisma contagiante de seu humor, é difícil se frustrar com entretenimento simples que esse filme oferece. Porém, é inegável que falta refinamento, brilhantismo que tornam bons filmes em obras inesquecíveis. Ter assistido recentemente a trilogia pioneira de Sam Raimi certamente contribuiu para impregnar minha mente com um questionamento que não deveria existir. Por que, gradativamente, os blockbusters vêm ficando cada vez mais simples e irrelevantes em longo termo?
Já é hora dos estúdios se tocarem que seus filmes não são obras fugazes como virais de internet que explodem por poucas semanas. Mesmo sendo parte de outra forma de ver mercado e conteúdo, esses filmes ainda buscam o estado de arte. E, sinceramente, o público merece um espetáculo bem mais completo do que apenas o visual.
Quem sabe a indústria cinematográfica novamente olhe para o retrovisor e veja sua história recente. Que enfim reconheça o fator que tornava aquelas maravilhas dos anos 2000 em algo bem mais do que apenas mero entretenimento. Que, assim como Peter Parker, regredindo em suas pretensões, possa amadurecer novamente entregando novos filmes que resistam tão bem ao tempo.
Agora, sobre De Volta ao Lar, somente o tempo dirá do que ele verdadeiramente se trata: mais um viral da Marvel Studios ou um filme realmente completo. Por enquanto, eu só afirmo que se trata de um bom divertimento.
Homem-Aranha: De Volta ao Lar (Spider-Man: Homecoming, EUA – 2017)
Direção: Jon Watts
Roteiro: Jonathan Goldstein, John Francis Daley, Jon Watts, Christopher Ford, Chris McKenna e Erik Sommers
Elenco: Tom Holland, Michael Keaton, Robert Downey Jr, Marisa Tomei, Jon Favreau, Laura Harrier, Zendaya, Jacob Batalon, Donald Glover, Angourie Rice, Tony Revolori, Martin Starr, Bokeem Woodbine, Logan Marshall-Green, Michael Chernus, Michael Mando, Hannibal Buress, Kenneth Choi
Gênero: Aventura
Duração: 133 min
https://www.youtube.com/watch?v=U0D3AOldjMU
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Crítica | Poesia Sem Fim
Filmografias avançam de maneiras diferentes de acordo com as intenções do artista. No caso do chileno Alejandro Jodorowsky, ela parece seguir uma direção bem definida em suas crenças, idiossincrasias, sempre passeando por um universo místico que se confunde com o poético. Isto é, nem todo esoterismo é tão revelador, nem ensinamentos religiosos são sinônimos de transcendência. No mundo da arte, cabe a cada um saber levar sua identidade, seu discurso, e dele extrair uma substância à sua moda. Jodorowsky sempre fez tudo ao seu modelo, sendo inclusive criticado em cada seara que se metia – poesia, quadrinhos, literatura e, especialmente, cinema.
Depois de A Dança da Realidade, primeira parte de seu projeto auto cinebiográfico, o diretor conseguiu completar esta sequência com a ajuda dos seus fãs num projeto de financiamento coletivo no Kickstarter. Seu problema com dinheiro foi sempre muito grande, como denota na introdução do filme anterior. Agora, chega às telonas com Poesia Sem Fim, que continua precisamente onde Dança parou. Alejandro passa de um jovem adulto para um adulto jovial, sendo os primeiros minutos do filme dedicados a marcar essa passagem de um ser reprimido para um poeta libertário.
Começamos, então, com um problema estrutural. Poesia começa com um impacto. Mas não um impacto metafórico, sintetizador, como costumam fazer os cineastas nos primeiros planos de seus filmes. Porque, afinal, o filme é um segundo volume feita aos moldes de mais um capítulo do primeiro. Não só pelo pique e a boa memória que exige logo de cara, mas pelo projeto como um todo. É um desconforto que lembra (peço perdão por exemplo tão diametralmente oposto) o começo de O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos, quando a cena inicial, da batalha com Smaug, exigia um estado de espírito somente obtido, com muita boa vontade, com o final do filme anterior.
Dito isso, Jodorowsky segue como pode nesse começo, mas logo embarcamos em seus arroubos poéticos, ora pesados, ora sutis, mas sempre muito reconhecíveis. Parecem, porém, mais irregulares que as do longa anterior. Depois de uma hilariante cena em que, enfim, o pequeno Alejandro (Jeremias Herskovits) literalmente corta sua árvore genealógica, de um plano para outro, ele passa para o corpo de Adan Jodorowsky, filho do diretor. Agora, fora da casa da família, refugia-se numa morada para artistas dos mais diversos tipos e prova para si mesmo e para o pai incutido em sua consciência que não é homossexual. São dois parágrafos muito importantes nessa sua virada.
Nesse novo cenário, encontrará artistas, como seu ídolo Nicanor Parra (Felipe Ríos), encontrará musas, como a poetisa Stella Díaz Varín (Pamela Flores, que também interpreta Sara, sua mãe) e fará amigos como o poeta Enrique Lihn (Leandro Taub). Alegrias, festas, manifestações, teatro de marionetes, poesia, sexo, rebeldias, desilusões amorosas, amizades conturbadas, dúvidas internas, enfim, anos de formação. Tudo tratado com a mesma misé en scene de A Dança da Realidade: um estilo teatral, com cenários sobrepostos aos elementos atuais da cidade, o uso de homens de roupa preta fazendo aparecer e desaparecer objetos de cena, criando interessantes transições.
E desse Jodorowsky mais novo, há muito para se duvidar. Mas, felizmente, o Jodorowsky velho, o que relembra sua vida e torna esse filme possível, não entra em cena como um moralista, nem pretende esconder seu ego inflado à época. E fica muito claro que o filme não é uma autocongratulação, quando no final o Jodorowsky de 88 anos entra em cena e monta uma reconciliação que ele tanto deseja ter sido real. E o filme é primorosamente encerrado com uma cena tocada de trás para frente, de maneira quase imperceptível.
Poesia Sem Fim é a dança que se repete, no sentido que a redundância adquire nos bons cineastas. Sincera como transformação poética da memória, a obra consegue dar continuidade linear ao projeto iniciado com A Dança da Realidade. O que é muito bom, porque, até o momento, esse projeto traz uma coesão que parece faltar à sensibilidade de seus outros filmes. Ao mesmo tempo, Poesia Sem fim parece ser também um aviso de que o diretor pretende pintar, até o final de sua vida terrena, os cinco painéis do seu projeto autobiográfico com as mesmas tintas. Vejamos para onde vai o barco da dubiedade jodorowskiana. Por enquanto, nessa rota calculada, navega bem.
Poesia Sem Fim (Poesía sin fin, Chile – 2016)
Direção: Alejandro Jodorowsky
Roteiro: Alejandro Jodorowsky
Elenco: Alejandro Jodorowsky, Jeremias Herskovits, Adan Jodorowsky Brontis Jodorowsky, Pamela Flores, Leandro Taub e Felipe Ríos
Gênero: Biografia, Fantasia
Duração: 128 min
https://www.youtube.com/watch?v=Sqz54sT9zcc
Crítica | Um Instante de Amor
Que Marion Cotillard é atualmente uma das grandes atrizes do cinema francês isso não há dúvida. Sua carreira parece ter dado um salto de qualidade depois de ter recebido o Oscar de melhor atriz por seu papel em Piaf - Um Hino ao Amor. Desde então participou de todo tipo de produção, do ótimo Ferrugem e Osso até o fraco Assassin's Creed. É uma atriz completa que mostra a cada filme estar melhor, mesmo quando o personagem não ajuda ela se sobressai. Em um Instante de Amor - produção que estreou ano passado na França e só agora desembarca por aqui - podemos ter a chance mais uma vez de prestigiar seu talento.
Ela interpreta Gabrielle, uma jovem mulher infeliz e que passa os dias amargurada tentando encontrar o verdadeiro amor. Vive seus dias na fazenda, isolada e de mau humor até que sua mãe a obriga a se casar com um dos funcionários que trabalham ali, trata-se de José (Àlex Brendemühl) homem pacato, simples e de poucas palavras. Ela obviamente diz não a ele e promete nunca o amar. Sua mãe dá a ela um ultimato, ou ela se casa ou será internada em uma clínica psiquiátrica. Casamento feito, ela se muda para outra cidade, mas algo muda no meio da história e Gabrielle é internada em uma clínica médica para se tratar de pedras nos rins. Lá se apaixona por André Sauvage (Louis Garrel) um militar também em tratamento e pelo qual ela irá se apaixonar.
Baseado no romance da escritora Milena Angus e com roteiro e direção de Nicole Garcia (Um Belo Domingo) filme é um exemplo de como fazer uma história de amor sem usar vícios de linguagem ou clichês baratos que estamos acostumados a ver por aí. A começar por mostrar de forma realista Gabrielle como uma mulher infeliz, que é obrigada a se casar com alguém que nunca amou ou teve alguma afinidade. Essa cena do casamento é mostrada de forma simples e dura, ela não está feliz, mas casa por falta de escolha, pois ficar sozinha não é permitido.
Gabrielle sofre de depressão, só é possível perceber isso com a postura dela ao se relacionar com outras pessoas e ao mostrar o completo isolamento dela, chega a ficar três dias trancada sem sair do quarto, essa melancolia muda ao conhecer o já citado militar André Sauvage. Ao fazer tratamento em um hospital na Suíça especializado no tipo de sua doença, ela começa a se relacionar com outras pessoas, mas isso não muda seu isolamento. Só há uma mudança de postura quando encontra o que ela definiu como o amor da sua vida.
Marion interpreta de forma magistral sua personagem, talvez uma das melhores de sua carreira. É um papel chato, tão chato que incomoda em alguns momentos. Outro que se destaca pela atuação é Louis Garrel, aparece pouco, mas todas vezes que está em cena não faz feio e sua presença se nivela com a de Marion. Garrel, por sinal, é um ator que poderia fazer mais participações em filmes consagrados pela crítica e pelo público. É um ótimo ator e que tem muito ainda a mostrar.
Entre os critérios técnicos há de se destacar as cores que também tem sua importância, apresentam cada momento da vida dela e começa clara para ficar mais escura, isso é apresentado pelo seu figurino, cenário e pela luz da boa fotografia que não atrapalha em nenhum momento, pelo contrário, engrandece suas características.
Mesmo sendo boa ela tem algumas falhas, como por exemplo, em alguns momentos a história soa um pouco arrastada e sonolenta, alguns elementos novos são inseridos para dar uma girada na trama, mas continua praticamente a mesma coisa. O longa se segura inteiramente em Marion e na sua atuação, e isso talvez seja uma falha, o personagem de Louis Garrel era bom e poderia ser melhor desenvolvido, assim como o de Àlex Brendemühl no papel de José. Algumas cenas são bastante desnecessárias e poderiam ter sido retiradas na pós-produção, isso ajudaria a dar maior agilidade ao filme. Ponto forte dele são os detalhes em que cada gesto é apresentado, tudo que é mostrado ali é por alguma razão, até mesmo as cenas de nudez.
Escrito por Gabriel Danius.
Um Instante de Amor (Mal de Pierres, França – 2016)
Direção: Nicole Garcia
Roteiro: Natalie Carter, Jacques Fieschi, Nicole Garcia
Elenco: Marion Cotillard, Louis Garrel, Alex Brendemühl, Brigitte Roüan, Victoire Du Bois, Aloïse Sauvage
Gênero: Drama, Romance
Duração 120 minutos
https://www.youtube.com/watch?v=xO1eqiI8GSs
Crítica | Soundtrack
Quem ouve falar no nome Soundtrack não tem muita ideia do que irá encontrar pela frente, ainda mais se tratando de um filme nacional. Quem for ao cinema terá uma grata surpresa ao assistir a obra que tem como protagonista o ator brasileiro Selton Mello, além de contar no elenco com Seu Jorge e Ralph Ineson do ótimo A Bruxa.
Selton Mello é um ator de grande talento, já mostrara sua habilidade nas produções nacionais e há alguns anos dirigiu O Palhaço. Em Soundtrack ele interpreta Cris, um homem que quer se isolar para realizar um trabalho de tirar selfies e no futuro realizar uma exposição com elas. A pessoa que ver suas fotos poderá ouvir a mesma música que ele estava ouvindo no momento que as tirou.
Ambientado no Ártico e rodeado pela neve ele (Cris) se encontra com outros cientistas que vivem em um pequeno alojamento. Logo eles vão se conhecendo e a história de cada um e seus dramas passam a ser contados de maneira sucinta. Os estrangeiros há mais tempo ali logo veem com preconceito o trabalho que Cris quer realizar, pois viajar para um lugar remoto apenas para tirar selfies não é algo que vá mudar o mundo e eles cientistas realizam um trabalho que ficará para a posteridade, algo que será útil para o homem.
Há muitas mensagens nesse filme, mas essa dos cientistas confrontando a arte é a que fica mais evidente. O que a arte pode deixar para a posterioridade de importante? Como o personagem de Cris diz gerar milhões em dinheiro todo o ano, mas que discute seu companheiro de quarto. Essa é uma crítica ao mundo moderno, tudo é arte mesmo que a pessoa não entenda o que ou a mensagem que a obra está passando. Já os cientistas que fazem trabalhos que levam anos, muitas vezes nem conseguem ver seu trabalho finalizado.
Esse é apenas um dos muitos questionamentos feitos durante o desenrolar da história, há outros diálogos sobre o tempo e sobre a felicidade que parecem ter sido jogados lá. E são essas pequenas tramas que vão desenvolvendo os personagens e seu objetivo ali. É essa riqueza de detalhes do roteiro que deixa tudo tão legal em Soundtrack. Não é um filme feito para se apreciar como arte, mas também não é uma obra que seja esquecível ou que não precise ser vista.
Tudo isso veio da cabeça do enigmático 300 ML, o diretor do longa. Enigmático pois poucos sabem sua identidade, tente encontrar informações dele na internet e não encontrará nada a respeito. O que se sabe é que ele havia dirigido antes de Soundtrack o bom curta O Código Tarantino. Ele trabalha bem o diálogo entre Selton e seu companheiro de quarto, o enquadramento usado pela sua câmera evidencia sempre os dilemas de Cris.
Em alguns momentos a produção soa arrastada com os diálogos longos, mas isso é proposital, pois estão isolados em um lugar que não tem quase nada a fazer. Tudo aqui é proposital, desde as discussões entre Cris e seu colega de quarto até as saídas solitárias pela neve para tirar selfies. Algo que poderia ter sido melhor trabalhado é a emoção, há cenas que poderiam e deveriam ter mais aprofundamento pela sensibilidade que ela pedia, mas acabaram por deixar tudo muito sério.
O enquadramento dos personagens se não é perfeito é interessante, a todo momento Cris aparece ou em ambientes solitários ou em lugares bagunçados, dando dicas de como é sua personalidade. O trabalho de fotografia também chama a atenção por ser muito bem feito, a cada momento que Cris está feliz ou bravo a luz vai o acompanhando.
Duas curiosidades envolvendo a produção: a primeira é a de mesmo o filme sendo brasileiro, é falado quase que inteiramente em inglês o que é elogiável, já que a maioria das produções acabam por cair na mesmice de fazer um longa praticamente igual a outros que já existem. Outra fato interessante é o da neve que podemos ver durante toda história não ter sido gravado no Ártico e sim em um estúdio no Rio de Janeiro. Selton Mello em entrevista afirmou que foi a primeira vez que trabalhou com o fundo verde. O CGI usado é muito bom, tanto que qualquer desavisado vai realmente achar que eles viajaram para outro continente para gravá-lo.
Há de se destacar as ótimas cenas de humor que fazem o contraste com a depressão da neve. Esse alívio cômico é importante para quebrar literalmente o gelo em momentos que poderiam ser chatos. 300 ML, fez uma produção interessante e diferente do que o cinema nacional estava acostumado a fazer. Os longas brasileiros que estão saindo no cinema são na maioria comédias questionáveis. Ver algo como Soundtrack é algo que traz uma dose de esperança para que algo melhor venha no futuro.
Escrito por Gabriel Danius.
Soundtrack (Soundtrack, Brasil – 2017)
Direção: 300 ml
Roteiro: 300 ml
Elenco: Selton Mello, Ralph Ineson, Seu Jorge, Thomas Chaanhing, Lukas Loughran
Gênero: Drama
Duração: 100 min
https://www.youtube.com/watch?v=zmUz0jKGDZ0
Crítica | Procurando Nemo
Um misto de ironia e saudades marcam a escrita dessa crítica de Procurando Nemo. O quinto filme da Pixar marcou e deu origem a experiências memoráveis no campo da minha vida pessoal. Em 2003, eu não tinha mais de 9 anos. Um pequeno pirralho assim como Nemo. A primeira visita a esse filme deve ter sido uma das raríssimas vezes que eu teria ido ao cinema acompanhado de outras pessoas e não com a minha mãe. Depois, em uma das sete ou nove vezes que assisti novamente nos cinemas (ainda é o filme que mais vi nas telonas), tive minha primeira experiência de ir ao cinema completamente sozinho.
Eu vi Procurando Nemo passear da sala 1 até a sala 9 no multiplex do Frei Caneca em São Paulo em todo o seu período de exibição. Absolutamente uma obsessão que eu só tinha encontrado na minha infância com 101 Dálmatas e Jurassic Park.
Para completar, o filme que marca minha infância recebe sua sequência justamente na época em que começo esse site. E agora, quase exatamente um depois, encontro a ocasião de comentar sobre a maravilhosa odisseia de Marlin para salvar seu filho. Mais uma vez, Procurando Nemo está presente em uma época importante da minha vida.
Amadurecimento Natural
Em apenas seu quinto filme, a Pixar já colecionava outra nova obra-prima. Se aventurando em filmes sobre brinquedos falantes, insetos revoltados e monstros comediantes, o feeling e o tato da produtora mudam consideravelmente em Procurando Nemo. A animação basicamente inaugura uma nova fase intelectual que só possui Carros como estranho no ninho por destoar das propostas universais em abordagens nada convencionais.
A Pixar já dominava a animação e textura para humanos desde Toy Story 2 passando pelo teste de fogo com Boo em Monstros S.A.. A jornada de Marlin em busca de seu filho sequestrado poderia ser facilmente adaptada para um núcleo humano – anos mais tarde veríamos isso acontecer com Busca Implacável, mas, sabiamente, a Pixar não estava preparada para largar o tom de fábulas modernas que marcam sua primeira história.
Em uma história extremamente peculiar, Andrew Stanton leva o argumento original do filme no formato a la Odisséia de Homero. Há todo o ar de uma tragédia grega permeando a infeliz história do peixe-palhaço. Logo de início, Nemo possui o começo mais traumático dos longas Pixar até então. Tamanho trauma que consegue explanar a motivação de Marlin em apenas uma cena.
Nele, Marlin e Coral festejam a nova anêmona que compraram bem de frente ao mar aberto. Ali será a casa de uma infinidade de peixinhos-palhaço que estão prestes a eclodir de suas ovas. Porém, apesar da extrema alegria e plenitude de espírito, Marlin é obrigado a lidar com a maior tragédia possível, uma reviravolta que somente a indiferença crua da natureza pode proporcionar. Coral e quase todas as ovas são mortas por uma barracuda.
Desolado, as esperanças de Marlin se renovam quando encontra uma única ova solitária que sobreviveu ao ataque do predador. Em homenagem a esposa, ele batiza seu filho como Nemo. Anos se passam e, no primeiro dia de escola, Nemo é desafiado a encostar em um barco à deriva em mar aberto. Desobedecendo ordens diretas de seu pai superprotetor, Nemo toca no barco, mas acaba capturado por uma dupla de mergulhadores.
Desesperado, Marlin nada o mais rápido possível para salvar seu filho, mas acaba perdendo completamente o barco de vista. Porém, durante a frenética perseguição, acaba atropelando uma “peixinha” distraída com perda de memória recente chamada Dory. Apenas podendo contar com a ajuda de sua amiga disfuncional, Marlin segue em busca de seu filho.
O Simples Contraste
A palavra que marca a experiência da proposta de Stanton tanto no roteiro quanto na direção é uma só: subversão. No caso, de expectativas e clichês perpetuados por tantos filmes. Mesmo se valendo de uma estrutura de jornada bastante simples e antiga, o diretor injeta novidades a todo instante com um cinismo encantador capaz de se comunicar perfeitamente com crianças e adultos.
O começo em si, todo colorido e iluminado, sofre a brusca reviravolta da morte de Coral para justificar toda a paranoia de Marlin com o oceano e todos os seus perigos. O mais interessante da intenção de Stanton não é seguir o que tantos outros fariam que seria desenvolver o personagem o conferindo descrédito em suas convicções. No fundo, Marlin está completamente certo. O oceano é o lar de perigos inimagináveis.
Enquanto Nemo está em segurança no aquário do dentista com outros peixes ornamentais, Marlin é obrigado a enfrentar seus maiores medos para alcançar o objetivo de sua jornada – detalhe que alguns desafios são lançados em foreshadowing com um diálogo humorado com Nemo enquanto os dois seguem para a escola. Todo o seu desenvolvimento é pautado através das superações nada fáceis de diferentes obstáculos que aparecem no percurso. O primeiro deles é a indiferença dos outros peixes para o seu pedido de socorro durante a desesperadora perseguição.
Sabiamente, Stanton opta em deixar praticamente todos os animais com cores opacas, destacando apenas Marlin e Dory com cores vibrantes, mostrando como os heróis se distinguem dos demais. Logo depois, há o encontro com Bruce e os outros tubarões. Toda a construção de clima indica a morte certa dos peixinhos, porém ao chegar no lugar, o fator Pixar se sobressai com o humor causado pela revelação dos tubarões “vegetarianos”.
O diretor, entretanto, nunca mantém o ritmo sereno e seguro da narrativa. Não demora nada para jogar a situação aos ares ao transformar Bruce em um tubarão sanguinário enquanto revela que Dory sabe ler. Depois, o ritmo de expectativas subvertidas é mantido quase que matematicamente – assim como no ordenamento das cenas de Toy Story.
Nemo tem sua expectativa frustrada por ninguém o socorrer ao ficar preso no tubo do filtro do aquário marcando a primeira experiência independente do peixinho. Enquanto isso, Dory e Marlin se frustram com a luz hipnótica do Diabo do Mar que quase os devora. Para evitar que o texto se torne uma mera descrição das sequências de subversão, tente relembrar de todas as suscessões de eventos que Stanton organiza nessas provas que tanto Marlin e Nemo passam e perceba como absolutamente todas tem o clima virado ao avesso.
É justamente por genialidade de contrastes que absolutamente todas as cenas de mar aberto de Procurando Nemo conseguem ficar fixadas na memória por tantos anos. Digo isso pela incrível experiência que foi ver o filme em 2003. Já com uma bagagem boa de filmes na cabeça, Nemo conseguiu me surpreender em todas essa reviravoltas bem-humoradas. Corridas mortais em águas-vivas, baleias ajudantes, um “anel de fogo” nada perigoso, entre tantos outros. Por conta desse jogo de alívio e tensão construído nas cenas, o humor torna-se certeiro e permite, inclusive, acrescentar pequenas esquetes de causa e efeito que somente tem o propósito de divertir o espectador.
Para finalizar esse apontamento da subversão, Stanton é gênio em justamente criar a cena da fenda. O lugar totalmente obscuro cheio de cadáveres de peixes é justamente o caminho seguro para a correnteza que a dupla precisa chegar. A eficiência da ironia e da revelação mortal das águas-vivas marca a primeira vez que o diretor quebra a lógica do uso das cores e iluminação na narrativa.
Quando Marlin decide que eles têm que nadar acima da fenda, há o uso de águas límpidas e extremamente azuis indicando atmosfera segura. Não demora até as cnidários rosas aparecerem e tomarem todo o espaço que antes era garantido pela serenidade azul-clara. Mesmo que o roteiro indique antes para o espectador que algo ruim acontecerá acima da funda, não há como prever tamanho peso para uma reviravolta decisiva, pois ela marca a origem de um conflito secundário de Marlin extremamente importante.
Pais e Filhos
A alma de Procurando Nemo é, obviamente, seus personagens. Mesmo que a narrativa seja divertidíssima, com cenas memoráveis, não funcionariam não fosse a excepcionalidade de escrita e desenvolvimento que os personagens protagonistas apresentam.
Marlin, mesmo tomando atitudes infelizes que acabam ferindo gravemente Dory, ainda é um personagem extremamente carismático. O truque é a revelação do trauma logo de início. Assim, é fácil compreender sua depressão e medo crônico. E sua única razão de viver: Nemo. Quando seu filho diz que o odeia e logo depois é raptado, Staton introduz a sequência de perseguição frisando em planos distantes toda a solidão do personagem. As águas claras do recife desaparecem para as esverdeadas opacas no lugar onde encontra Dory pela primeira vez.
Aqui, talvez seja a primeira vez que a sublime trilha musical de Thomas Newman se faz realmente assustadora dando sequência orgânica à orquestra que pontua o desconforto tenebroso da cena do rapto. Com notas graves e pausadas do piano, não é exagero dizer que Newman fez uma música curta digna de Bernard Herrmann em Psicose – essa influência de Herrmann está presente na trilha inteira tanto que é explícita na gag genial de tocar os acordes mais famosos de Psicose na apresentação de Darla.
Pela completa falta de senso de comunidade, Marlin não consegue confiar em ninguém. Que dirá na simpática peixinha que esquece do peixe-palhaço segundos após prometer que o ajudaria. Esse arco de confiança é extremamente necessário para o desenvolvimento de Marlin abandonar o vício superprotetor que marca sua relação com Nemo.
Apesar de possuir sua jornada própria, Dory é o catalisador da epifania de Marlin em confiar em terceiros. A catarse ocorre baseada no contraste de situações dramáticas sempre encaixadas por Stanton. A primeira, como já mencionei, ocorre na fenda. Depois, para resolver o desenvolvimento, o roteirista coloca Marlin dependente do baleiês de Dory quando ela afirma que os dois precisam cair na garganta da baleia em um belo cliffhanger (literalmente). É aqui que Stanton, ao enquadrar a cicatriz de Dory, consegue resolver visualmente o complexo drama. Marlin finalmente aprende a confiar de novo – tanto que já pula para o bico do pelicano Nigel sem muita resistência, posteriormente.
Já Dory recebe o carisma que todo alívio cômico precisa. Mas, assim como Mike em Monstros S.A., a personagem inesquecível também ganha tratamentos profundos do roteiro envolvendo sua deficiência psicológica. Todo o dilema é conseguir lembrar, algo impossível para Dory até antes de encontrar Marlin.
Assim como fez com o peixe-palhaço protagonista, Stanton também usa recursos visuais para causar a catarse máxima em Dory quando ela encontra Nemo, mas não se lembra de quem ele é em primeiro momento. Aqui, o uso de linguagem é mais complexo, pois tange a simbologia visual tão querida aos filmes Pixar. Quando Marlin abandona Dory, vemos uma corrente em terceiro plano.
A corrente normalmente é interpretada como a ligação entre seres de um universo. Com Nemo encontrando Dory após a sua fuga, fica claro que é justamente ela quem desempenhará a função de juntar Nemo com Marlin novamente. Mesmo que muito sutilmente, entre águas novamente turvas e sombrias, o diretor deixa a corrente desfocada em um quadrante de evidência do plano. Uma delicadeza que felizmente é preservada em Procurando Dory.
Outro ponto que marcam os filmes Procurando é o discurso sobre a deficiência. Mesmo que utilizada com o viés de humor em diversos pontos, o drama assombra as figuras a todo o momento.
Os peixes mais disfuncionais estão, não por acaso, no aquário do dentista. Quase todos os ótimos coadjuvantes sofrem de transtornos psicológicos como obsessões diversas, stress e uma esquizofrenia abrandada. Somente Gil e Nemo sofre com deficiências físicas pelo defeito de ambos em suas barbatanas peitorais. Obviamente, pela direção de Stanton em frisar esses pontos com o auxílio da trilha e do poderio visual, Nemo e Gil são ligados.
O contraste entre as figuras paternas é sentido sendo que os dois compartilha mais semelhanças além da deficiência. Talvez, por também ter sofrido na infância, Gil não poupa Nemo. Suas intenções vão bem além de apenas ajudar o peixe-palhaço, mas de usá-lo como instrumento de um plano de fuga para todos retornarem ao oceano. Logo, tanto Marlin e Nemo sofrem provações de confiança e amadurecimento.
Isso, aliás, é pontuado no grande hiato da narrativa quando Marlin conhece a tartaruga Crush e seu filho Esguicho. A passagem mais tranquila serve para o protagonista perder um pouco o enorme medo que o cerca, provando que pequenos filhotes também conseguem se virar.
Desbravando os sete mares
Em diversos momentos dessa análise, comentei sobre a direção de Andrew Stanton, pois no caso de Procurando Nemo, as marcas do diretor estão em praticamente todos os cantos. A coragem de Stanton em jogar com ironias macabras como a falsa morte de Nemo já não é mais vista em praticamente nenhuma animação infantil americana. Não existem os riscos e corrida contra o tempo de antes que tornavam toda a jornada divertida e urgente como deveria ser.
Sem o perigo real da perda, dificilmente Procurando Nemo seria tão marcante. Uma pena que a Pixar de hoje tenha virado uma sombra de outrora pelo pioneirismo tecnológico e coragem narrativa. Com quase quinze anos de idade, Nemo permanece atual. Ao contrário das quatro animações anteriores, ainda é fácil ficar deslumbrado pela riqueza de detalhes e fotorrealismo fantástico que os animadores e “texturizadores” se empenharam em entregar.
O grau de física é tamanho que quando Bruce surge e se movimenta em frente a Dory e Marlin, é possível sempre ver um pouco de areia que é arrastada por conta do peso do enorme tubarão. Eu só fui notar um dos trabalhos mais belos da textura do filme quando o assisti em blu-ray. Estranhava as “manchas” em Marlin e Nemo para depois descobrir que eram suas escamas muito bem desenhadas que refletiam as luzes cáusticas trabalhadas com afinco.
O único elemento que pode denunciar a idade de Procurando Nemo é a imobilidade da câmera. Na época, o movimento custava alguns milhares de dólares, ameaçando o orçamento contado de Nemo. Por isso, Stanton as utiliza como recurso narrativo como “espelho” de Marlin. No começo, praticamente estática, mas assim que a jornada começa, se torna mais móvel e livre refletindo o desenvolvimento do protagonista.
A expressividade dos animais também se comporta bem até hoje de modo orgânico. Para guiar os animadores, Stanton pediu que a equipe estudasse com dedicação as expressões faciais de diversos cães. Quase todas foram inspiradas pelos movimentos das “sobrancelhas” dos melhores amigos do homem.
Aproveito para repetir como o diretor soube aproveitar a inspiração ímpar de Thomas Newman em talvez sua melhor trilha musical. A música que atinge tons experimentais em momentos propícios costuma resgatar sentimentos em cenas-chave. Para mim, a mais marcante é a feita apenas com os graves do piano para ilustrar o desespero de Marlin por ter perdido seu filho. Apesar de curta, ela é reiterada novamente no último clímax da obra, na prova final de Nemo, Dory e Marlin: sobreviver à pesca (uma das vezes que Stanton pontua o sofrimento animal causado pelo homem).
Nessa cena, novamente os tons melódicos trágicos do piano aparecem com força, mas vão se esvanecendo até se transformarem em uma melodia completamente diferente, cheia de energia e esperança (note que a mudança musical ocorre justamente quando os peixes começam a nadar para baixo em conjunto). Ali, toda a jornada de Marlin é refletida. Seu medo é dominado pela confiança em seu filho, pela esperança há muito tempo perdida.
Encontrando Arte
Procurando Nemo é arte e, também, uma obra-prima da animação e do Cinema. Em apenas 100 minutos, Stanton e a Pixar conseguiram cravar o quinto acerto seguido do estúdio – mesmo que, em nível pessoal, eu puxe uma sardinha de preferência a Nemo. Com um rol de personagens tão marcantes quanto os que consagraram o estúdio em Toy Story, a aventura marítima da Pixar é inesquecível.
A paternidade vista por olhos animais, mas que acaba te marcando pela profunda complexidade sobre dois sentimentos muito humanos: amor e ódio.
Procurando Nemo (Finding Nemo, EUA, 2003)
Direção: Andrew Stanton, Lee Unkrich
Roteiro: Andrew Stanton, Bob Peterson, David Reynolds
Elenco (vozes originais): Albert Brooks, Ellen DeGeneres, Alexander Gould, Willem Dafoe, Brad Garrett, Geoffrey Rush, Eric Bana, Joe Ranft, Allison Janey
Gênero: Animação Infantil, Drama
Duração: 100 minutos.
Crítica | A Dança da Realidade
Depois de décadas afastado das telonas - vinte e três anos após o lançamento de O Ladrão do Arco Íris, ou melhor, vinte e quatro depois de Santa Sangre, já que o primeiro é um longa renegado -, Alejandro Jodorowsky volta às telas com a primeira parte da sua série de filmes autobiográficos, feitos à sua moda. Com os pés no palco da realidade, no sentido mais amplo dela, o diretor chileno volta ao seu passado, à memória transfigurada pelo seu imaginário esotérico, colorido e explosivo, e compõe seu carnaval.
Partimos de uma epígrafe encenada pelo próprio Alejandro, falando sobre o dinheiro, refletindo os conflitos que teve com ele pela carreira, para aportamos na cidade da infância de Jodorowsky, em Tocopilla, Chile. Jeremias Herskovits encarna o jovem protagonista, enquanto Brontis Jodorowsky, filho do diretor – o mesmo que apareceu ainda pequeno em El Topo –, interpreta seu pai, Jaime, e Pamela Flores sua mãe. É muito significativa a forma como o mundo do passado é erigido sobre o mundo real. Com uma construção de espaço que abusa de recursos teatrais, sobretudo, em que as ruínas do passado são sobrepostas aos elementos atuais da cidade natal (seja por um papelão que disfarça um trem moderno numa locomotiva antiga, seja pelos figurinos teatrais, ora exorbitantes, ora minimalistas) para conseguir dar vida a algo que só acontece/aconteceu na cabeça de Jodorowsky.
São poucos os momentos em que os artifícios digitais aparecem, como na cena em que o menino irritado “machuca” o mar e é contra-atacado com uma enxurrada de peixes mortos. É um passo em falso, uma dessincronização nesse carnaval com rigorosidade de balé, mas que se justifica pela magnitude, pela força da imagem por si só – que é justamente pelo que Jodorowsky ficou conhecido. Dessa vez, com essas incursões por esse mistério chamado “memória”, o diretor incrusta as transfigurações poéticas na tela, ou, como ele mesmo afirma acerca do livro homônimo no qual o filme é inspirado: “Esta busca que me separou do meu Eu ilusório, me fez fugir do Chile e me impulsionou a buscar com desespero um sentido para a vida.”
E alguma hora alguém há de encontrar? Como certezas são meras ilusões, Jodorowsky reverencia a dúvida para construir esse filme de busca. Da busca pelo esquecido, pelo ignorado, pelo mal resolvido. O pai é a figura totalitária, que vai do stalinismo ao ativismo contra Ibañez, a mãe é uma soprano que canta todas suas falas. Acompanhamos as tensões entre esses polos tão distintos e reconhecemos em determinados momentos várias razões das preferências do diretor, como sua relação com o circo e com pessoas deficientes.
Se em filmes anteriores Jodorowsky interpreta personagens que simbolizavam suas experiências pessoais, já num misto de impulso artístico e terapêutico (especialmente na psicanálise de Santa Sangre), agora ele vai fundo no divã cinematográfico. Paciente e psicólogo, nos resta entreter com essa narrativa cheia de humor e emoção. Não faltam situações estranhas como o funeral de um cachorro conduzido por um corpo de bombeiros, ou uma dança depois de chafurdar na graxa, assim como cenas satíricas em igrejas, bares, na presença de drag queens comunistas, anões e tantas outras figuras.
A Dança da Realidade, apesar de tudo, possui inconsistências narrativas muito claras, especialmente quando para de acompanhar Alejandro e foca na jornada de seu pai. Assim como força a barra para encontrar o máximo de reconciliações possíveis nesse primeiro longa de sua série autobiográfica (medo da morte?). Com exceção do final que apresenta um gancho claro para o que viria a ser Poesia Sem Fim, o filme é muito fechado em si mesmo e nos conflitos internos de Jodorowsky. A Dança da Realidade é o filme em que o diretor finalmente encontra uma unidade, um espaço coerente para diluir seu ego, seus remorsos, seu surrealismo, enfim, sua rebeldia maturada pelo tempo.
A Dança da Realidade (La Danza de la Realidad, Chile – 2013)
Direção: Alejandro Jodorowsky
Roteiro: Alejandro Jodorowsky
Elenco: Alejandro Jodorowsky, Brontis Jodorowsky, Pamela Flores, Jeremias Herskovits, Axel Jodorowsky
Gênero: Fantasia
Duração: 130 min
https://www.youtube.com/watch?v=XYKx1JPmtKU