Um misto de ironia e saudades marcam a escrita dessa crítica de Procurando Nemo. O quinto filme da Pixar marcou e deu origem a experiências memoráveis no campo da minha vida pessoal. Em 2003, eu não tinha mais de 9 anos. Um pequeno pirralho assim como Nemo. A primeira visita a esse filme deve ter sido uma das raríssimas vezes que eu teria ido ao cinema acompanhado de outras pessoas e não com a minha mãe. Depois, em uma das sete ou nove vezes que assisti novamente nos cinemas (ainda é o filme que mais vi nas telonas), tive minha primeira experiência de ir ao cinema completamente sozinho.
Eu vi Procurando Nemo passear da sala 1 até a sala 9 no multiplex do Frei Caneca em São Paulo em todo o seu período de exibição. Absolutamente uma obsessão que eu só tinha encontrado na minha infância com 101 Dálmatas e Jurassic Park.
Para completar, o filme que marca minha infância recebe sua sequência justamente na época em que começo esse site. E agora, quase exatamente um depois, encontro a ocasião de comentar sobre a maravilhosa odisseia de Marlin para salvar seu filho. Mais uma vez, Procurando Nemo está presente em uma época importante da minha vida.
Amadurecimento Natural
Em apenas seu quinto filme, a Pixar já colecionava outra nova obra-prima. Se aventurando em filmes sobre brinquedos falantes, insetos revoltados e monstros comediantes, o feeling e o tato da produtora mudam consideravelmente em Procurando Nemo. A animação basicamente inaugura uma nova fase intelectual que só possui Carros como estranho no ninho por destoar das propostas universais em abordagens nada convencionais.
A Pixar já dominava a animação e textura para humanos desde Toy Story 2 passando pelo teste de fogo com Boo em Monstros S.A.. A jornada de Marlin em busca de seu filho sequestrado poderia ser facilmente adaptada para um núcleo humano – anos mais tarde veríamos isso acontecer com Busca Implacável, mas, sabiamente, a Pixar não estava preparada para largar o tom de fábulas modernas que marcam sua primeira história.
Em uma história extremamente peculiar, Andrew Stanton leva o argumento original do filme no formato a la Odisséia de Homero. Há todo o ar de uma tragédia grega permeando a infeliz história do peixe-palhaço. Logo de início, Nemo possui o começo mais traumático dos longas Pixar até então. Tamanho trauma que consegue explanar a motivação de Marlin em apenas uma cena.
Nele, Marlin e Coral festejam a nova anêmona que compraram bem de frente ao mar aberto. Ali será a casa de uma infinidade de peixinhos-palhaço que estão prestes a eclodir de suas ovas. Porém, apesar da extrema alegria e plenitude de espírito, Marlin é obrigado a lidar com a maior tragédia possível, uma reviravolta que somente a indiferença crua da natureza pode proporcionar. Coral e quase todas as ovas são mortas por uma barracuda.
Desolado, as esperanças de Marlin se renovam quando encontra uma única ova solitária que sobreviveu ao ataque do predador. Em homenagem a esposa, ele batiza seu filho como Nemo. Anos se passam e, no primeiro dia de escola, Nemo é desafiado a encostar em um barco à deriva em mar aberto. Desobedecendo ordens diretas de seu pai superprotetor, Nemo toca no barco, mas acaba capturado por uma dupla de mergulhadores.
Desesperado, Marlin nada o mais rápido possível para salvar seu filho, mas acaba perdendo completamente o barco de vista. Porém, durante a frenética perseguição, acaba atropelando uma “peixinha” distraída com perda de memória recente chamada Dory. Apenas podendo contar com a ajuda de sua amiga disfuncional, Marlin segue em busca de seu filho.
O Simples Contraste
A palavra que marca a experiência da proposta de Stanton tanto no roteiro quanto na direção é uma só: subversão. No caso, de expectativas e clichês perpetuados por tantos filmes. Mesmo se valendo de uma estrutura de jornada bastante simples e antiga, o diretor injeta novidades a todo instante com um cinismo encantador capaz de se comunicar perfeitamente com crianças e adultos.
O começo em si, todo colorido e iluminado, sofre a brusca reviravolta da morte de Coral para justificar toda a paranoia de Marlin com o oceano e todos os seus perigos. O mais interessante da intenção de Stanton não é seguir o que tantos outros fariam que seria desenvolver o personagem o conferindo descrédito em suas convicções. No fundo, Marlin está completamente certo. O oceano é o lar de perigos inimagináveis.
Enquanto Nemo está em segurança no aquário do dentista com outros peixes ornamentais, Marlin é obrigado a enfrentar seus maiores medos para alcançar o objetivo de sua jornada – detalhe que alguns desafios são lançados em foreshadowing com um diálogo humorado com Nemo enquanto os dois seguem para a escola. Todo o seu desenvolvimento é pautado através das superações nada fáceis de diferentes obstáculos que aparecem no percurso. O primeiro deles é a indiferença dos outros peixes para o seu pedido de socorro durante a desesperadora perseguição.
Sabiamente, Stanton opta em deixar praticamente todos os animais com cores opacas, destacando apenas Marlin e Dory com cores vibrantes, mostrando como os heróis se distinguem dos demais. Logo depois, há o encontro com Bruce e os outros tubarões. Toda a construção de clima indica a morte certa dos peixinhos, porém ao chegar no lugar, o fator Pixar se sobressai com o humor causado pela revelação dos tubarões “vegetarianos”.
O diretor, entretanto, nunca mantém o ritmo sereno e seguro da narrativa. Não demora nada para jogar a situação aos ares ao transformar Bruce em um tubarão sanguinário enquanto revela que Dory sabe ler. Depois, o ritmo de expectativas subvertidas é mantido quase que matematicamente – assim como no ordenamento das cenas de Toy Story.
Nemo tem sua expectativa frustrada por ninguém o socorrer ao ficar preso no tubo do filtro do aquário marcando a primeira experiência independente do peixinho. Enquanto isso, Dory e Marlin se frustram com a luz hipnótica do Diabo do Mar que quase os devora. Para evitar que o texto se torne uma mera descrição das sequências de subversão, tente relembrar de todas as suscessões de eventos que Stanton organiza nessas provas que tanto Marlin e Nemo passam e perceba como absolutamente todas tem o clima virado ao avesso.
É justamente por genialidade de contrastes que absolutamente todas as cenas de mar aberto de Procurando Nemo conseguem ficar fixadas na memória por tantos anos. Digo isso pela incrível experiência que foi ver o filme em 2003. Já com uma bagagem boa de filmes na cabeça, Nemo conseguiu me surpreender em todas essa reviravoltas bem-humoradas. Corridas mortais em águas-vivas, baleias ajudantes, um “anel de fogo” nada perigoso, entre tantos outros. Por conta desse jogo de alívio e tensão construído nas cenas, o humor torna-se certeiro e permite, inclusive, acrescentar pequenas esquetes de causa e efeito que somente tem o propósito de divertir o espectador.
Para finalizar esse apontamento da subversão, Stanton é gênio em justamente criar a cena da fenda. O lugar totalmente obscuro cheio de cadáveres de peixes é justamente o caminho seguro para a correnteza que a dupla precisa chegar. A eficiência da ironia e da revelação mortal das águas-vivas marca a primeira vez que o diretor quebra a lógica do uso das cores e iluminação na narrativa.
Quando Marlin decide que eles têm que nadar acima da fenda, há o uso de águas límpidas e extremamente azuis indicando atmosfera segura. Não demora até as cnidários rosas aparecerem e tomarem todo o espaço que antes era garantido pela serenidade azul-clara. Mesmo que o roteiro indique antes para o espectador que algo ruim acontecerá acima da funda, não há como prever tamanho peso para uma reviravolta decisiva, pois ela marca a origem de um conflito secundário de Marlin extremamente importante.
Pais e Filhos
A alma de Procurando Nemo é, obviamente, seus personagens. Mesmo que a narrativa seja divertidíssima, com cenas memoráveis, não funcionariam não fosse a excepcionalidade de escrita e desenvolvimento que os personagens protagonistas apresentam.
Marlin, mesmo tomando atitudes infelizes que acabam ferindo gravemente Dory, ainda é um personagem extremamente carismático. O truque é a revelação do trauma logo de início. Assim, é fácil compreender sua depressão e medo crônico. E sua única razão de viver: Nemo. Quando seu filho diz que o odeia e logo depois é raptado, Staton introduz a sequência de perseguição frisando em planos distantes toda a solidão do personagem. As águas claras do recife desaparecem para as esverdeadas opacas no lugar onde encontra Dory pela primeira vez.
Aqui, talvez seja a primeira vez que a sublime trilha musical de Thomas Newman se faz realmente assustadora dando sequência orgânica à orquestra que pontua o desconforto tenebroso da cena do rapto. Com notas graves e pausadas do piano, não é exagero dizer que Newman fez uma música curta digna de Bernard Herrmann em Psicose – essa influência de Herrmann está presente na trilha inteira tanto que é explícita na gag genial de tocar os acordes mais famosos de Psicose na apresentação de Darla.
Pela completa falta de senso de comunidade, Marlin não consegue confiar em ninguém. Que dirá na simpática peixinha que esquece do peixe-palhaço segundos após prometer que o ajudaria. Esse arco de confiança é extremamente necessário para o desenvolvimento de Marlin abandonar o vício superprotetor que marca sua relação com Nemo.
Apesar de possuir sua jornada própria, Dory é o catalisador da epifania de Marlin em confiar em terceiros. A catarse ocorre baseada no contraste de situações dramáticas sempre encaixadas por Stanton. A primeira, como já mencionei, ocorre na fenda. Depois, para resolver o desenvolvimento, o roteirista coloca Marlin dependente do baleiês de Dory quando ela afirma que os dois precisam cair na garganta da baleia em um belo cliffhanger (literalmente). É aqui que Stanton, ao enquadrar a cicatriz de Dory, consegue resolver visualmente o complexo drama. Marlin finalmente aprende a confiar de novo – tanto que já pula para o bico do pelicano Nigel sem muita resistência, posteriormente.
Já Dory recebe o carisma que todo alívio cômico precisa. Mas, assim como Mike em Monstros S.A., a personagem inesquecível também ganha tratamentos profundos do roteiro envolvendo sua deficiência psicológica. Todo o dilema é conseguir lembrar, algo impossível para Dory até antes de encontrar Marlin.
Assim como fez com o peixe-palhaço protagonista, Stanton também usa recursos visuais para causar a catarse máxima em Dory quando ela encontra Nemo, mas não se lembra de quem ele é em primeiro momento. Aqui, o uso de linguagem é mais complexo, pois tange a simbologia visual tão querida aos filmes Pixar. Quando Marlin abandona Dory, vemos uma corrente em terceiro plano.
A corrente normalmente é interpretada como a ligação entre seres de um universo. Com Nemo encontrando Dory após a sua fuga, fica claro que é justamente ela quem desempenhará a função de juntar Nemo com Marlin novamente. Mesmo que muito sutilmente, entre águas novamente turvas e sombrias, o diretor deixa a corrente desfocada em um quadrante de evidência do plano. Uma delicadeza que felizmente é preservada em Procurando Dory.
Outro ponto que marcam os filmes Procurando é o discurso sobre a deficiência. Mesmo que utilizada com o viés de humor em diversos pontos, o drama assombra as figuras a todo o momento.
Os peixes mais disfuncionais estão, não por acaso, no aquário do dentista. Quase todos os ótimos coadjuvantes sofrem de transtornos psicológicos como obsessões diversas, stress e uma esquizofrenia abrandada. Somente Gil e Nemo sofre com deficiências físicas pelo defeito de ambos em suas barbatanas peitorais. Obviamente, pela direção de Stanton em frisar esses pontos com o auxílio da trilha e do poderio visual, Nemo e Gil são ligados.
O contraste entre as figuras paternas é sentido sendo que os dois compartilha mais semelhanças além da deficiência. Talvez, por também ter sofrido na infância, Gil não poupa Nemo. Suas intenções vão bem além de apenas ajudar o peixe-palhaço, mas de usá-lo como instrumento de um plano de fuga para todos retornarem ao oceano. Logo, tanto Marlin e Nemo sofrem provações de confiança e amadurecimento.
Isso, aliás, é pontuado no grande hiato da narrativa quando Marlin conhece a tartaruga Crush e seu filho Esguicho. A passagem mais tranquila serve para o protagonista perder um pouco o enorme medo que o cerca, provando que pequenos filhotes também conseguem se virar.
Desbravando os sete mares
Em diversos momentos dessa análise, comentei sobre a direção de Andrew Stanton, pois no caso de Procurando Nemo, as marcas do diretor estão em praticamente todos os cantos. A coragem de Stanton em jogar com ironias macabras como a falsa morte de Nemo já não é mais vista em praticamente nenhuma animação infantil americana. Não existem os riscos e corrida contra o tempo de antes que tornavam toda a jornada divertida e urgente como deveria ser.
Sem o perigo real da perda, dificilmente Procurando Nemo seria tão marcante. Uma pena que a Pixar de hoje tenha virado uma sombra de outrora pelo pioneirismo tecnológico e coragem narrativa. Com quase quinze anos de idade, Nemo permanece atual. Ao contrário das quatro animações anteriores, ainda é fácil ficar deslumbrado pela riqueza de detalhes e fotorrealismo fantástico que os animadores e “texturizadores” se empenharam em entregar.
O grau de física é tamanho que quando Bruce surge e se movimenta em frente a Dory e Marlin, é possível sempre ver um pouco de areia que é arrastada por conta do peso do enorme tubarão. Eu só fui notar um dos trabalhos mais belos da textura do filme quando o assisti em blu-ray. Estranhava as “manchas” em Marlin e Nemo para depois descobrir que eram suas escamas muito bem desenhadas que refletiam as luzes cáusticas trabalhadas com afinco.
O único elemento que pode denunciar a idade de Procurando Nemo é a imobilidade da câmera. Na época, o movimento custava alguns milhares de dólares, ameaçando o orçamento contado de Nemo. Por isso, Stanton as utiliza como recurso narrativo como “espelho” de Marlin. No começo, praticamente estática, mas assim que a jornada começa, se torna mais móvel e livre refletindo o desenvolvimento do protagonista.
A expressividade dos animais também se comporta bem até hoje de modo orgânico. Para guiar os animadores, Stanton pediu que a equipe estudasse com dedicação as expressões faciais de diversos cães. Quase todas foram inspiradas pelos movimentos das “sobrancelhas” dos melhores amigos do homem.
Aproveito para repetir como o diretor soube aproveitar a inspiração ímpar de Thomas Newman em talvez sua melhor trilha musical. A música que atinge tons experimentais em momentos propícios costuma resgatar sentimentos em cenas-chave. Para mim, a mais marcante é a feita apenas com os graves do piano para ilustrar o desespero de Marlin por ter perdido seu filho. Apesar de curta, ela é reiterada novamente no último clímax da obra, na prova final de Nemo, Dory e Marlin: sobreviver à pesca (uma das vezes que Stanton pontua o sofrimento animal causado pelo homem).
Nessa cena, novamente os tons melódicos trágicos do piano aparecem com força, mas vão se esvanecendo até se transformarem em uma melodia completamente diferente, cheia de energia e esperança (note que a mudança musical ocorre justamente quando os peixes começam a nadar para baixo em conjunto). Ali, toda a jornada de Marlin é refletida. Seu medo é dominado pela confiança em seu filho, pela esperança há muito tempo perdida.
Encontrando Arte
Procurando Nemo é arte e, também, uma obra-prima da animação e do Cinema. Em apenas 100 minutos, Stanton e a Pixar conseguiram cravar o quinto acerto seguido do estúdio – mesmo que, em nível pessoal, eu puxe uma sardinha de preferência a Nemo. Com um rol de personagens tão marcantes quanto os que consagraram o estúdio em Toy Story, a aventura marítima da Pixar é inesquecível.
A paternidade vista por olhos animais, mas que acaba te marcando pela profunda complexidade sobre dois sentimentos muito humanos: amor e ódio.
Procurando Nemo (Finding Nemo, EUA, 2003)
Direção: Andrew Stanton, Lee Unkrich
Roteiro: Andrew Stanton, Bob Peterson, David Reynolds
Elenco (vozes originais): Albert Brooks, Ellen DeGeneres, Alexander Gould, Willem Dafoe, Brad Garrett, Geoffrey Rush, Eric Bana, Joe Ranft, Allison Janey
Gênero: Animação Infantil, Drama
Duração: 100 minutos.
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