Crítica | Cinquenta Tons Mais Escuros, de E. L. James

Os livros de E. L. James se tornaram um fenômeno mundial assim que foram lançados e agora os filmes também seguem essa linha de sucesso. O longa Cinquenta Tons Mais Escuros foi lançado esse mês e aproveitando esse momento, resolvemos analisar o segundo livro também.

Assim como no primeiro livro, vemos aqui a história pela perspectiva de Anastasia. Ela se mudou para Seattle e conseguiu um emprego como assistente de um editor, e mesmo separada (e sofrendo muito por isso!) de Grey ela aceita as flores que ele mandou pelo seu primeiro dia de trabalho e a carona para a exposição de fotos do amigo dela, José. Christian está disposto a reconquistar Ana e durante uma conversa intensa num jantar depois da exposição, ele se declara e propõe um novo acordo. A ideia agora é não ter regras. Sim, isso mesmo! Christian Grey quer tentar um relacionamento baunilha com Ana e claro que ela aceita, com isso ela promete ter fé e paciência com ele.

Parece que a única coisa que pode impedir disso dar certo é o próprio Christian com todos os seus problemas e seu estilo de vida totalmente diferente do de Ana, mas o que não esperávamos é o retorno de questões do passado dele que voltam simplesmente para atormentar a vida feliz do recém casal. Leila, uma ex submissa de Grey, começa a aparecer "perseguindo" eles com pequenas aparições como quando aborda Ana na rua e solta a pergunta "O que você tem que eu não tenho?".

Aqui começa um dos pontos positivos da história, o clima tenso quase constante que E. L. James consegue criar com a ameaça de um ataque que pode acontecer a qualquer momento. Mas infelizmente ela não consegue manter isso por muito tempo, pois começa a criar outros diversos (sério, são vários) conflitos que tem o intuito de aumentar o clima de tensão. Outro conflito que a autora gosta de focar é entre Ana e o chefe, Jack Hyde. Esse por sinal é pior trabalhado do que o primeiro que citei, pois existe sempre uma expectativa de algo acontecer e quando acontece é algo raso e facilmente resolvido. Até Kate e Elena, amigas de Ana e Christian respectivamente, entrem em cena para gerar tensão e alguma discussão sem sentido. 

O principal problema de Cinquenta Tons Mais Escuros é realmente a falta de desenvolvimento. Todos os conflitos são resolvidos de maneira tão simples e óbvia, alguns até de maneira casual. E não pense que os momentos bons estão fora dessa regra, a autora consegue ser extremamente criativa criando os cenários mais românticos e belos para o casal, mas todos seguem sempre a mesma fórmula de desenvolvimento regada de clichês.

Apesar de tudo isso, aqui temos um Christian mais aberto e até apaixonado. Pra quem ansiava por conhecer melhor os conflitos internos dele, aqui a autora foi além e entregou os maiores segredos desse personagem quase complexo. A parte boa é mesmo entregando tanta coisa, ainda existe um oceano de coisas que gostaríamos de conhecer sobre ele de tão bem trabalhado desde o primeiro livro. Ana por sinal consegue se abrir mais também, expondo medos que não havíamos conhecido. A melhora na comunicação dos dois e os momentos de confissões de Christian realmente são pontos altos da história. Devo assumir que uma cena onde Grey realmente conta o seu grande segredo (não tão segredo assim, vai!) é um momento tão tenso e chocante que se tornou o meu favorito. Mesmo não sendo perfeito, por todos os problemas que citei estarem ainda presentes.

E isso nos leva as cenas íntimas do casal. Diferente do primeiro capítulo da história, aqui os momentos de conversa entre eles são constantes o que torna real a ideia de relacionamento "normal" deles. Porém não pense que a autora deixou de lado as cenas de sexo mais pervertidas e quentes, elas ainda estão aqui, mas regadas de amor que enriquecem esses momentos.

Enfim, esse livro serve para nos mostrar a ansiedade da autora em expor ideias. Tudo aqui é importante, tudo é urgente e tudo serve para gerar tensão e expectativa no leitor. Porém essas ideias na sua maioria, cansam e atrapalham a história. Falta de desenvolvimento é um ponto gravíssimo, principalmente quando a pretensão é criar uma gama de detalhes e conflitos como aqui. Então, por favor, não espere uma grande obra.

Ps: Se resolver comprar, escolha a nova edição lançada para aproveitar o lançamento do filme. Além de contar com fotos dos bastidores das gravações, conta também com o primeiro capítulo escrito pela perspectiva de Grey.


Crítica | Os Visitantes

O  professor e experiente jornalista Bernardo Kucinski é hoje reconhecido no meio literário, principalmente, pelo seu romance de estreia K.: Relato de uma Busca, publicado em 2011, e consagrado como uma das melhores peças literárias sobre a ditadura militar e suas sequelas, partindo do desaparecimento de sua irmã, Ana Rosa Kucinski – no romance, filha do protagonista.  O autor, que até o momento já havia publicado livros de economia e política, teve também editada sua produção de contos e novelas. Infelizmente, dessas outras obras, nenhuma abalou tanto quanto o romance.

Agora, sob a égide da Companhia das Letras (que republica agora em agosto também sua maior obra), Kucinski publica mais uma novela: Os Visitantes. Depois de enveredar pelo gênero policial, com muitos tropeços, em Alice, a opção atual é estruturalmente mais segura. Narra a partir do ponto de vista do escritor de K., numa espécie de realidade alternativa de sua própria situação. A cada curto capítulo, um nova pessoa vem bater à porta do escritor e perturbar-lhe, seja para apontar erros no romance, discutir a exposição dos personagens retratados, como suas atitudes são descritas… “Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu”, epígrafe dessa novela e do romance, torna-se mais que um esclarecimento, um motivo, um embate, uma posição que agora é voltada contra seu próprio criador.

Segundo Kucinski – o de carne e osso – de todos os visitantes, apenas o primeiro, uma senhora sobrevivente do Holocausto, não existiu realmente. Foi, na verdade, um colega historiador que lhe confrontou a afirmação de K. de que até os nazistas guardavam o registro de todas as suas vítimas. O que não é verdade. No primeiro capítulo, o escritor narra que, depois do encontro com a senhora, foi buscar informações na Wikipédia e, em seguida, correu atrás de mais obras de Primo Levi. Surpreende encontrar esse tipo de ação quando se conhece a biografia do autor. O artifício da “ficção” ressurge para provocar proporcional dúvida.

Vale ressaltar que nesse mundo, K. não é um sucesso. A cada capítulo-crônica o narrador se emburra por não ver menção nenhuma a seu romance em jornal nenhum. Apenas o nicho retratado na obra (a comunidade judaica, as colegas de sua irmã desaparecida, parentes e colegas uspianos)  parece ter notado sua existência: uma provocação ao nosso país-enigma, não só quanto à construção da narrativa da ditadura, como em relação à recepção de obras que a contestem 30 anos depois do fim desse período da história brasileira – hoje, um cenário absurdo de florescimento da anti-política.

O que conferiu a agilidade seca e chamou a atenção no primeiro romance de Kucinski foi fruto da sua formação jornalística. Preciso, cada capítulo tinha um objetivo, era uma progressão – mesmo que ilusória – da busca dos desaparecidos. Sua inclinação kafkiana, como é discutido em um dos capítulos da novela, (não só pelo uso da abreviação K. para o protagonista, como pela sua brevidade, aspecto labiríntico e total desesperança) retorna através da justaposição dos episódios tenuemente conectados, especialmente quando identidade e reconhecimento nas páginas do livro é a razão da visita. Os Visitantes é um outro relato da mesma busca de K., a busca pela verdade, forçadamente interessada nos mecanismos sistemáticos por debaixo do regime, visto que as chances de realmente encontrar a filha desaparecida são quase nulas.

Bernardo Kucinski afirma em entrevistas que sua dedicação à literatura ficcional funciona como uma sobrevida. As páginas derradeiras da novela, no entanto, parecem uma despedida. O destino da filha de K. e de seu marido são reconstruídos em “Post Mortem”. Até lá, a história se sucede da maneira que anuncia o título “Sangue no escorredor de pratos” – lavando roupa suja. Admitindo conscientemente ou não as problemáticas invocadas pelos visitantes, importa é que o narrador incorpora as autocríticas e reflete sobre a complexidade ética do raconteur dos acontecimentos que “desafogou” em seu livro. Porém, mesmo com apenas 90 páginas, como um todo, falta fôlego à articulação da prosa de Kucinski, deixando pontas soltas pelos curtos capítulos. Não equivale-se aos melhores momentos de seu aclamado romance.

Sua desilusão emociona, mas quem procura algo profundo tematicamente vai encontrar em Os Visitantes uma reiteração estilística anódina. Firme em suas convicções políticas, Kucinski parece frágil em seu processo de reconstruir a História ao reconstruir suas histórias e experiências. De tanto alterar suas perspectivas, desgastou-se. Mas o assunto em si, para todos os leitores, não pode ser deteriorado de forma alguma.

Os Visitantes (2016)
Autor: Bernardo Kucinski
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 88


Crítica | Santa Clarita Diet - 1ª Temporada

Há algo estranhamente cômico e mórbido na nova série da Netflix, Santa Clarita Diet, estrelada por Timothy Olyphant e Drew Barrymore. Sua premissa pode não ser uma das mais originais, mas o modo literalmente visceral como ela é tratada é o que chama a atenção aqui: a história gira em torno de Sheila, uma corretora de imóveis que vê sua vida virar de cabeça para baixo ao se transformar numa morta-viva.

A ideia parece ordinária, a priori, principalmente se nos recordarmos de outras produções audiovisuais que retrataram o mesmo tema com perspectivas diferenciadas: The Walking Dead, cujas criaturas fazem parte do núcleo antagonista, e iZombie, que traz uma detetive zumbi como personagem principal, são séries completamente divergentes entre si e que fornecem outros pontos de vista sobre o mesmo assunto. De que modo Santa Clarita Diet conseguiria superar ou entregar uma narrativa original utilizando-se do mesmo prisma narrativo?

Primeiramente, podemos dizer que o show criado por Victor Fresco tem uma mitologia própria. Apesar de não ser ambientado num cenário pós-apocalíptico ou numa sala legista, a narrativa absorve estórias antigas e medievais que se relacionam a aparições de mortos-vivos na sociedade e de como isso ocorria. Diferentemente do que achamos, o modo de contaminação não é explorado, apesar da existência sim do “paciente zero” - Sheila - a qual é incumbida com tais habilidades, que mais tarde se mostram um fardo.

A série se passa no subúrbio de Santa Clarita, um local aos moldes de Wisteria Lane (Desperate Housewives), dentro do qual mora o casal principal. Eles são corretores de imóveis que de repente se deparam com mais um obstáculo - como se não bastasse a impetuosidade e a vicissitude de seus vizinhos inconstantes: num dia qualquer - e já aqui somos apresentados ao incidente incitante da trama principal - Sheila literalmente põe as tripas para fora e começa a se alimentar de carne crua, além de tornar-se imune a ferimentos. Mas, ao contrário do que se espera, ela não se transforma numa máquina de caçar incontrolável; muito pelo contrário, continua vivendo sua vida normalmente - exceto por alguns acessos de impulso e alguns sucos duvidosos com cor de sangue.

A outras narrativas se desenvolvem através disso. Temos, além do casal principal, a filha Abby (Liv Hewson) e seu amigo Eric (Skyler Gisondo), que tentam ajudar a família a enfrentar todos os novos problemas e as suspeitas levantadas por um dos vizinhos, Dan (Ricardo Antonio Chavira), policial do distrito da Califórnia cuja principal nuance de personalidade é a desconfiança exacerbada e o machismo destilado. Santa Clarita traz o seu potencial sim nos personagens e, como supracitado, numa nova vertente para um tema considerado batido, mas falha no quesito identidade.

É preciso saber que o desenrolar das situações é acompanhado do mais puro gore - um gore talvez tão excessivo que faça grande parte dos espectadores prefira permanecer com a sutileza de obras semelhantes a mergulhar em cenas tão explícitas quanto essas. Não estamos falando de cabeças cortadas, mas sim de sequências primitivas e cruas que são capazes de transgredir o próprio significado da palavra “escatológico”.

A série parece não ter uma estruturação, quando falamos de roteiro. Ao que o trailer e os featurettes indicavam, a história principal deveria seguir os passos de uma tragicomédia híbrida com thrillers de perseguição. Sheila e seu marido, Joel, deveriam - ao menos em teoria - adaptar suas rotinas de corretores de imóveis à caça de carne fresca para saciar a vontade da protagonista e mantê-la apta para ainda conviver em sociedade. Mas não é isso o que acontece, tirando em alguns poucos episódios. Tudo permanece num âmbito mais intimista que não se alastra para uma arquitrama - e o foco começa a existir nos momentos finais, quando a preocupação do corpo físico de Sheila começar a se decompor torna-se motivo de procurar ajuda.

A comédia é bem utilizada, principalmente se levarmos em consideração a grande experiência que Barrymore e Olyphant têm dentro deste gênero. Suas atuações podem não agradar a todos, mas não se baseiam em estereótipos de gênero, mantendo uma sutileza agradável para construir os personagens e fornecer mais endossamento e fidelidade aos seus arcos. Sheila é a matriarca da casa que se transforma, de uma para outra, numa rebelde sem causa imprevisível e cujo lado racional parece tê-la abandonado junto com a vida. Joel tenta ignorar essa brusca mudança ao mesmo tempo em que pensa num futuro próximo e nas possíveis consequências de tê-la dentro de casa. Através dos episódios, percebemos que ele não sabe se a perdeu ou se ainda a tem - apesar de ser uma morta-viva. Durante os trinta minutos do episódio piloto, cuja capacidade de envolver o público não atinge as expectativas necessárias, todos estão muito confusos, tentando compreender como suas vidas culminaram numa virada inesperada.

É quase impossível dizer que o drama existe em Santa Clarita, visto que a maioria de seus diálogos utilizam do foreshadowing ou do autoexplicativo para a atmosfera de cada uma de suas cenas - e tal estética funciona a maior parte do tempo. Entretanto, não é de se esperar que as construções narrativas mais densas e sóbrias venham carregadas de fórmulas pré-existentes - e aqui ares novelescos adornam estes momentos. Temos, por exemplo, Joel e Sheila conversando sobre seu relacionamento e sobre tudo o que aconteceu de forma a chegarem num consenso e finalizarem os clímaces em poucos segundos. Nossa conexão com os personagens é sustentada pelos escapes cômicos, mas de nenhuma forma são endossados pela seriedade de alguns pontos a serem explorados - em teoria - pela premissa.

Santa Clarita Diet é uma série original. Seus elementos retomam outras obras, como já dito, e alguns aspectos ainda precisam ser trabalhados. Mas confesso que o season finale me deixou na expectativa para acontecimentos futuros - e creio que, caso venha a ser renovada, poderá mergulhar ainda mais numa mitologia e em arcos ainda não tão bem explorados assim.

Santa Clarita Diet - 1ª Temporada (Idem, 2017, Estados Unidos)

Criado por: Victor Fresco
Direção: Ruben Fleischer, Marc Buckland
Roteiro: Victor Fresco, Tamra Davis, Lynn Shelton, Ken Kwapis
Elenco: Drew Barrymore, Timothy Olyphant, , Liv Hewson, Skyler Gisondo, Ricardo Antonio Chavira, Mary Elizabeth Ellis, Richard T. Jones
Gênero: Comédia
Duração: 30 min.

https://www.youtube.com/watch?v=qobxBv9x3Qk