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Crítica | Aliados

No atual período do cinema americano, é perfeitamente comum sentir uma dose de saudades e nostalgia em relação ao passado. O público pode sentir isso diante do estilo de narrativa mais acelerado e violento do que o comum, e até cineastas por trás das câmeras podem voltar seu estilo para algo mais saudosista. E isso parece estar tornando-se cada vez mais popular, bastando observar como La La Land: Cantando Estações, um musical que presta homenagens à Era de Ouro da Hollywood clássica, é o grande favorito ao Oscar deste ano ou como grandes franquias hollywoodianas (em especial os dois últimos Star Wars) tentam desesperadamente captar o espírito de grandes clássicos do passado.

Nessa linha de raciocínio, Robert Zemeckis é um cineasta que segue muito tradicional, e com Aliados ele claramente nos mostra o quanto é apaixonado por Casablanca, o cinema de Alfred Hitchcock e por thrillers de espionagem dos anos 40, tanto pelo setting da história quanto pela natureza de sua narrativa. E ao balancear o clássico com uma técnica moderna e inconfundivelmente própria, Zemeckis entrega um projeto surpreendentemente eficiente e que eu não sabia que precisávamos.

A trama parte de um roteiro original de Steven Knight, ambientando-se no auge da Segunda Guerra Mundial em 1942. Nesse cenário, o espião canadense Max Vatan (Brad Pitt) é enviado para Casablanca, onde fará contato com a agente francesa Marianne Beauséjour (Marion Cotillard) para que juntos conspirem o assassinato de um influente embaixador alemão. Surpreendentemente, essa é apenas a premissa do primeiro ato do longa, que então revela-se algo muito mais intimista e devastador quando o casal acaba se apaixonando e muda-se para Londres, onde se casam e têm uma filha bebê. Porém, a lealdade dos dois é testada quando a central de inteligência britânica desconfia que Marianne seja uma espiã alemã, algo que Max fará de tudo para provar sua inocência.

É um roteiro sem grandes ambições, afinal já vimos esse tipo de história ao menos um milhão de vezes – curiosamente, o próprio Brad Pitt já protagonizou uma narrativa similar de espionagem e casamento em Sr. & Sra. Smith. Esse provavelmente é ponto mais frágil da produção, ainda que eficiente, já que é uma história batida e que é movida através de alguns clichês, principalmente na relação inicial do casal protagonista e – principalmente – na resolução de algumas pontas soltas e muletas narrativas que fazem a ação se mover. Estruturalmente, é até estranho a transição entre o primeiro ato fortemente centrado na missão de guerra e o restante centrado na paranóia de Max quanto à real natureza de Marianne, mas confesso que até o fato de o assassinato ter sido executado de forma tão eficiente (“Nem estamos sendo seguidos!”, exclama Marianne durante a fuga de carro dos dois) é justificado posteriormente pela reviravolta final.

Felizmente, as coisas podem sair muito diferentes quando um roteiro razoável é entregue nas mãos de um mestre indiscutível, e que espetáculo cinematográfico Robert Zemeckis é capaz de entregar aqui. Todos os conhecedores de seu cinema sabem que o diretor é absolutamente criativo e inventivo com seus enquadramentos e posicionamentos de câmera, e fica bem claro que estamos assistindo a um filme de Zemeckis logo nos segundos iniciais, quando o plano de um pôr do sol no deserto é lentamente invadido pelos pés de Max aterrissando de pára-quedas através de um tilt dinâmico e efeitos visuais elegantes. De forma similar, temos suas tradicionais brincadeiras com a câmera dentro de espelho, atravessando carros digitais e os discretos planos longos que começam em um ponto e terminam em outro inimaginável – vide a aterrissagem de um avião que tem início na lanterna piscando de um guarda. Definitivamente foi mais trabalho para o diretor de fotografia Don Burgess.

Essa mise en scène elaborada também contribui para o grande trunfo do filme, que é seu inesperado mergulho na paranóia. Do momento em que Max recebe a tarefa de testar Marianne e eliminá-la caso as suspeitas se confirmem, o filme transforma-se em um thriller do melhor sentido da palavra, onde Zemeckis nos revela também ser um dedicado aluno do cinema de Alfred Hitchcock. Max passa a observar Marianne através de cantos da porta e reflexos no espelho (sempre um recurso competente para ilustrar a dualidade), e a câmera quase voyerística de Zemeckis nos faz lembrar da obsessão de James Stewart em Um Corpo que Cai. Os planos sequência também contribuem para a sensação de tensão e até terror, como quando Max caminha pela festa lotada em sua casa, sempre de olho no comportamento de Marianne e nas diversas figuras suspeitas com quem ela parece interagir, enquanto a câmera de Zemeckis o segue, circula e explora as diferentes possibilidades do ambiente.

De maneira similar, o trabalho de som é absolutamente impecável para essa atmosfera dúbia e inconstante, em especial pelo momento em que Max aguarda uma ligação de seus superiores na inteligência britânica, e os quase inaudíveis ponteiros do relógio na cabeceira logo aumentam para batidas esmagadoras e torturosas, e o efeito é bem equlibrado com a tensa música de Alan Silvestri. Para um efeito mais simbólico, reparem no inteligente raccord (quando um áudio começa em um plano e termina em outro) quando Max coloca sua mão na barriga gestante de Marianne, e o som de bombardeios invade a tela antes de finalmente cortarmos para a batalha que o foley sugerira, já nos indicando o tipo de vida que o casal está condenado a seguir: marcado pela guerra e a violência.

E que violência. Não é sempre que Robert Zemeckis conduz um filme de censura R, mas ele certamente o faz com estilo e inteligência. As cenas de ação são intensas e não optam pelo tipo de combate “limpo”, então vemos o sangue saindo de corpos baleados e sentimos cada pancada, disparada e golpe ao longo de tais sequências, outro bom fruto da edição de som potente do longa. E ainda assim, Zemeckis jamais transforma a experiência em um festival gore, já que algumas das mortes que mais sentimos ocorrem offscreen, e são ainda mais impactantes do que poderíamos imaginar; vide a cena em que Max entra em uma joalheria para executar um suspeito, e somos deixados do lado de fora, aguardando com nada além do som da chuva intensa; que demora um bom tempo para ser cortada pelo som do disparo. O susto que levamos durante a explosão de um tanque ou até a revelação de um rosto desfigurado são momentos memoráveis que Zemeckis é hábil ao brincar com expectativas: o tanque pela panorâmica que acompanha Max preparando a granada antes de seu lançamento, e o rosto escondido pelo enquadramento do personagem – um irreconhecível Matthew Goode.

Mas grande parcela do público provavelmente se interessará pelo elenco, especialmente pela junção dos talentos de Brad Pitt e Marion Cotillard. Pitt surge mais contido e cool, evidentemente emulando um aura charmosa de Humphrey Bogart durante boa parte do longa, transformando tudo isso em uma performance mais furiosa e fechada quando as suspeitas em relação à Marianne tem início. Já Marion Cotillard é o grande destaque em termos de atuação, tendo uma presença em cena magnética e carismática. É Marianne quem apresenta a Max o universo de Casablanca e os perigos da missão, o que rendem momentos divertidos que a atriz é definitivamente capaz de expressar bem. A partir do momento em que o arco de suspeita em torno da personagem começa, Cotillard mantém a mesma nota de sua atuação, tornando praticamente impossível para Max e o próprio espectador saber no que acreditar. A desconfiança se dá a partir de alguns flashbacks de frases chave de Marianne durante a missão inicial, como quando menciona que “fingir emoções é sua especialidade”, já dando um toque de dualidade através de uma performance já estabelecida. Um excelente trabalho, sem dúvida.

Já a química dos dois é algo mais complicado, já que realmente não é uma relação que explode nas telas. É funcional, mas isso se dá mais por decisões estéticas do que pela interação entre os dois, vide a excelente cena de sexo dentro de um carro em meio a uma violenta tempestade de areia no deserto – mais uma boa simbologia do tipo de relação entre os dois. Porém, a baixa no romance não é nada que realmente prejudique o suspense do filme, muito menos o dramático clímax que certamente demonstra a coragem dos realizadores em seguir as consequências mais brutais de sua proposta, em uma das imagens mais emblemáticas do cinema recente de Robert Zemeckis.

Com um pé no espírito saudosista do clássico cinema hollywoodiano dos anos 40 e outro em uma abordagem moderna de alta qualidade, Aliados é um filme surpreendente que nos lembra o prazer de um bom thriller e o frio na barriga que uma boa condução é capaz de fazer. Nas mãos de um mestre como Robert Zemeckis, até um roteiro imperfeito é capaz de fazer maravilhas, e eu sinceramente espero que Zemeckis não mude nunca.

Aliados (Allied, EUA – 2016)

Direção: Robert Zemeckis
Roteiro: Steven Knight
Elenco: Brad Pitt, Marion Cotillard, August Diehl, Jared Harris, Lizzy Caplan, Simon McBurney
Gênero: Drama, Suspense, Guerra, Espionagem
Duração: 124 min

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Publicado por Lucas Nascimento

Estudante de audiovisual e apaixonado por cinema, usa este como grande professor e sonha em tornar seus sonhos realidade ou pelo menos se divertir na longa estrada da vida. De blockbusters a filmes de arte, aprecia o estilo e o trabalho de cineastas, atores e roteiristas, dos quais Stanley Kubrick e Alfred Hitchcock servem como maiores inspirações. Testemunhem, e nos encontramos em Valhalla.

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