Fazer Cinema é um ato de coragem. Duvida? Estranhamente, os grandes filmes da nossa História recente, aqueles que realmente são memoráveis dos últimos dez anos, precisam de um esforço tremendo para sem produzidos mesmo que seu custo seja nem 1/8 do orçamento total de um blockbuster de verão cuja qualidade seja questionável.
Porém, o que assusta no caso de Até o Último Homem não é exatamente o fato de 12 produtoras terem sido necessárias para que esse filme viesse a existir, mas sim a necessidade de 12 produtoras bancarem um projeto de Mel Gibson. Doze organizações, incluindo ele próprio, injetando dinheiro para ressuscitar Gibson como cineasta justamente em filme épico de Segunda Guerra – um tema sempre bastante rentável.
Gibson, galã dos anos 1990, já tinha demonstrado sua proeza técnica e criativa com diversos longas estupendos como Coração Valente, A Paixão de Cristo e Apocalypto, apresentando um estilo muito peculiar e apurado para com o assunto que seus filmes retratavam. Após um declínio ferrenho pelo alcoolismo e passando por divórcios motivados por agressões físicas, Gibson entrou na lista negra de Hollywood. Porém, como comprovado, o tempo cura tudo.
O infame e brilhante diretor retorna ao seu merecido posto de glória profissional, pois Até o Último Homem é um longa catártico que conversa com sua história pessoal tentando redimir os pecados do passado. Porém, ele não vale somente pela história prévia de Gibson, mas sim da admirável proeza realizada pelo soldado Desmond Doss: ir para a Guerra mais violenta de nossa história e não disparar uma única bala, conseguindo, assim, salvar mais de 70 vidas de companheiros feridos que agonizavam no campo de batalha.
Até o Último Homem
O roteiro da dupla Schenkkan e Knight tem a principal preocupação de explorar ao máximo o personagem protagonista. Para isso, é importante ressaltar o ferrenho peso ideológico e moral inusitado, raro de se ver, em filmes de grande destaque. O tratamento que deram para a história funciona normalmente como um ótimo épico de guerra, mas Até o Último Homem é muito mais que isso: é uma grande alegoria cristã. E isso é bem fácil de notar, pois diversas passagens do filme fazem de Desmond Doss um Jesus Cristo.
Funciona perfeitamente dos dois modos. O breve primeiro segmento do longa acompanha a infância de Doss e suas traquinagens com seu irmão. Ali, a moral cristã e a mensagem de antiviolência já se fazem presentes. O evento ocorrido norteia a ética do personagem pelo restante de sua vida.
Após estabelecido esse ato bem enxuto, mas muito eficiente – inclusive em já indicar o enorme conflito de abusos familiares cometidos por Tom, pai de Desmond e veterano da Primeira Guerra, ainda muito é explorado da vida pré-guerra do protagonista. Schenkkan e Knight basicamente vão na contramão dos roteiros sobre dramas de guerra o que, novamente, deixa o longa mais peculiar.
É um belo acerto para o formato do storytelling, pois o espectador se torna bastante próximo de Desmond, gerando grande empatia. Nessa ótima primeira metade conhecemos o homem, suas convicções, sua rotina, suas paixões, seus medos, seu senso de dever. É realmente bem construído e logo, assim que sua escolha de tomar parte e decidir salvar vidas na Guerra surge, sua motivação é clara como água. Na direção, Gibson trabalha isso muitíssimo bem ao pegar detalhes do olhar atemorizado de Desmond ao ver veteranos mutilados chegando em sua cidade.
O sentimento de sacrifício e grandeza também já surgem no primeiro momento, pois os roteiristas elaboram um belo romance entre Desmond a enfermeira do hospital local, Dorothy. Com os pilares do filme cravados com muito fundamento, além de oferecer um pequeno mistério e o romance leve para o espectador, o texto passa por um amadurecimento. Na verdade, a estrutura do longa é a clássica: Primavera, Verão, Outono, Inverno ou, se preferir, Infância, Adolescência e idade Adulta.
Claro que nada é tão simplista assim. Nos segmentos mais coloridos e leves do filme, há o desenvolvimento do intenso drama entre Desmond e seu pai que se opõe ferozmente à ida de seu filho para o front. Depois de expor sua intenção insana, de ir à guerra como médico sem portar qualquer arma, entramos no amadurecimento do protagonista.
O Leviatã
Neste segundo ato, com o ingresso de Desmond ao exército americano, o roteiro aborda conflitos mais intensos, deixando um pouco de lado a ênfase na religião para jogar contra a coerção estatal diante a liberdade de um terceiro – mesmo que a proposta de ir para a guerra sem a intenção de matar alguém ou de portar armas de fogo seja perfeitamente legal.
Assim como o sólido primeiro ato, os roteiristas mantêm a escrita impecável justamente por nos manter quase sempre no ponto de vista de Doss. Aliás, Até o Último Homem é um longa tão inteligente que praticamente condiciona o espectador a virar uma extensão direta do protagonista. Logo, nosso olha amadurece conforme o personagem cresce e passa por maiores desafios.
Os roteiristas até enganam bastante com os primeiros e divertidos minutos no acampamento militar com o bullying de sargento Howell nos recém recrutados. Mesmo que seja uma opressão que flerta com Full Metal Jacket, é um momento de comicidade já apresentando satisfatoriamente os outros personagens que fazem parte do batalhão de Doss. Como de praxe, o personagem conquista um rival que também recebe um tratamento satisfatório ao longo da história.
Todavia, o principal oponente de Doss nesse segmento realmente é o exército americano. O leviatã governamental ao se deparar com a anomalia do soldado que não quer empunhar armas, tenta massacrá-lo com opressões diretas e indiretas. Trava-se então, um embate Davi vs Golias no qual o protagonista não se resigna de forma alguma mesmo que diversas provas contra sua fé, sua fibra moral e principalmente de sua segurança enquanto indivíduo são colocadas à prova.
O personagem, que já era ótimo, torna-se ainda melhor. Isso se deve por conta do tratamento inteligente dos roteiristas não apostarem tanto em melodrama pesado, mas optam em martirizar o personagem com ações de seus colegas tão imorais quanto as dos inimigos que enfrentarão em Okinawa.
Guerra
Após toda a burocracia da batalha contra o Estado, Doss finalmente vai à guerra para salvar vidas. Como esperado, o segmento é o mais silencioso de toda a obra. Aqui, é praticamente impossível desassociar o ótimo texto com o renascimento de Mel Gibson como cineasta. As coisas fluem de forma tão sinergética que se complementam belissimamente.
Nisso, o trabalho de contrastes visuais fica cada vez mais apurado. Logo que Doss desembarca, Gibson aposta no clichê sempre eficiente da troca de olhares de uma tropa novata ante a melancolia e o vazio emanado pelo por batalhões veteranos mutilados. O seguinte já acontece logo após esse breve momento de calma antes da batalha mais sangrenta de muitos filmes de guerra.
Para isso é importante relembrar de momentos chave de alegria da vida de Doss: os passeios na montanha em Virgínia. A montanha, sempre convidativa, banhada e abençoada pela luz do sol é encarada como uma presença divina para o protagonista. Um dos locais mais sagrados que evocam espiritualidade e contato com a exuberante natureza. Ali acontecem momentos significativos como um abraço carinhoso no irmão e o primeiro beijo do namoro.
Através de enquadramentos similares, Gibson evoca esse pavoroso contraste, pois o campo de batalha de Hacksaw se encontra no topo da montanha morta, podre e cinzenta. A montanha não é convidativa com seu formato íngreme avassalador. Sua escalada já é uma batalha por si só. Seu cume subverte a simbologia religiosa de outrora. A montanha sagrada vira a montanha maldita onde só o ódio e a violência prevalecem.
Com essas simbologias por si, Gibson eleva seu filme a estado de arte, porém muito mais acontece em Até o Último Homem. Até então, o diretor mantém pulso firme com encenação apurada, enquadramentos ricos ordenados em decupagens bastante diversificadas. Porém, nada supera o estonteante trabalho de câmera e sincronia de encenação que acontece assim que a guerra começa.
O momento do início do tiroteio é marcado pelo terror explicito de um grito. Até então, assim como Doss, o espectador não está nem um pouco preparado para o que ocorrerá depois da gritaria. Gibson praticamente desperta Doss e a plateia com esse susto. E então o horror nos pega completamente desprevenidos. É um festim de sanguinolência e stress como se viu poucas vezes no cinema. A abertura de O Resgate do Soldado Ryan é light se comparada com a longa sequência de batalha que se sucede.
Soldados são rasgados, explodidos, queimados, esfaqueados, mutilados a todo momento e Gibson mostra tudo com o sentimento cru e opaco da guerra. Aqui também é a hora da edição de som brilhar com efeitos sonoros que emanam o impacto de cada bala que atravessa o crânio de um soldado, ou da ignição de um lança-chamas ou do som abafado de uma granada.
Assim como nos outros segmentos, Até o Último Homem se renova mais uma vez com os resgates de Doss na montanha. Diversas vezes, Gibson utiliza a encenação para lembrar os milagres de Cristo nas ações do franzino soldado. Seja nos Lázaros que Doss salva ou quando tira a lama dos olhos de um soldado que acreditava estar cego. Talvez, os únicos excessos cometidos pelo diretor estejam em alguns enquadramentos com slowmotions para enfatizar atitudes heroicas.
Enfim, Gibson consegue aliar a competência em criar passagens muito violentas com a doçura simples do protagonista encarnado tão maravilhosamente bem por Andrew Garfield.
Acredite, a indicação ao Oscar é mais que merecida. Garfield se torna Desmond Doss em tudo. O sotaque carregado, os olhares sempre muito adequados a cada situação, o sorriso meio boboca, um semblante de pureza e calma difíceis de reproduzir de modo tão genuíno sem nada parecer forçado. É uma atuação mais expansiva que a de outros concorrentes a estatueta, mas que não é diminuída pelo talento da concorrência. Desmond Doss só funciona sem cair no piegas justamente pelo equilíbrio sofisticado do ator.
Don’t Tread On Me
Raramente há um filme como Até o Último Homem em produção. Seja pelo caráter de sua mensagem que não se acovarda em mostrar suas vertentes cristãs e, muitas vezes, libertárias. Como já dito antes, não se trata de um longa limitado apenas por isso. De tantas qualidades cinematográficas envolvidas, da proeza da realização em recriar a guerra em seus meticulosos detalhes, além de exibir diversas naturezas do espírito humano, creio que dificilmente ficará decepcionado com este filme.
É a celebração da transformação causada justamente por um indivíduo, sua ideologia e seus atos pacíficos. De como em um ambiente tão inóspito, estressante, pútrido, um vale da sombra da morte, pode acontecer o mais belo dos milagres: o amor ao próximo.
Até o Último Homem (Hacksaw Ridge, 2016 – EUA, Austrália)
Direção: Mel Gibson
Roteiro: Robert Schenkkan e Andrew Knight
Elenco: Andrew Garfield, Teresa Palmer, Vince Vaughn, Hugo Weaving, Sam Worthington, Rachel Griffiths, Luke Bracey
Gênero: Drama de Guerra
Duração: 139 min
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