Crítica | Citizenfour
Eu nunca escrevi uma crítica para documentário, mas o que encontrei em Citizenfour foi incapaz de me deixar calado. Não sei exatamente como se analisar uma obra não ficcional, quais os critérios, os pontos que o enfraquecem ou o destacam de uma matéria jornalística ou o que torna um documentário algo realmente especial… Mas acho que o longa arrebatador (merecidamente premiado com o Oscar) de Laura Poitras me deu uma noção eficiente a respeito.
Para quem não sabe, o documentário relata o escândalo dos vazamentos de documentos e dados feitos pelo funcionário da CIA Edward Snowden, revelando que diversas empresas americanas administradas pela NSA espionam ligações, mensagens e quaisquer outros tipos de comunicação de seus clientes – não só dos EUA, mas de países de todo o mundo.
Um dos fatores que mais me surpreendeu em Citizenfour, foi que eu não sabia que o vazamento de Snowden tinha sido feito especialmente para este documentário. A série de entrevistas em Hong Kong que Laura Poitras e sua equipe registram ocorrem em Junho de 2013, e acompanhamos de maneira quase descontraída como Snowden vai expondo o trabalho antiético da NSA; ou melhor, não muito descontraída, já que frequentemente a paranoia invade o quarto de hotel e encontramos o protagonista checando seu telefone para garantir que não está grampeado ou que um simples teste de alarme de incêndio não é nada além disso.
Aliás, esse é o elemento que mais me agradou aqui: o clima. O documentário é montado e executado como um thriller de espionagem remanescente da era de John Le Carré e os clássicos da Hollywood dos anos 70, promovendo sempre uma atmosfera suspeita e o pressentimento de vigilância (“Parei porque descobri que estava sendo seguida”, diz um dos cartões em certo trecho). A diferença é que tudo aqui é real, e o impacto é muito mais forte. A câmera às vezes escondida, insegura e os textos/transcrissões de e-mails que substitutem imagens que não seriam possíveis de serem registradas ajudam a construir uma tensão constante, o medo de um inimigo invisível – o Big Brother de George Orwell – que estaria em todo lugar.
Mas ainda assim, Proitas consegue ser acertadamente cinematográfica nos momentos em que a história permite. Chega a ser meio paradoxal, encontrar a oportunidade de dramaturgia na vida real, mas é o que acontece quando, por exemplo, a câmera acompanha a longa preparação de Edward Snowden antes de deixar o hotel pela primeira vez depois de seu vazamento histórico. O silêncio do quarto, a televisão num volume mínimo e o gesto rotineiro de Snowden passando gel no cabelo enquanto busca uma forma de sutilmente mudar sua aparência são todos os elementos necessários para jogar o espectador naquela situação, entrar na pele de Snowden e sentir seu nervosismo.
No sentido jornalístico, o documentário também é impecável. Poitras reúne trechos de audiências públicas da NSA (que nega até o fim qualquer tipo de espionagem a dados pessoais de seus clientes), palestras, leituras e programas da CNN que acompanham a imediata repercussão dos arquivos de Snowden – e acompanhar sua reação ao assistir a televisão (um misto de orgulho/medo estampam suas feições) é algo realmente único. Aliás, fiquei também impressionado com a quantidade de cenas que trazem o Brasil como pano de fundo, trazendo até o jornalista Glenn Greenwald soltando um português eficaz durante uma assembléia em Brasília, enquanto discute que o país está entre os alvosa da espionagem americana.
Citizenfour me impactou como poucos documentários que vi nos últimos anos, impressionando com a linguagem que encontra para conciliar seus relatos jornalísticos de um escândalo global, com a criação de uma atmosfera quase hollywoodiana, que poderia facilmente rotulá-lo como um thriller de espionagem. Mas é real, o que o torna ainda mais fascinante. E assustador.
https://www.youtube.com/watch?v=rHaWhUjV96M
Crítica | Capitão América: Guerra Civil - O MCU se divide em dois
Com Spoilers
A Concorrência Reage
O 11 de setembro de 2001 e seus desdobramentos geopolíticos não mudariam apenas a nossa percepção de segurança, incutiriam a paranoia com o terrorismo e alterariam significativamente as relações dos países do mundo inteiro. A data histórica mudou também a arte, seja na literatura ou no cinema. Filmes de ação se centrariam mais em assuntos como segurança nacional, guerra no estrangeiro ou teorias de conspiração. Nessa onda veio a trilogia Bourne, Guerra ao Terror, O Reino, Salt, Transformers, Cloverfield, Código de Conduta e até mesmo o primeiro Homem de Ferro.
Não somente o cinema de ação e espionagem foi mudado, mas também as histórias em quadrinhos que acompanharam de perto todo o fervo e o medo gerado pelas políticas pós 11 de setembro. Isso tange principalmente à Marvel que já apresentava uma linha editorial muito atenta aos acontecimentos do mundo real para transportá-los para as suas fabulosas histórias em quadrinhos.
Muito inspirada então pelos atos do governo Bush, a Marvel planejou a maxissaga de Guerra Civil com muito cuidado. Algo pensado desde A Queda: Vingadores quando o super-grupo se fragmentou. Passamos então por Guerra Secreta, um evento de invasão que remete diretamente à invasão americana ao Iraque sob a justificativa da existência de armas de destruição em massa em posse de Saddam Hussein. Já para resolver a participação dos X-Men em Guerra Civil, vem Dinastia M, uma saga que quase leva à extinção do grupo mutante no universo Marvel.
Já envolvendo a saga, mas através das tie-ins, a editoria já remove de jogo o Hulk e incute o sentimento de insegurança e danos colaterais com as ações assassinas do gigante esmeralda em Las Vegas. A ausência de Bruce Banner na saga é justificada pela excelente HQ Planeta Hulk. Com um Ragnarok destruindo Asgard, o Thor original também fica fora do conflito. Eliminando os dois seres superpoderosos e deixando Dr. Estranho meditar nas montanhas, a Marvel conseguiu sustentar uma base muito crível para uma de suas melhores sagas, senão a melhor.
Levando o debate político para uma esfera muito adulta, a casa das ideias retoma conceitos já apresentados em Watchmen: quem vigia os vigilantes? Seguindo nesse impasse, após eventos catastróficos de uma ação impensada dos Novos Guerreiros, a comunidade de mascarados é dividida entre ter a profissão regularizada ou não – algo que, de alguma forma, cerceia a liberdade deles agirem por si próprios confiando em seu próprio compasso ético e moral.
O próprio debate em torno do polêmico Ato de Registro é inspirado diretamente pela Lei Patriótica (USA PATRIOT Act), um conjunto de medidas sancionadas por George W. Bush imediatamente após o 11/09 que permitiu o Estado americano investigar quaisquer indivíduos que tivessem a menor suspeita de estarem envolvidos com terroristas sem qualquer autorização da Justiça. Algo que obviamente põe em risco às liberdades civis da população.
Ainda alinhado ao espectro político e também aproveitando os desdobramentos de Guerra Civil, a editoria ainda conseguiu extrair mais histórias de cunho político como Invasão Secreta que toca o forte sentimento de paranoia com o inimigo vivendo em seu próprio território, além de Reinado Sombrio para enfim se afastar mais de temas realistas, próximos aos leitores, com Era Heróica – uma fase que também é relacionada com o mandato de Barack Obama na presidência.
Toda a saga Guerra Civil das histórias em quadrinhos foi algo pensado com meticuloso cuidado, totalmente antenada com as atmosferas políticas conturbadas do país servindo muito bem como um retrato histórico da primeira década do novo milênio. Quando a Marvel Studios anunciou Guerra Civil em 2014, gerou uma grande expectativa para ver já algum indício de cisão entre Tony Stark e Steve Roger em Era de Ultron, algo que não aconteceu. Agora, há poucos dias, os irmãos Russo disseram que o anúncio de Batman Vs Superman certamente colaborou para que a Marvel se movesse e pensasse em colocar seus principais heróis em rota de colisão rapidamente nas telonas. Visto que o anúnico de Guerra Civil se deu quinze meses depois de BvS, eu não duvido disso. Nada mais justo, afinal a Warner/DC também se moveu para construir um universo cinematográfico por conta dos trabalhos da Marvel.
O Despertar de Wakanda
Algo a conseguir me deixar surpreso foi a agilidade que essa produção teve para ser finalizada. A fotografia principal começou em abril do ano passado terminando em agosto enquanto simultaneamente os mais quatorze escritórios especializados em efeitos visuais já começavam a trabalhar com o material bruto. Resumindo: Guerra Civil é um longa de duas horas e meia que foi gravado e finalizado em menos de onze meses. O resultado como todos podemos conferir realmente é impressionante levando em conta isso, já que as maiores falhas do longa se concentram no roteiro dos veteranos Christopher Markus e Stephen McFeely, escritores que trabalham com o personagem desde o primeiro filme de sua franquia.
Por mais que o filme leve o mesmo nome da HQ, os roteiristas não enfatizam tanto o embate ideológico entre Tony e Steve como foi feito nas páginas do gibi. Então quem espera um conflito com esse peso dramático talvez possa sair decepcionado. Os dois escritores puxam o debate sobre os danos colaterais que o grupo provoca em suas missões. Nisso o filme já tem início durante uma missão dos Novos Vingadores em Lagos à procura de Ossos Cruzados que trama um ataque bioterrorista. Apesar de terem sucesso em impedir o ataque, o grupo, mais especificamente Wanda, falha em conter a explosão que ocorre quando Ossos Cruzados se explode causando, obviamente, mortes de civis.
Com tantos desastres causados pelas ações dos Vingadores, os líderes mundiais representados na ONU decidem que chegou a hora de acabar com a liberdade de ação desses heróis os obrigando a assinar o Tratado de Sokovia. Porém o Capitão não concorda em agir como uma milícia superpoderosa para governos que seguem agendas e ideologias que estão em constante mudança. Não quer virar um mercenário. Ao contrário de Tony, abalado desde a Batalha de Nova Iorque, que reconhece ser preciso responder por suas ações para partes superiores. A cisão não gera conflito físico direto, mas os ânimos começam a se acirrar.
Porém, os roteiristas não continuam a investir nisso no segundo ato. Com a explosão de um prédio onde está instalada a comissão do Tratado durante o começo da reunião, todos temem uma retaliação maior. Tudo fica ainda mais complicado quando surge a suspeita de que o responsável pelo atentado seja Bucky Barnes, o infame Soldado Invernal. Acreditando na inocência do amigo, Capitão reúne seu time e parte em busca de Bucky tentando protegê-lo de esquadrões policias e da equipe já regularizada de Tony Stark que recebem ordens para matar o antigo amigo do protagonista. Nos bastidores, ajudando a alimentar o fogo do conflito entre as duas partes há o antagonista verdadeiro da história, Zemo.
É estranho notar como McFeely e Markus conseguem criar um primeiro ato excelente e desenvolver tão bem os muitos personagens presentes na jornada enquanto erram ao pedir tanto da nossa suspensão da descrença em relação ao plano de Zemo que é um dos mais mirabolantes que o cinema da Marvel já nos trouxe, além de manter muitas coisas dentro da zona de conforto que não cabia em uma história de potencial dramático e reflexivo como este.
O maior trunfo do filme, sem dúvidas, vem sobre o discurso sobre a vingança refletida em Zemo, Tony e, principalmente, Pantera Negra. Guerra Civil é uma lição de coesão para firmar uma história de origem com o herói wakandano. É ótimo o modo simples como eles estabelecem a relação entre o simpático Rei T’Chaka com T’Challa. Ali é inserido o ponto que justifica a transformação da jornada dele de vigilante para herói em uma linha diálogo que apresenta a vontade do rei em ver o filho aprender a fazer diplomacia como um grande governante deve fazer. Por marcar o carinho entre os dois, a morte do personagem é sentida e o sofrimento de T’Challa tão bem apresentado por Chadwick Boseman é crível.
O ódio dele é tanto que praticamente somente o Pantera Negra ataca para matar, porém só tem sede de vingança por Bucky acreditando que ele seja o assassino de seu pai. Apesar deles inserirem muito arbitrariamente o personagem no clímax do longa na Sibéria, faz perfeito sentido para completarem a transformação dele no filme. Lá ele descobre que todo o atentado fora orquestrado por Zemo. Com isso a vingança contra Bucky acaba afinal ele é inocente. No fim, eles dedicam uma cena onde T’Challa conversa com o vilão, abandonando o ódio ao abraçar a diplomacia como seu pai desejava. Ele prende o sokoviano, não como Pantera Negra, o vigilante, mas sim como rei T’Challa, o diplomata.
Claro, cai na velha (e clichê) máxima “a vingança não compensa, mata a alma e envenena”, mas é coerente durante o filme inteiro, apenas na segunda luta, no aeroporto, entre Bucky e Pantera os roteiristas patinam em criar linhas de diálogo que façam sentido. Bucky fala que não matou o pai de T’Challa e ele indaga “por que você fugiu então? ”. Bom, se tivesse um cara vestido de pantera borbulhando de raiva correndo atrás de mim, admito que também fugiria.
Ainda em T’Challa, porém, há um ponto vital que é muito mal explicado. No começo do filme, ele se posiciona a favor do acordo, porém, presume-se que ninguém saiba que ele é o Pantera Negra – fora T’Chaka já que em determinado momento seu filho explica para Viúva que a figura do herói vem por gerações. Após revelar ao mundo que seu altergo também é um mascarado, a Lei passa a valer para ele também? Ou somente aos Vingadores? Não uma linha de diálogo para sugerir algo nas entrelinhas. No fim do filme ele vira um Vingador Secreto, então ele desiste do tratado por qual motivo? O rei T’Chaka é hipócrita ao querer impor os Vingadores ao Tratado de Sokovia quando o próprio filho é um mascarado vingador de Wakanda? Os danos colaterais de Wakanda causados pelas ações do Pantera são abafados?
Divididos, Cairemos!
Mesmo sendo um filme do Capitão América, quem brilha mesmo é o desenvolvimento de Tony Stark e a performance excelente de Robert Downey Jr encarnando o herói com uma energia que tinha sumido em Era de Ultron. O ator consegue expressar todo o nervosismo, insegurança e mágoas que o personagem vem acumulando desde Os Vingadores culminando tudo aqui. Os roteiristas apresentam bem diversos remorsos gerados pelas escolhas egoístas de Tony como no excelente pseudo flashback onde o magnata revisita a última ocasião na qual esteve junto de seus pais. Depois, já sugerem que o relacionamento dele com Pepper acabou. Para então adaptaram a famosa passagem do cuspe na HQ, mas diminuindo muito o teor expansivo. No filme Tony apenas é confrontado por palavras duras, sentindo novamente o peso na sua consciência. Fora que passa a lidar com a culpa de ter criado Ultron – logo sente ainda mais o dano colateral da intervenção em Sokovia já que tudo parte de um homem só. Detalhe que esse pesar era inexistente em Era de Ultron onde Tony sempre se expressava com ironias, sarcasmo e piadinhas estúpidas. Enfim, o personagem amadurece. Pela primeira vez, o universo Marvel aborda a impotência de seus super-heróis.
Nessa sequência avassaladora de eventos, a motivação de Tony em assinar o Tratado torna-se genuína dentro do filme, porém vejo uma expiação de responsabilidade e desencargo de consciência ao assinar o acordo. Talvez permaneça a figura de um Homem de Ferro egoísta, pois assinar um papel e virar inaugurar uma OTAN superpoderosa não vai evitar o dano colateral que tanto assombra Stark.
Nesse ponto, no primeiro ato, realmente não há um lado certo ou errado ao entendermos bem a motivação de cada um, apesar de eu concordar mais com o Capitão América que também apresenta boas motivações para firmar sua posição. Os roteiristas dedicam ao menos uma cena para trazer o viés político da HQ para as telonas, mas isso logo é abandonado quando a ONU explode e jogo deixa de ficar dividido entre pró vs contra registro, mas sim em caçar vs defender Bucky.
A dúvida sobre a responsabilidade do Bucky como o autor do atentado é respondida rapidamente. Aliás, é impressionante o modo muito conveniente e preguiçoso dos roteiristas em solucionarem rápido um conflito que já vinha desde O Soldado Invernal: encontrar o paradeiro de Bucky. Uma rápida dica do interesse romântico de Steve, a agente Sharon Carter, é tudo o que precisa. Aliás, muito me incomoda a ausência bizarra de Maria Hill e Nick Fury nesta aventura.
Logo descoberto que o ex-agente da Hidra é inocente e que tramaram para ele, instantaneamente só há um lado certo, o do Capitão. Afinal, é coerente matar ou perseguir alguém por um crime que ele não cometeu? Ou prender uma pessoa que praticava crimes sob a influência de uma lavagem cerebral? Apesar de já limar a dualidade presente na HQ, o filme ganha nesse aspecto, pois dialoga diretamente com o espectador e seu senso de justiça. Nesse caso, nos tornamos ativos e tão logo faz com que tenhamos simpatia por Bucky já que os roteiristas trabalharam pouco a relação da amizade entre Steve e Barnes ao longo desses três filmes. Então há essa motivação que guia o Capitão em ser um representante nato da justiça mesmo que saibamos que é a amizade o fator de maior peso para o personagem, além de representar o último elo que ele possui com seu passado em 1940.
Já sobre a motivação de outros personagens, boa parte deles é bem definida. Visão se apropria sobre a responsabilidade que o grupo tem sobre os ombros, Rhodes já é um representante do governo americano que apoia o Tratado, Viúva Negra também sofre com o pesar dos danos colaterais. E Pantera Negra se une aos outros durante a caçada ao Soldado Invernal. O único a ficar do lado do Capitão nesse momento é Falcão que sempre apoia o parceiro. Depois, o time de Steve aumenta com o Gavião Arqueiro, cuja presença tem uma justificativa nebulosa, com Homem-Formiga, uma participação gratuita de alívio cômico que funciona por deixar a ação mais interessante, e também com Wanda que é mantida prisioneira dentro do complexo dos Vingadores por medo que a Feiticeira cause mais confrontos que resultem em morte – é resgata por Gavião Arqueiro antes da famosa luta no aeroporto.
É impressionante a habilidade dos roteiristas em dedicarem tempos e cenas tão certeiras para cada um dos personagens coadjuvantes – algo que certamente remete à técnica de Joss Whedon em Os Vingadores. A interação entre eles é ótima. Vemos uma concepção do romance entre Wanda e Visão, daqueles amores puros e inocentes, há uma preocupação em fazer alguns embates intelectuais entre Tony e Steve, além de explorarem o bonito conflito que Natasha sofre ao se encontrar tão dividida entre o que julga correto ante a amizade com o Capitão, além das boas cenas dedicadas a mostrar sua sensibilidade e companheirismo com T’Challa.
Fora isso, eles melhoram o vício irritante da produção dos filmes Marvel em inserir piadas em momentos inapropriados quebrando a tensão vide Homem de Ferro 3 ou Era de Ultron. Dessa vez é tudo mais equilibrado, as piadas estão entre as melhores de todos os filmes que já vimos deste universo e fazem sentido em boa parte das situações chegando a brincar até mesmo com filmes clássicos pertencentes à Disney como O Império Contra-Ataca. Porém, mesmo dosando na quantidade, algumas ainda quebram o drama como na cena onde Visão invade o quarto de Wanda enquanto ela reflete sobre o descuido em Lagos ou no velório de Peggy Carter.
Já com Homem-Aranha, a participação dele, a grosso modo, se resume a fan servisse. Não faria a menor diferença não o ter na narrativa, já que não chega nem perto de ter a relevância que tinha na HQ – também seria impossível fazer o mesmo neste MCU. Porém a Marvel já resolve rapidamente essa história de origem que foi contada e recontada em duas décadas diferentes. O público já sabe de tio Bem, picada de aranha, escalar paredes etc.
Então com isso já estabelecido, temos a adaptação mais interessante e fiel ao personagem até agora nas telas de cinema. Isso se dá através de um diálogo com Tony Stark que revela toda a ética do personagem – sobre ser jogador de futebol antes e depois da picada radioativa. Sua motivação, todavia, é mais complicada. Mesmo que ele admire o Homem de Ferro, toda a problemática envolvendo Parker para que ele entre na lute se resolve quanto Stark ameaça contar à tia May seu maior segredo. Além de ser chantageado, Parker aceita a bolsa de estudos de Stark. Também há a sugestão muito bizarra de um romance entre Tony e tia May.
Tom Holland encarnando Peter Parker e Homem-Aranha é a união do que havia de melhor nas performances de Tobey Maguire – um exímio Peter Parker, e de Andrew Garfield – um Homem-Aranha mais divertido e próximo da natureza do personagem. Holland mostra pouco, mas já é possível dizer que ele não decepcionará em seu filme solo. Temos o verdadeiro cabeça de teia tagarela e despojado dos quadrinhos finalmente nos cinemas. O figurino inspirado nos traços clássicos de John Romita Sr. e Steve Ditko só colabora para essa impressão.
Um Vilão do Cinema Marvel e seu Plano Mirabolante
Acertando muito nesses pontos, os roteiristas começam a tropeçar bastante no segundo e terceiro ato e também no plano mirabolante de Zemo. O vilão desempenha exatamente o mesmo papel de Lex Luthor em Batman v Superman, algo que pelo jeito tem potencial de virar um clichê do gênero, além de eximir boa parte da responsabilidade dos próprios heróis a se confrontarem. Tudo é feito visando o elemento maior.
Também o nome “Zemo” não serve de absolutamente nada. O personagem não é nazista, não é da Hidra, não é um exímio espadachim e sua estratégia abusa da sorte e no acaso. Não faria a menor diferença se tivessem colocado outro nome para o antagonista, poupando o verdadeiro Barão Zemo para um próximo filme, afinal quase todos os vilões do Capitão América são excelentes.
É conveniente demais que ele saiba esconderijos de agentes da Hidra, justamente o qual onde se encontra o caderno vermelho que possui os segredos para controlar o Soldado Invernal por meio de palavras-chave. Também contar com uma falha do grupo em conter o dano colateral causado por Ossos Cruzados que funciona como um vilão da semana para resultar no início da cisão do grupo é algo complicado. Além disso, há a quebra da lógica interna do MCU quando ele diz que trabalhava para Bucky e não para o que restou da Hidra, algo que vai contra os eventos finais de Soldado Invernal onde Barnes já toma conhecimento de que há algo de errado com sua cabeça.
Então há toda a história da explosão na ONU onde alguém disfarçado de Bucky arquiteta o ataque terrorista – esse é alguém, subentendesse que seja Zemo, para então iniciar essa caçada insana ao ex-agente que enfim rompe os Vingadores de vez. Depois, descobre, magicamente, onde prenderiam o indivíduo em Berlim e que também o interrogariam através de um psicólogo – o qual ele mata e ganha acesso instantâneo a cela de segurança máxima que, ironicamente, não checam nem a foto do crachá do cidadão que conduzirá o interrogatório. Para então causar um blecaute a fim de realizar outra lavagem cerebral em Bucky ao falar as palavras mágicas do livro vermelho para descobrir o relatório da missão em dezembro de 1991 que resultou na morte dos pais de Stark.
Então ele foge deixando Bucky em seu estado psicótico onde ocorre outra luta resultando no retorno à personalidade pacífica do Soldado Invernal após ele bater forte com a cabeça no vidro do helicóptero – para os filmes da Marvel só um jeito de livrar alguém de um controle mental de terceiros: uma bela concussão. Para o plano dele dar certo, ele já contava com isso, além de esperar que Bucky falasse para o Capitão que há mais soldados invernais em uma base secreta na Sibéria, lugar para onde Zemo foge.
Logo há toda a batalha do aeroporto que, apesar de ótima, é muito mal encaixada dentro da narrativa, afinal nós descobrimos que o Capitão está atrás do Quinjet apenas quando ele realmente corre para o hangar que guarda o avião, além de nunca haver quaisquer justificativa que Tony Stark saiba que o grupo de Steve se dirigiria para lá também visto as milhares de possibilidades que ele poderia usar para fugir de Berlim. O modo como os heróis do time de Stark chegam na luta também é bizarro sendo que Pantera Negra praticamente cai do céu, além da razão de Visão estar ausente em boa parte da luta sempre estando mais na defensiva do que atacando o grupo oponente.
A luta também colabora em acabar de vez com a lógica diegética sobre os poderes psíquicos de Wanda, afinal, não é nada coerente fazê-la falhar, sozinha, em conter uma explosão quando minutos depois eles a fazem subjugar Visão com certa facilidade – um dos heróis mais poderosos desse universo, o jogando milhares de metros abaixo do solo para então ela conseguir conter toneladas de concreto permitindo a passagem de Bucky e Steve até o hangar onde está o Quinjet. Ao menos nesse segmento, ela é afetada por um elemento externo para interromper a poderosa telecinese.
No desfecho, Capitão e Bucky fogem para a Sibéria e Stark prende a maioria dos oponentes. Indo até lá descobre que o amigo falava a verdade sobre terem armado uma cilada para o Barnes – é curioso como os roteiristas tentam resolver essas desavenças no diálogo, mas fazem o personagem mais racional do MCU virar um dos mais impacientes e furiosos nesse filme. No meio disso, há um ótimo momento onde o grupo de Tony é obrigado a conviver com o primeiro dano colateral causado por eles próprios em outro integrante, Máquina de Combate. O resultado da paralisia de Rhodes, já dá indícios de que Visão esteja se tornando cada vez mais humano e, portanto, falho. Depois do bom drama, ao descobrir sobre a Sibéria, Tony se dirige para a base secreta. T’Challa, que apenas surge no meio das nuvens, segue o herói.
Aí que entra a maior conveniência para Zemo, pois apostar que Stark fracassaria em conter Steve e depois que ele fosse descobrir sobre a Sibéria e se dirigir para lá a fim de causar o conflito final é algo bastante absurdo. Então os três se encontram e descobrem que Zemo já tinha matado todos os outros soldados invernais, pois seu objetivo é mostrar uma fita, em privado, para o grupo que revela que o assassino de seus pais não é ninguém menos que Bucky Barnes. Ao menos aqui entra algo legal que põe em cheque a moralidade do Capitão América por não contar isso a Tony, um fato que já tinha conhecimento disso desde O Soldado Invernal.
Porém o motivo do embate, levando em conta que Tony já sabia que Bucky agia sob a influência de lavagem cerebral, se torna uma experiência completamente subjetiva para quem assiste. Mesmo que seja genuíno, não vejo como o personagem mais racional desse universo reaja da mesma forma que o Hulk agiria. Para mim, não cabe. Porém isso rende o momento mais dramático e relevante de todos os filmes até então onde vemos uma luta que ambos quase se matam.
Finalmente é revelada a motivação de Zemo para o espectador e surpreendentemente é genuína o colocando diretamente no topo dos melhores vilões que o MCU já nos trouxe – um feito nem tão difícil. Mais uma vez a culpa disso tudo cai nos colos de Stark, ainda que indiretamente, já que o vilão é impulsionado pela vingança da morte de sua família durante a Batalha de Sokovia. Reações diferentes do mesmo dano colateral, o sacrifício para o bem maior – uma jogada inteligente dos roteiristas. Já sobra a atuação de Daniel Bruhl, sabendo da capacidade do ótimo ator, não há esforço além do necessário para apresentar seu Zemo.
O desfecho disso tudo não deixa de ser decepcionante. Temos uma guerra na qual ninguém morre, além de não causar a ruptura intensa que era esperada por causa da carta reconciliadora e do celular que Steve envia à Tony após a luta quase mortal. Deixar claro que os Vingadores Secretos não estão a mais do que uma chamada telefônica de distância é um reducionismo muito confortável. Algo que transforma o Homem de Ferro no prefeito de Townsville e celular em sua linha direta com a casa das meninas superpoderosas para pedir socorro em momentos de necessidade. Fora isso há a bizarra cena onde Steve salva todos os amigos presos na Balsa que dá o toque final do otimismo visado na companhia.
A Morte de Um Sonho
Para tocar esse Titanic é preciso muita coragem e habilidade em respeitar um cronograma tão rígido. Os irmãos Russo me surpreenderam, afinal sair de um Dois é Bom, Três é Demais para dez anos depois dirigir um Guerra Civil é preciso de segurança e confiança no próprio trabalho. Realizam mesmo um verdadeiro trabalho espetacular, mas que não deixa de tropeçar em algumas pequenas coisas.
Esses tropeços se restringem apenas em duas características, creio. A primeira é na manutenção da decupagem problemática da ação que já vinha desde O Soldado Invernal em algumas cenas. A ação muito picotada, repleta de câmeras “nervosas” e também pela velocidade altíssima do obturador da câmera resultando um efeito inorgânico nas ágeis movimentações dos personagens em cena distribuindo pancadaria. Esse efeito do obturador rápido deixa a ação mais dinâmica, pois retira o rastro natural que o movimento ocasiona quando ele está na velocidade normal. Entretanto, isso aliado a tantos cortes rápidos geram esse estranhamento. Algo que não havia ficado bom no filme anterior e que também não melhorou em nada a primeira cena de ação do filme.
Já nessa mesma sequência somos introduzidos a uma irritante mania de inserir legendas gigantescas para informar em qual cidade se passa a ação – algo que permanece no restante do filme inteiro. Temos LAGOS, BUCARESTE, VIENA, BERLIM, QUEENS! Ao menos é impossível duvidar da eficiência do efeito já que me lembro de todas as cidades que compõe o grand prix de Guerra Civil.
Tirando isso, há somente acertos. A ação comporta-se de modo mais clássico com movimentações elegantes, além de ser uma das mais imaginativas que já pude conferir em filmes de super-heróis. Os dois sabem muito bem como fazer a equipe usar seus poderes sempre cooperando um com o outro ou durante a fantástica luta entre eles no aeroporto – resquícios do trabalho de Whedon em Os Vingadores.
O auge da técnica é, obviamente, a sequência do aeroporto que é dividida em duas partes: o confronto segmentado para seguir para uma batalha de duas frentes definidas. Em primeiro momento, a andamento é perfeito. Saímos de uma luta para entrar em outra a partir da montagem tão bem executada. Temos diversos conflitos inéditos com Gavião Arqueiro vs Homem de Ferro, Homem-Aranha vs Falcão e Soldado Invernal, Homem-Aranha vs. Capitão América, Gavião Arqueiro vs. Pantera Negra, Homem-Formiga vs. Máquina de Combate e Homem de Ferro entre tantos outros. É absolutamente mágico. Sim, é mágico, de encher sua criança interna de alegria. Ver tantos personagens se digladiando de modo tão bem executado e inteligente a respeito do uso dos superpoderes é algo absolutamente indescritível. Quisera eu ter a mesma idade que tinha quando vi Homem-Aranha pela primeira vez com este Guerra Civil. Admito que teria saído alucinado do cinema querendo comprar todos os bonequinhos para recriar a luta em casa.
Na segunda metade, a ação se torna ainda melhor. Ainda há a manutenção clássica da divisão de ação que ocorre do mesmo modo que nas HQs ao acompanharmos mais duelos entre pequenos grupos, porém há um festim digno das páginas duplas de George Pérez quando as duas partes se alinham uma em frente a outra e partem, correndo, para a luta. Os Russo realmente criaram o momento mais épico que já conferimos em filmes do gênero. Nesse segmento, poderiam sustentar mais o plano ou terem arriscado um plano sequência, porém a pressa em finalizar o filme não possibilitou isso. Além de épica, poderia ter se tornado uma sequência histórica também na técnica cinematográfica. Espero que vejamos algo tão fabuloso e melhor construído com a Guerra Infinita.
Mesmo sendo uma sequência tão bem-feita, há um certo incomodo que a afeta negativamente. Pela intensidade da ação ou da violência segura, nunca há uma apreensão ou sugestão de uma possível morte ali. As duas frentes lutam sem a intenção de matar ou incapacitar uns aos outros. As interações em diálogos, em sua maioria, bem inseridos deixam isso claro pelo teor cômico e amistoso. Aliás, é exímia a perspicácia que os irmãos têm ao inserir a maioria das piadas ao longo do filme. Excelente timing.
No clímax, durante a última luta entre Capitão América e Homem de Ferro, os Russo simplesmente atingem a perfeição da câmera clássica e da ação contemplativa abandonando completamente o estilo que eles apresentaram no começo do filme e em Soldado Invernal. A coreografia da luta é muito mais violenta que a do aeroporto, a conversa é mínima, a trilha musical de Henry Jackman cresce e se torna mais relevante e a iluminação de Trent Opaloch aposta mais nos efeitos sombrios da contraluz moderada. É a atmosfera perfeita para a tragédia anunciada. O momento tão esperado que nunca chega: a morte de Steve Rogers. E olha que a coreografia da luta permitiria isso com facilidade.
Mesmo que isso não aconteça, os Russo acertam ao transpor duas imagens muito impactantes da arte original feita no auge do talento de Steve McNiven: a emblemática imagem do Capitão se protegendo com o escudo dos raios que partem dos propulsores do Homem de Ferro. A outra ocorre quando o Capitão ataca sucessivamente o capacete de Tony enquanto ele está deitado, já derrotado. Na HQ, nota-se a intenção assassina de Rogers, algo que não é presente na versão cinematográfica. Porém, levando em conta a história que nós já partilhamos com esses personagens por tantos anos de nossas vidas, não deixa de ser uma cena extremamente triste. Principalmente o seu desfecho que contempla o Tony Stark mais só e magoado até agora.
Aliás, os irmãos e o diretor de fotografia conseguem elaborar uma iluminação que constrói uma metáfora visual primária, mas interessante. Ocorre durante o blecaute onde Zemo converte Bucky novamente em Soldado Invernal. Ali há uma intermitência entre a luz azul, representando a memória pacífica de seu amigo Steve Rogers, e a luz vermelha que evoca a violência e os terrores da tortura nas bases soviéticas da Hidra. É básico, mas já é algo bem-intencionado.
Enquanto os Russo se viram bem com a decupagem complicada envolvendo uma gravação a partir de seis câmeras para finalizar a fotografia principal mais rapidamente – o normal em Hollywood é se gravar apenas com uma, os inúmeros escritórios de efeitos visuais apresentam um desempenho muito inconstante principalmente na computação gráfica dedicada a armadura de Tony Stark. Por ora muito bem-feita para depois perder a textura em outra cena. Ou no pior efeito do filme onde uma carreta prática é substituída por uma digital logo nos primeiros minutos de projeção.
Saldo Positivo
Capitão América: Guerra Civil é, sem a menor dúvida, uma das melhores obras que a Marvel já nos trouxe. Infelizmente sofre de problemas muito parecidos do filme apresentado pela distinta concorrente. O fato de apenas um mês de intervalo entre suas estreias só colabora para deixar isso em evidência. Verdade seja dita, ambas as empresas erraram ao trazer essas histórias-combate tão cedo para os cinemas.
Com mais tempo para desenvolver a amizade de Bucky, deixar os heróis Marvel provarem um pouco da glória e reconhecimento da população mais enfaticamente, agregarem mais personagens aos seus universos cinematográficos, delinearem cada vez mais diferenças entre o Capitão e Tony Stark seriam características muito bem-vindas. O primeiro filme da Fase 3 poderia ser facilmente o longa pré-Guerra Infinita, incutiria muito mais ameaça e vulnerabilidade para esse universo diante o terror que Thanos promete provocar. Agora com mais cinco filmes até chegarmos no clímax dessa fase, isso dificilmente deve acontecer do mesmo modo. De uma forma ou de outra, recebemos a morte de um sonho: a Marvel não mexerá em time que está ganhando nem que seja para gerar um efeito dramático memorável.
Entretanto, verdade seja dita, este é filme é uma obra divertidíssima, de fácil consumo e que dificilmente desagrada. Um longa que não cansa mesmo com seus 147 minutos de duração. Quem procurou uma diversão descompromissada, certamente encontrou o que estava procurando. Fora isso, testemunhou pela primeira vez tantos personagens queridos reunidos em um filme só. A Casa das Ideias fez magia duas vezes em artes distintas apresentando uma de suas histórias mais importantes. Algo que somente a Marvel mostrou capacidade de fazer até agora.
Capitão América: Guerra Civil (Captain America: Civil War, EUA - 2016)
Direção: Anthony Russo, Joe Russo
Roteiro: Christopher Markus, Stephen McFeely, baseado nos personagens da Marvel Comics
Elenco: Chris Evans, Robert Downey Jr., Sebastian Stan, Scarlett Johansson, Jeremy Renner, Don Cheadle, Anthony Mackie, Paul Rudd, Chadwick Boseman, Tom Holland, Elizabeth Olsen, Paul Bettany, William Hurt, Daniel Brühl, Marisa Tomei
Gênero: Ação, Aventura
Duração: 147 min
https://www.youtube.com/watch?v=dKrVegVI0Us
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Crítica | A Luz Entre Oceanos
Uma história de romance costuma ser previsível. Dois indivíduos completamente diferentes entre si que acabam se conhecendo e, depois de certo tempo, tornam-se perdidamente apaixonados um pelo outro. Claro, obstáculos se colocam entre eles, impedindo que o "felizes para sempre" venha com facilidade, mas o final é bem conhecido: tudo dá certo. Essa é, de forma resumida, a base na qual se finca A Luz Entre Oceanos, filme de Derek Cianfrance, baseado no livro homônimo de M.L. Stedman. Claro que a linha narrativa não se restringiria a territórios tão bem explorados por obras escritas, cinematográficas e televisivas: algumas viradas impressionantes aguardam o público dentro de seus aproximados 120 minutos. Mas quando a tempestade de reviravoltas passa, vem a calmaria - e não digo isso de forma positiva, infelizmente.
Michael Fassbender é um dos protagonistas no filme. Aqui, ele encarna o inexpressivo e amargurado Tom Sherbourne, um veterano de guerra que se torna totalmente mergulhado em emoções destrutivas após perceber a capacidade bélica e derradeira do ser humano. Sabemos que aqueles que conseguem retornar da guerra - principalmente uma tão horrenda quanto a I Guerra Mundial - não voltam como eram. Distúrbios, traumas, sequelas e outros começam a permear suas próprias personalidades, e o ator consegue encarnar todos estes problemas sem cair na tentação do melodramático. Sherbourne viaja até a longínqua cidade de Janus Rock, localizada na Austrália, onde deseja recomeçar sua vida. Para tanto, precisa se afastar daquilo que considera o mal primordial: o próprio homem. Ele aceita o emprego de faroleiro e irá trabalhar na ilha homônima, localizada em alto-mar, na qual receberá visitas a cada três semanas e não terá contato com mais ninguém além de suas memórias e de seus escritos.
Mas antes que possa ser definitivamente efetivado, Sherbourne é convidado por uma família local para almoçar e, chegando lá, com seu rosto nos dizendo que está em constante dor e que tenta ao máximo reprimi-la, ele encontra a sedutora Isabel Greysmark (Alicia Vikander), seu completo oposto. Enquanto Tom é um cara mais reservado e é bombardeado constantemente com lembranças da recém-finalizada guerra, Isabel parece ter vivido à parte disso. Quer dizer, ela tem consciência do que ocorreu mundo afora, mas seu jeito de ser nos parece imutável: ela é crua, carnal, quase primitiva, além de trazer uma doce altivez à cena que contrasta com seu companheiro de cena.
A química entre Vikander e Fassbender é imediata. É quase possível enxergar as fagulhas de um futuro romance incendiando uma belíssima cena de jantar no qual eles trocam olhares silenciosos. Palavras não são necessárias, e talvez esta escolha do elenco seja o ponto mais alto do filme. A narrativa pode até ser clichê, mas vale a pena assistir ao filme pela simples presença comovente e cativante de ambos os protagonistas.
Obviamente o amor não ocorre à primeira vista. A Luz Entre Oceanos, apesar das saídas formulaicas de narrativas do gênero, não é um conto de fadas. Entendemos a fascinação de Isabel por Tom, a qual é a pura simbologia da atração dos opostos. Mas ainda sim, este não deseja se abrir para outra pessoa por medo - e talvez por uma leve repulsa que provém de suas experiências no campo de batalha. Como já dito, a diferença entre os dois é notável: enquanto um traz uma certa escuridão e uma neutralidade para as sequência, o outro brilha em sua vivacidade quase estoica, com tons mais vibrantes e que algumas vezes soam artificiais - não desmerecendo o incrível trabalho de direção de arte de Karen Murphy, que resgata uma época quase anacrônica.
Em dado momento da narrativa, o casal acaba firmando o relacionamento e ambos contraem matrimônio. Tom leva Isabel para morar consigo na ilha, onde ambos viverão numa confortável casa com vista para a imensidão quase assustadora de um oceano. Não há mais ninguém lá e, durante grande parte do segundo ato, os dois vivem em uma felicidade utópica. Até que decidem aumentar a família e encontrar um modo de preencher um vazio incomodante que se alastra pelos quatro cantos daquele território. E é aí que os obstáculos finalmente chovem sobre os dois.
Acontece que Isabel tem dois abortos espontâneos dentro de duas tentativas de ter um filho. A primeira cena é construída de forma magnífica, com ela avançando tortuosamente por entre uma tempestade, caminhando e sendo castigada pela chuva e pelo vento, tentando alcançar o local de trabalho de seu marido. Ele não a ouve, e ela não pode fazer mais nada além de se deitar às portas do farol e esperar que Tom a encontre. Cada segundo transborda pura aflição e angústia, e não sabemos o que acontecerá. Nem mesmo a trilha composta por Alexandre Desplat consegue nos auxiliar neste trabalho, com um épico arquitetado com violinos e violoncelos em uma composição tonal nos arrastando para dentro do mesmo caos dos personagens. A segunda vez em que isso acontece, Isabel está confiante de que tudo dará certo: e num piscar de olhos, ela vê o seu vestido manchado de sangue e logo depois deitada numa relva desbotada olhando para o túmulo de seu filho não nascido.
Até aqui, a narrativa se desenrola de forma dinâmica e atraente. Temos uma linha narrativa, dois personagens muito diferentes marcando uma presença inefável numa imensa ilha. A opção por planos mais fechados para retratar a perda de esperança do casal principal entra em contraste com construções imagéticas mais abertas a fim de mostrar a majestosidade do cenário. Adam Arkapaw faz um trabalho invejável ao dançar com a câmera, navegando pela fumaça dos navios ou pelas ondas da praia, transpondo barreiras para acompanhar movimentos enérgicos e quase irracionais.
E então, como se não bastasse, a própria ilha recebe uma visita inesperada: uma canoa encalha nas praias brancas, com um corpo de um marinheiro jazendo lá dentro e um pequeno bebê chorando de fome em busca de alguma esperança. O casal encontra os dois, enterrando o cadáver numa parte inóspita de Janus Rock, com o devido "funeral", por assim dizer. E já é de se esperar o que acontece depois: Tom, permanecendo fiel a suas responsabilidades, deveria reportar as autoridades o ocorrido, mas em vez disso adota a criança - uma linda menina loura -, tornando realidade o sonho de sua mulher. A partir daqui, a composição das cenas é quase angelical: tudo vai de acordo com as regras das histórias de romance, e observamos o crescimento do bebê em cortes ritmados - cujas mesclas entre tons verdejantes e dourados contribuem para o tom pacífico do final do segundo ato.
A Luz Entre Oceanos poderia ter acabado desse jeito? É claro. Os obstáculos já haviam sido apresentados, apesar de poucos, e os personagens já alcançaram a tão desejada paz. Entretanto - e isso é um problema do próprio romance -, a narrativa resolve explorar as consequências de decisões imorais e antiéticas, adentrando um território antropológico e quase filosófico da irracionalidade humana. Tudo bem, estes conceitos emergem com os protagonistas, incluindo a dualidade entre o primitivo e o progressista, o traumático e o sã. Mas esta nova subtrama teria que ser muito bem pensada para funcionar com o tom novelesco do filme - e não é isso o que acontece.
O próximo obstáculo a ser enfrentado vem personificado por Hannah (Rachel Weisz, em talvez uma de suas atuações mais verdadeiras e mais contidas), uma mulher em completo desespero que perdeu a filha e o marido para os perigos do mar, peregrinando todas as manhãs de sua casa no centro comercial de Janus até o cemitério onde duas lápides simbólicas marcam a perda dos seus entes queridos. E é aí que o choque entre o que é certo e o que é justo mais uma vez pincela a narrativa principal: Tom acaba cedendo a seu lado moralista e envia cartas para esta mulher, dizendo que a criança está a salvo - um ato nobre, diga-se de passagem, mas que desperta uma fúria sem precedentes em Isabel. Querendo ou não, Lucy (Florence Clery) foi criada pelo casal, apesar de ser filha biológica de Hannah.
O longa, em determinado momento, não sabe mais por que caminho seguir. Nem mesmo a química entre o elenco consegue ofuscar a saturação exacerbada do roteiro, que mistura tantos gêneros fílmicos a ponto de se transformar numa mixórdia mal-resolvida. A quebra do voto de fidelidade entre Tom e Isabel se funde com o passado conturbado e com a falta de expectativas para o futuro de Hannah. Tudo isso corrobora a profusa saída que o roteiro encontra para finalizar - mais de uma vez - uma história cansativa. Temos três pontas distintas de um mesmo triângulo que lutam pelos holofotes e acabam destoando de maneira trágica.
A Luz Entre Oceanos funciona em partes. Até o final de seu segundo ato, a maestria com a qual Cianfrance conduz as lamentações e as aspirações dos personagens é admirável. Mas a narrativa deixa a desejar quando o maior dos antagonistas - a consciência - aparece em cena e acaba sujando de forma espalhafatosa um verdadeiro romance psicológico.
Crítica | Vingadores: Era de Ultron - Uma sequência perdida em sua ambição
Há três anos estreava um evento que marcaria a História do Cinema. O primeiro filme dos Vingadores sintetizava trabalhos que estavam sendo feitos e planejados há anos, mas oficialmente, o universo cinematográfico da Marvel Studios tem início em 2008 com o excelente primeiro filme do Homem de Ferro.
Os Vingadores era uma realização tanto para fãs e espectadores quanto para críticos e historiadores, mas, acima de tudo, era uma realização para a indústria. Ali, a era dos espetáculos ganhava nova vida. O conceito de franquias fora mudado completamente. A Marvel virou um estúdio e ensinou Hollywood um modelo completamente novo de negócios. Um modelo que sustenta boa parte de outras produções.
Mesmo com o estrondoso sucesso, o trabalho não parou. Não se passaram nem dez anos que do início disso tudo e já chegamos ao fim da segunda fase de universo muito cativante. Fase que teve sua construção durante dois anos com os lançamentos de Homem de Ferro 3, Thor: O Mundo Sombrio, Capitão América: Soldado Invernal e o exemplar Guardiões da Galáxia.
A Era de Ultron é o final dessa etapa. Porém, algo se perdeu no meio do caminho, infelizmente.
Entre a caçada sem fim para exterminar as bases restantes da H.I.D.R.A., os Vingadores se deparam com o último comandante ativo da organização, o Barão Von Strucker. Após derrotá-lo, o grupo retoma a posse do cetro utilizado por Loki. Já que o cetro é constituído de uma gema do infinito – a da mente, Thor permite que Tony Stark e Bruce Banner passem alguns dias a estudando.
Ainda assombrado pela destruição em massa causada por Loki e os Chitauri, Tony aspira construir uma tecnologia importante que visa acabar com a vulnerabilidade da Terra. Seu plano é construir uma inteligência artificial perfeita, capaz de assimilar e raciocinar conteúdos que não estão em sua programação básica. Uma inteligência que evolui.
Graças a tecnologia mágica envolvida na gema, Tony e Bruce conseguem dar vida ao projeto Ultron, o guarda definitivo do planeta. Porém, momentos após ser criado, Ultron, em seu raciocínio muito legitimo, encontra apenas um caminho para a paz mundial: a completa extinção da raça humana. Agora cabe apenas aos Vingadores para exterminar essa nova ameaça. Porém, Ultron rapidamente faz uma importante aliança com os gêmeos Pietro e Wanda Maximoff – humanos que ganham superpoderes após se submeterem a experimentos do Barão Von Strucker.
Mais uma vez Joss Whedon assina o roteiro e direção da superprodução megalomaníaca da Marvel. Entretanto, este é um Whedon muito diferente do apresentado em Os Vingadores.
Talvez por pressão dos produtores e fome dos espectadores sempre por um espetáculo maior que o anterior, Whedon dá preferência para as cenas de ação preterindo àquelas que seriam muito necessárias para o desenvolvimento dos personagens ante à ameaça que Ultron representa neste filme. Aliás, este antagonista fascinante, é o mais prejudicado por ser o novato e ter apenas uma única participação dentro desse universo – Loki, antagonista do primeiro Vingadores já teve três filmes para seu desenvolvimento.
O vilão, interpretado e dublado de forma assombrosa por James Spader – o filme se transforma quando ele está em cena, em meio a complexidade de seu discurso, paradoxalmente, é um personagem de uma nota só. Seu objetivo é sua diretriz. Ele não entra em conflito consigo mesmo e os heróis pouco fazem para elaborar algo mais complexo dentro dos diversos diálogos, muito parecidos, que trocam entre si.
Ultron é ardiloso, esperto, cínico e tem um ótimo senso de humor, pasmem. Whedon chega a sugerir diversas questões muito legitimas através dos discursos do androide. Estas, sobre a legitimidade de os Vingadores agirem como polícia do mundo, pelo fato do grupo adorar audiência e popularidade, sobre ainda serem manipulados como marionetes ou por não desejarem, integralmente, a paz, já que então não seriam mais necessários.
Porém, tudo isso é apenas sugerido. Nunca explorado. Não há nada mais broxante do que ver Ultron lançar essas pérolas e o grupo de super-heróis responder com perguntas retóricas ou piadinhas idiotas. Aliás, superando o exagero na dosagem já apresentada em Homem de Ferro 3, Whedon, por algum motivo chamado Disney, sempre quebra a tensão ou o drama com alguma piada. Simplesmente não há razão para inserir o cômico em muitas cenas. Destrói completamente a atmosfera, mesmo que algumas piadinhas sejam engraçadas – isso não acontecia de forma tão grave no primeiro filme.
Notar essa quebra de tom, principalmente por ver um autor como Joss Whedon aderir a esse vício, não tem nada de engraçado.
Entretanto, Ultron não é o único elemento subdesenvolvido. O roteiro, ao tentar incluir muita coisa e dar origem para os eventos da próxima fase, acaba esquecendo que a história e seus personagens mereciam melhor acabamento. Homem de Ferro, Thor, Capitão América, Mercúrio e Feiticeira Escarlate estão apenas ali para preencher quórum e fazer malabarismos.
Tony Stark nunca sente o peso da culpa por ter contrariado seus amigos ao criar Ultron. Os outros personagens apenas o repreendem ou se envolvem em um conflito pequeno para então surgir uma piadinha e quebrar a tensão. Enfim, nada que seja muito relevante.
Os novos personagens, os gêmeos Maximoff, contam apenas com uma cena para construir o passado e a relevância do drama vivido por eles – óbvio que é insuficiente. Ironicamente, os únicos personagens que possuem alguma evolução se comparado com outros filmes são Bruce Banner/Hulk, Viúva Negra e, em especial, Gavião Arqueiro. Porém, o conflito que Hulk vive só ganha mais força por conta de Mark Ruffalo, pois o roteiro contraria o comportamento apresentado pelo personagem em Os Vingadores.
Bizarros são os interesses românticos inconstantes que Viúva Negra demonstra em três filmes. Sempre pulando para os braços de outro homem. Algo que não condiz com a verve original de moça forte e independente da personagem. O trabalho que realmente se sobressai é o novo olhar sobre o Gavião Arqueiro, vital para este filme. Outro elemento que Whedon acerta é a criação do herói Visão – encarnado muito bem por Paul Bettany, misturando elementos inéditos e outros clássicos das HQs.
Em geral, a história, apesar de digna dos seriados animados do grupo, é bem amarrada. Whedon também acerta na manipulação da mente orquestrada por Wanda Maximoff –interpretada vividamente por Elizabeth Olsen que gesticula como uma bruxa ao lançar um feitiço.
Até mesmo alguns atores começam a dar sinais de desgaste, infelizmente. Downey Jr., antes sempre cativante, aparenta um ócio criativo em suas cenas. O mesmo acontece com Chris Evans e Chris Hemsworth. Mas é compreensível já que o roteiro não foge da zona de conforto então não há o que adicionar.
O que Whedon sempre acerta mesmo é na direção. Era de Ultron é tecnicamente muito superior ao filme de 2012.
Tudo é maior, incluindo a expressividade artística de outros departamentos como o de fotografia e design de produção. O diretor de fotografia Ben Davis modela e cria, impecavelmente, diversas atmosferas diferentes para as cenas – concepções únicas. Finalmente um filme dos Vingadores tem uma forte identidade visual. Já o design de produção preenche os planos com cenários repletos de elementos ricos. Os planos vazios de Os Vingadores que contavam apenas com o ator e um fundo banal ficaram para o passado. Tudo muito atrativo visualmente.
Seguindo essa linha criativa sábia, Whedon em conjunto com o departamento de arte, cria uma metáfora visual muito bem-vinda para exibir as diferenças entre as inteligências artificiais de Ultron e J.A.R.V.I.S. Uma é completamente caótica e imprevisível enquanto a outra é racional, cheia de formas retas e pacíficas. Além disso, o design de Ultron é fantástico. Desde seu primeiro protótipo até sua forma final.
Apesar da ótima condução das cenas de ação, acredito que o filme ficou saturado. A história, às vezes, parece que serve somente para unir essas sequências. Isso prejudica o clímax do filme, bastante, pois todas as cenas são dignas de fechar o filme. Fora que a luta entre Hulk e Tony Stark vestindo a Hulkbuster é de longe a melhor cena do filme.
Agora com mais recursos, Whedon consegue elaborar movimentos de câmera fantásticos, enquadramentos mais apelativos e muitos planos-sequência. Se você é fã desta técnica, Era de Ultron é obrigatório. Logo no começo do filme, para expressar a união do grupo vingador, Whedon insere um fantástico.
Uma nova era
Vingadores: Era de Ultron, infelizmente, é inferior ao primeiro filme, mas consegue divertir e agradar os fãs. Ele pretere o desenvolvimento de personagens e narrativa para dar lugar as muitas e ótimas cenas de ação, porém algumas cansam de tão longas ou pelo curto intervalo entre uma e outra. Entretanto, mesmo falhando nesses aspectos tão vitais, o filme cativa com o carisma de seu insano antagonista e graças a inserção de personagens novos muito bem-vindos como Feiticeira Escarlate e Visão – Mercúrio nem tanto graças à atuação insossa de Aaron Taylor-Johnson.
Uma pena que este seja o último filme da Marvel que Joss Whedon dirigirá. O cara é ótimo, dirige blockbusters como ninguém e tem nervos de aço para segurar as pontas de uma produção tão complexa como esta daqui. Ele é um dos poucos que não deixa sua ação virar um emaranhado confuso e excessivo de planos como os irmãos Russo fizeram em Capitão América: Soldado Invernal. Infelizmente, a fase três da Marvel começa com uma terrível perda, mas espero que, com o produtor certo, os irmão Russo consigam concluir de modo digno esse incrível evento que estamos vivendo agora.
Vingadores: Era de Ultron (Avengers: Age of Ultron, EUA - 2015)
Direção: Joss Whedon
Roteiro: Joss Whedon
Elenco: Robert Downey Jr., Chris Evans, Chris Hemsworth, Scarlett Johansson, Jeremy Renner, Mark Ruffalo, Elizabeth Olsen, Aaron Taylor-Johnson, James Spader, Paul Bettany, Cobie Smulders, Don Cheadle
Gênero: Aventura
Duração: 143 min
https://www.youtube.com/watch?v=tmeOjFno6Do
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Crítica | Scream - 2ª Temporada
Bem diferente da temporada anterior, o segundo ano de Scream já estreou com boas expectativas. Mesmo com uma narrativa que tropeça constantemente, a série mostrou que respeita os filmes originais e ainda consegue inovar. Scream faz sucesso, sem dúvida alguma, e enche o twitter de hashtags após cada episódio. O fascínio dos fãs pelos atores do show, inclusive, pode ser explicado em grande parte pela campanha de marketing promovida pela MTV, que na segunda temporada ainda ganhou o apoio da Netflix, liberando os episódios no dia seguinte à exibição. Agradando ou não, a MTV sempre soube promover astros teen.
Bom, deixando a emissora de lado, vamos ao que interessa. No primeiro ano, Scream cumpre o seu papel com ousadia ao trazer o famoso serial killer reformulado. Entretanto, alguns problemas graves assombram a produção constantemente, trazendo à tona os principais erros da temporada passada.
Primeiramente, questionei muito o aumento considerável no número de episódios - foram dois a mais do que o ano anterior. Parece pouco, mas isso reflete em mais de uma hora de material na tela, e Scream já lutava contra o marasmo antes. Antes de prosseguir, todavia, quero deixar claro que essa review trata dos eventos vistos até o episódio 12, When a Stranger Calls, sem considerar o especial de duas horas promovido pela Netflix neste Halloween. Aliás, essas referências nos títulos dos episódios me deixaram com uma pulga atrás da orelha. Pode ser implicância, mas muitas vezes isso não colou.
Poderia elaborar tranquilamente uma lista de fatores que me levam a questionar o aumento do número de episódios. Primeiramente, nessa nova temporada o assassino dá as caras no início e começa a torturar os personagens, mas permanece oculto até o final do quarto episódio! Acho que o principal problema das tramas na segunda temporada é que elas poderiam ter se desenrolado com muito mais desenvoltura. Outro recurso utilizado pelos roteiristas foi a entrada de personagens secundários aleatórios na série. Claro que o show precisa de elenco (até para que as possibilidades de identidade do assassino sejam mais amplas) e Scream se esforça para construir personagens, mas isso acarreta em uma lentidão ainda maior para a trama.
A segunda temporada de Scream ainda tenta consertar um dos seus principais erros e construir uma Emma mais forte e decidida, no melhor estilo Sidney Prescott. Mas a protagonista não convence, em partes porque o texto dramático da série continua com ela e ele não melhora. Emma finalmente confronta o assassino, mas todas as cenas acabam passando uma impressão de descontrole. A garota continua sendo a pior personagem da série e não possui nem mesmo um arco de evolução que possa ser comparado ao de Brooke, por exemplo.
O enredo possui um conceito inteligente. Os sobreviventes agora são os Lakewood Six (os fortes entenderão a referência) e os diálogos continuam repletos de analogias com a cultura pop, seja clássica ou contemporânea. Uma salva de palmas maior ainda para os monólogos de Noah através do seu podcast. As metáforas que fazem Scream ser Scream continuam ali, mas a história parece tantas vezes completamente sem rumo.
Tentando entender qual é o grande problema dessa segunda temporada, acredito que possa ser o medo de se enterrar nas próprias origens. A série chegou num ponto em que permanece superficial por temor de tornar decisões expressivas. As saídas do roteiro têm sido completamente convenientes e nem mesmo as mortes elaboradas poderão salvar Scream dessa situação. A foice, na morte do Jake, e a belíssima homenagem à Carrie (que entra para a história como uma das melhores cenas da série), são ótimas, mas não salvam um texto que insiste em não se desafiar.
Outro ponto em que isso pode ser observado foi na revelação do assassino, que nem mesmo deu ao espectador o momento de vê-lo levantando a máscara. A revelação dessa segunda temporada não chegou a surpreender o público, mas foi bem acertada dentro do cenário coerente que já havia sido estabelecido. O roteiro da série é bom, mas certas horas busca o caminho mais fácil. Scream precisa ousar. E ousar muito mais do que a primeira temporada.
Concluindo, a segunda temporada de Scream teve tantos altos e baixos quanto a primeira, mas pisou na bola feio ao desrespeitar os próprios conceitos que já havia estabelecido. O gancho na cena final do episódio 12 me deixou empolgado para ver o que pode ser feito a partir do material construído até aqui, mas vejo esses dois episódios especiais de Halloween como a chance que a série precisa para consertar alguns erros e, assim, vir com tudo para a terceira temporada.
Scream precisa de um up, mas também espero que tome fôlego. A propósito, adorei saber que a terceira temporada terá apenas 6 episódios. Desde que entreguem qualidade, a quantidade é apenas um detalhe.
Texto escrito por Evandro Claudio
Crítica | Shot! O Mantra Psico-Espiritual Do Rock
Ao leitor, façamos um exercício. Imaginemos, juntos, um homem com cabelos bagunçados, óculos escuros, amante de poetas malditos – como os simbolistas franceses ou os beatniks americanos –, um gosto descomedido por entorpecentes, uma câmera fotográfica nas mãos e um nome que exale rock’n’roll, algo banal como Mick Rock. O arquétipo não seria perfeitamente cabível para um fotógrafo, digamos, de ensaios com músicos, capas de álbuns e shows? O homem com uma câmera, presente em muitas confraternizações do meio musical e registrando-as com um olhar apurado, existe e é tudo o que foi descrito, ou, “apenas”, “o homem que fotografou os anos 70”.
O objeto de retrato nesse documentário é Michael David Rock (sim, esse é seu conveniente nome real), que foi amigo – e fotógrafo – pessoal de astros como David Bowie, Lou Reed, Iggy Pop, Debbie Harry e muitos outros músicos transgressores de 1970 e adiante. Mick, assim como muitos de seus amigos, teve um problemático envolvimento com drogas e esse recorte ganha atenção no longa. O espectador é logo apresentado a um jovem numa maca sendo levado às pressas para o hospital. A cama é colocada numa sala ampla, vazia e escura. Apenas uma luz acima, quase divina, ilumina o garoto de cabeleira desgrenhada ligado a tubos que o mantém vivo. O verdadeiro Mick Rock observa seu eu passado e confessa o momento em que atingiu o fundo do poço.
Em “Shot! O Mantra Psico-Espiritual Do Rock” (2016, EUA), dirigido e roteirizado pelo inexperiente – ao menos no cinema – britânico Barney Clay, o foco é, principalmente, na década de maior prestígio da carreira do fotógrafo que zomba de ser um estereótipo. Em entrevista à revista CULT, quando uma exposição sua foi trazida ao MIS (Museu da Imagem e Som de São Paulo) em 2014, Rock conta que pegou pela primeira vez numa câmera na época da universidade, em 1968, enquanto viajava de LSD com um amigo.
Nesse mesmo período conheceu Syd Barrett, um dos membros-fundadores do Pink Floyd, logo depois que havia deixado a banda. Syd precisava de alguém para fotografar a capa de seu vindouro álbum solo – lançado posteriormente em 1970 –, “The Madcap Laughs”. “E com um nome como Mick Rock, de algum jeito pareceu natural e que eu estaria predestinado a trabalhar principalmente com músicos! Não pude lutar contra isso!”, debocha o artista.
Para um documentário de alguém que clicou algumas das imagens mais icônicas de um período tão pautado nas aparências para artistas musicais como o Glam – cujo meio Mick diz que se identificava, diferente do punk –, não poderia faltar uma bela estética. Parte dela inclui uma trilha sonora com o melhor da década de 70, inserts em animação 3D para representar as viagens lisérgicas da cabeça do protagonista e muitas fotos do acervo pessoal de Mick.
A cinematografia de Max Goldman garante um visual escuro, elegante e misterioso. O rosto de Rock é filmado na contra luz, alimentando ainda mais as lendas que giram em torno dele que, conforme conta, era convidado para todo o tipo de orgia e festas em Nova Iorque durante os seventies. Ao mesmo tempo, ele não se poupa de confissões, nem foge de seus demônios. Com franqueza, conta do seu nocivo vício em cocaína e como não podia ser confiado em determinado ponto de sua carreira. Conforme o filme avança, o jovem Michael luta para sobreviver no leito hospitalar, enquanto o presente, paradoxalmente, lamenta e celebra suas imprudências passadas.
Shot!, que ainda não foi lançado internacionalmente, vem quase que com exclusividade para a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – esteve apenas em alguns outros festivais –, onde compete na seção de Novos Diretores. O documentário tem um grande cuidado com sua sofisticada estética, assim como em retratar Mick Rock com respeito e de forma enigmática. É, no final das contas, uma das melhores pedidas para os amantes de couro, cromo, lissergia e Glam, ou, apenas o bom e velho rock’n’roll.
Crítica | Guardiões da Galáxia - A Marvel abraça o space opera
Em 2014, a Marvel Studios faria sua aposta mais arriscada que abriria as portas para os títulos mais esquecidos e impopulares ganharem suas próprias adaptações cinematográficas – detalhe, isso também serviu para alguns heróis do selo DC. Guardiões da Galáxia era um tiro incerto por conta da enorme responsabilidade que o filme teria dentro do MCU: apresentar uma nova equipe de heróis sem superpoderes e, de quebra, estabelecer com clareza o universo cósmico da editora.
O resultado foi melhor do que todos esperavam. Estourando todas as previsões anteriores, o filme arrecadou mais de 750 milhões mundialmente – valor expressivo ante os 170 milhões investidos na sua produção. James Gunn e seus Guardiões da Galáxia viraram os queridinhos de 2014 e com mérito.
Acompanhamos a história de Peter Quill, um fora da lei que foi abduzido quando criança. Vivendo entre os piores, Quill vira um saqueador tapado com pinta de Indiana Jones. Um dos artefatos que está em sua mira é um orbe misterioso. Já recuperando o item, torna-se alvo de diversos mercenários e alienígenas poderosos que também estão à procura do orbe, seja para vende-lo ou para descobrir seus misteriosos segredos.
Fugindo de diversos captores, Quill acaba preso durante uma perseguição juntamente com quem o perseguia: um guaxinim falante, uma planta gigantesca e uma alienígena movida por seu ódio. Na cadeia, conseguem aceitar as diferenças um do outro e armar um plano para escapar do cárcere a fim de venderem o orbe para o Colecionador em Luganenhum. Na fuga, outro alienígena brutamontes, Drax, entra para a equipe em busca de saciar sua sede vingança contra Ronan, o Acusador, o principal oponente que caça o grupo em sua jornada.
Se há maior mérito para Guardiões da Galáxia é resgatar a qualidade narrativa que havíamos visto em Homem de Ferro enquanto consegue se tratar de uma história que parece descolada de todos os filmes anteriores do universo cinematográfico da Marvel. O roteiro de James Gunn, também diretor da obra, e de Nicole Perlman consegue render a grande maioria dos vícios que prejudicaram outros filmes da Fase 2 – as piadas fora de hora, a falta de desenvolvimento do drama, da real ameaça do perigo, etc.
Assim que o filme começa já é possível perceber essa pegada mais distinta ao apresentar o principal drama que assombrará o protagonista no restante do filme: a morte de sua mãe, vítima de um câncer possivelmente causado pelo contato com o pai de Quill, um extraterrestre feito de “pura luz” – importante lembrar que esse indício é sugerido muito sutilmente e nunca mais volta a ser mencionado como algoz da doença no restante do longa.
Antes de morrer, ela dá um presente para o filho que não larga o walkman com uma Mixtape criada por ela antes da doença. Logo, o instrumento que justifica todas as músicas pop dos anos 1970 que agitam a trilha musical que preenchem cenas divertidas repletas de bom humor é um dispositivo paradoxal muito eficiente para comprarmos o drama de Quill. Se trata da representação de toda a saudade, carinho e luto pela morte precoce de sua mãe e também do adeus ao seu planeta natal e família, já que pouco depois Gunn mostra o protagonista já adulto, manipulando seu querido walkman.
O escopo intimista e dramático rapidamente dá lugar a diversão e carisma que marcam a atmosfera de Guardiões da Galáxia durante a abertura dos créditos com Quill cantando "Come and Get Your Love" enquanto explora um planeta desolado, local que a orbe está localizada – um começo que lembra muito Caçadores da Arca Perdida, aliás.
Os roteiristas então seguem esse ritmo, variando entre cenas espalhafatosas muito cômicas – característica pedigree dos filmes Marvel, para outras onde o drama é esboçado, mas nunca plenamente desenvolvido sendo apenas o protagonista a receber um arco completo. Pelo menos, Gunn consegue delinear muitíssimo bem a cada apresentação de um novo personagem – mesmo que todos já sejam arquétipos muito conhecidos e já utilizados até mesmo em Os Vingadores.
O rol inteiro dos heróis de Guardiões serve como alívio cômico, mesmo que a dupla Rocket Raccoon e Groot sejam os mais funcionais para tanto – Drax com sua literalidade explícita também contribui. Como havia dito, Gunn soube dosar bem as piadas para que ficassem orgânicas dentro das cenas, nunca interferindo com ápices dramáticos ou de tensão como acontece em Homem de Ferro 3 e Doutor Estranho. Todos os personagens possuem seu próprio drama apresentado através de diálogos ou das muitas brigas que tem entre si – tal qual como Os Vingadores onde o grupo somente se confraterniza no clímax do filme.
Rocket é o personagem que carrega a maior carga dramática do longa, mesmo sendo o mais utilizado para fazer piadas e soltar frases de efeito. Ele carrega todo o ódio existencial porque reconhece que foi uma criação bizarra de mentes cruéis, além de saber que é o único de sua espécie. Drax quer vingar-se pelo assassinato de sua família cometido por Ronan – é um arco bom, mas de uma nota só. Gamora desiste de sofrer abusos por tantos anos e decide trair Ronan e Thanos, seu pai e “mestre” do antagonista do longa. Groot é um monstro de Frankenstein que só possui resquícios de bondade e ingenuidade. Seu único “conflito”, se é que podemos chamar assim, é proteger os amigos a qualquer custo. Graças a essa pureza do personagem, Gunn consegue criar momentos verdadeiramente belos, seja com a flor que ele distribui a uma criança ou quando solta seus pólens iluminados.
Só de haver a sugestão de dramas mais profundos já me deixa mais satisfeito do que geralmente ocorre na fórmula Marvel – detalhe que todos os conflitos ficam latentes, mesmo que o longa não dê oportunidade para concluí-los. Também se trata de uma narrativa de grupo onde a ação tem que ser priorizada por conta de sua natureza blockbuster de verão então afirmo com tranquilidade que desde X-Men 2, eu não via uma narrativa desse tipo ser bem explorada como acontece aqui.
Entretanto, mesmo com um roteiro divertido que se aproveita de arquétipos bem estabelecidos, além de dosar muito bem seu drama, Guardiões da Galáxia possui notáveis problemas. Estruturalmente é tudo bem encaixado e orgânico, mesmo que o longa perca fôlego no intervalo entre o segundo e o terceiro ato. Gunn brinca com os gêneros da ópera espacial aliada com elementos de prison break e de filmes de expedições. Um dos elementos que cansou na época era novamente o uso de um Joia do Infinito como Macguffin para mover toda a narrativa. Ou seja, o longa possuía diversos clichês Marvel que assolaram a medíocre segunda fase do MCU.
Tanto que até um dos conflitos secundários que possui sua importância lembra muito a relação entre Bucky e Steve Rogers. Trata-se da briga de Nebula com Gamora, irmãs que escolhem lados opostos em uma jornada com a mesma finalidade. Até mesmo a conclusão desse arco é igualzinha ao que acontece em Soldado Invernal. Outro elemento que já estava cansando é o clímax que aposta em ameaças que vem do céu, em rota de colisão com a superfície. Isso já era visto em Mundo Sombrio, Soldado Invernal, Os Vingadores e ainda seria repetido em Era de Ultron. Ao menos, aqui, Gunn conduziu magistralmente uma sequência criativa de luta aérea a la Star Wars e Top Gun.
E claro, como não poderia deixar de ser, o maior problema que a Marvel possui até hoje: o vilão descartável #X. No caso, esse aqui seria o vilão descartável #10. Ronan não é pior de todos os antagonistas apresentados graças à atuação de Lee Pace e também por conta do problema sociopolítico que ele representa. Novamente, é algo rabiscado na narrativa, mas ao menos mostra a motivação de Ronan. Um intolerante que não lida com o tratado de paz entre Xandar e os Kree – duas civilizações que estavam em guerra por milênios. Logo, ele busca o orbe para Thanos sob a promessa de ele destruir Xandar.
Mesmo se tratando de um vilão raso e relativamente estúpido, ao menos há uma reviravolta no núcleo, deixando Ronan menos submisso a Thanos. Algo interessante, mas ainda assim, insatisfatório. O personagem continua unidimensional e de peso pífio. Todo o conflito entre bem e mal aqui é telegrafado e previsível o que torna toda a narrativa de Guardiões exatamente como um passeio em uma montanha russa: é algo muito divertido, mas que você já sabe todo o percurso e a conclusão antes mesmo de embarcar na aventura.
Com o auxílio de uma narrativa muito convidativa para a criatividade, James Gunn brilha na direção. O que é algo deveras impressionante graças a sua inexperiência com produções dessa escala ou com cenas de ação tão complexas. O que Gunn domina completamente é sua habilidade com diversos tipos de linguagem cinematográfica. O cara é mestre em atmosfera.
Repare em cenas de drama, como a do começo do filme. Ao contrário de diversos outros diretores Marvel, Gunn aproveita e muito a fotografia excelente de Ben Davis para incutir essas emoções no espectador. A iluminação fraca, barroca, de sombras bem delineadas, de tons mistos entre um bege nauseabundo e o branco esverdejado, mantendo a profundidade de campo bem restrita contribuem para focar nosso olhar e pensamentos na dor de Quill ao ver sua mãe morrer diante de seus olhos. Logo depois, em sua abdução, os enquadramentos distantes revelando um bosque tenebroso cheio de névoa já sugerem que algo de maligno acontecerá com o garoto – a abdução.
Antes dos créditos, os tons sóbrios ainda se mantem, até Quill ligar seu walkman. Nos créditos, já ocorre a primeira subversão de expectativa que Gunn tanto trabalhará ao longo do filme. O ambiente inóspito do planeta que acompanha o ser esquisito de máscara tenebrosa subitamente se transforma em um passeio divertido e animado com Quill revelando seu rosto. Outros exemplos genuínos de subversão de expectativa e do domínio sobre linguagem que Gunn possui são: a cena do diálogo quase romântico entre Quill e Gamora quando ele explica sobre Footloose; na caminhada triunfal do grupo se dirigindo à batalha final e também do embate final entre Ronan e Quill.
Entretanto, o diretor não vive somente de subversão e trabalha seguindo a cartilha em momentos adequados. Vejamos: toda a sequência da fuga no Kyln, a prisão galáctica; quando ocorre a primeira catarse em Quill ao salvar Gamora no espaço – detalhe para os belíssimos planos de profunda contemplação, e onde Gunn arrisca, corretamente, na linguagem do western spaguetti na cena de glória de Yondu, após a destruição de sua nave.
É a direção mais entusiasmada dos filmes Marvel, com toda a certeza. A variedade de planos, de sacadas inteligentes de encenação, do completo aproveitamento da fotografia de cores explosivas e esquemas de iluminação mais elaborados de Ben Davis que finalmente eleva a qualidade de cinematografia dos cinzentos longas anteriores da editora – até agora, o trabalho fotográfico de Guardiões é insuperável dentro do MCU, e, principalmente, do perfeito equilíbrio entre drama e comédia. Não faço ideia como, mas Gunn conseguiu render Kevin Feige para deixar as sequências dramáticas intocadas, sem alívios cômicos irritantes.
Ironicamente, Gunn não erra nas muitas sequencias de ação, tornando toda a decupagem muito orgânica e fácil de ser compreendida, mas sim em alguns dos diálogos entre o grupo. O exemplo mais nítido dos excessos de cortes secos em uma conversa ocorre justamente no discurso catártico que Quill dispõe em sua última tentativa de unir o grupo. Nada muito grave, mas certamente incômodo.
Também é impossível encerrar a crítica sem comentar do ótimo trabalho do elenco. Principalmente o de Zoe Saldana e Chris Pratt que conseguem dominar com facilidade todos os picos dramáticos que seus papeis exigem apostando muito na força de seus olhares. Dave Bautista, Bradley Cooper e Vin Diesel também realizam ótimo trabalho embora seus papéis mais chamem a atenção pela competência surreal dos departamentos de efeitos visuais, animação e maquiagem.
É perfeitamente compreensível caso alguém desgoste de Guardiões da Galáxia. Com certeza não é um filme que poderá cair no gosto de todos, mesmo esbanjando tanto carisma. Porém, conseguiu me agradar e olha que os filmes Marvel conseguem acumular muitas decepções na minha caderneta. O trabalho é exemplar como já foi vastamente explorado e a direção de James Gunn certamente é o grande diferencial. O diretor-roteirista acertou em cheio a ponto de os notáveis problemas da narrativa não incomodarem muito. O sentimento que predomina é a certeza de termos visto um filme excelente que nos fisga, com certeza, pela emoção.
Guardiões da Galáxia (Guardians of the Galaxy, EUA - 2014)
Direção: James Gunn
Roteiro: James Gunn e Nicole Perlman
Elenco: Chris Pratt, Zoe Saldana, Dave Bautista, Bradley Cooper, Vin Diesel, Karen Gillan, Lee Pace, Josh Brolin, Michael Rooker, John C. Reilly, Glenn Close, Sean Gunn
Gênero: Aventura, Ficção Científica
Duração: 122 min
https://www.youtube.com/watch?v=d96cjJhvlMA
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Crítica | Doutor Estranho (Com Spoilers)
Obs: somente leia o texto após ver ao filme.
Obs²: o texto é longo, como de costume para análises desse tipo. Leia com calma.
Grandes Sucessos vem de Pequenos Começos
Stephen Strange não teve uma história estranha. Apareceu pela primeira vez em Strange Tales #110 em 1963, plena Era de Prata dos quadrinhos, pleno anos 1960, década conturbada marcada pelo nascimento de movimentos de contracultura, guerras impiedosas no oriente e da ascensão das drogas sintéticas.
O mundo estava mudando a passos largos. A Marvel também. O teor puritano dos anos 1950 marcados pelo sonho americano pós-Guerra estava arrefecendo. A Marvel tropeçaria em outro sucesso criado pela mente brilhante de Steve Ditko.
A criação do personagem marcaria a aposta em um herói místico que fugiria da típica porradaria tão presentes nas páginas da casa das ideias. A criação de Steve Ditko, resenhada em apenas cinco páginas, foi aprovada por Stan Lee para servir como filler nas antologias da publicação Strange Tales, enxergando algum potencial.
Certamente não reconheceu que o embrião das ideias piloto de Ditko para o personagem estariam em plena sintonia com todo o movimento de contracultura e dos efeitos alucinógenos causados por drogas sintéticas que explodiria já no final da mesma década – consequentemente, aumentando a popularidade do personagem. Fato este que muita gente já encarava que o núcleo criativo da HQ já estivesse mais do que afundada em cogumelos e outros alucinógenos.
Demorou até Lee e cia. Decidirem que Doutor Estranho seria o substituto definitivo da publicação Stranger Tales. O personagem só ganhou sua edição mensal em 1968. Porém, até lá, Ditko e Lee mantiveram uma linha editorial em plena sintonia com diversas experimentações. Disso não há dúvida alguma. Como o personagem era muito pequeno perto de heróis como Os Vingadores e Homem-Aranha que mantinham sua linha editorial rígida no padrão mercadológico, Doutor Estranho pôde se tornar o parque de diversões da dupla.
Todo o surrealismo, apresentação colorida e psicodélica, com histórias absurdas que flertavam com mitologias diversas temas místicos envoltos por certa penumbra oriental que explodiria nos anos 1970 colaboraram para essa ser a década de maior destaque do super herói – contando até mesmo com desenvolvimento de arcos muitíssimos bem definidos, mas mantendo a média de 400 mil cópias vendidas.
Passados os anos 1970, Doutor Estranho ainda resistiria às duríssimas provas do tempo em 1980, 1990 e 2000, perdendo e recuperando suas edições mensais únicas diversas vezes tornando-se protagonista e coadjuvante de outras revistas melhores sucedidas. Agora, finalmente chegou a hora do personagem receber o maior dos holofotes possíveis: virar um personagem dos blockbusters da Marvel Studios.
A razão da presença de um personagem de menos destaque é muito simples e evidente. Não se trata apenas do projeto de expansão eterna de seu universo cinematográfico, mas de repetir a experiência de 2008 com Homem de Ferro, época onde os direitos ainda se concentravam com a Paramount. Robert Downey Jr. está a quase dez anos encarnando Tony Stark, se tornando cada vez mais caro. E a Marvel precisa de um novo rosto para preencher o vazio do carisma que Downey Jr. deixará quando aposentar sua participação nesses filmes.
Então quem melhor do que Benedict Cumberbatch? Podem dizer tudo sobre os masterminds executivos da Marvel, mas esses caras entendem muito sobre visão de mercado. O que estamos testemunhando é justamente isso: um novo ator consagrado que atrai público, um novo personagem interessantíssimo, um novo nome para sustentar as futuras fases 4 e 5 que ocorrem após a Guerra Infinita, filme previsto para 2018.
Então, para os fãs do Mago Supremo da Marvel, o filme cumpre o que promete? Ele indica mudanças na estrutura Marvel? Sim e não. É um bom longa, mas Doutor Estranho não é, nem de longe, o melhor produto que o estúdio já ofereceu aos seus fãs de carteirinha. Agora enfim chegamos no momento da análise. Caso não queira saber nada do filme, te recomendo deixar de ler aqui mesmo, além de oferecer a minha recomendação – ele vale seu dinheiro e merece ser visto em IMAX. Agora, se não se importa com spoilers, podemos prosseguir e já aviso, o texto é grande então leia com tranquilidade e sem pressa.
O Passado nem tão Estranho
O longa acompanha a história de origem de Stephen Strange de modo muito similar às HQs – o começo também é o melhor segmento da obra. Strange é um neurocirurgião arrogante e autoindulgente, crendo que é praticamente um deus na Terra. Ele se recusa a atender diversos pacientes ‘incuráveis’ para não manchar sua carreira prestigiosa cheia de holofotes e dinheiro abundante.
A caminho de mais uma premiação, dirigindo em altíssima velocidade, Strange se distrai com o tablet já escolhendo possíveis pacientes que lhe trariam ainda mais fama. Sem guiar muito bem a direção, bate em outro carro que provoca um enorme acidente que lhe custará toda a firmeza de suas mãos – seu principal instrumento de trabalho.
Quando finalmente recobra seus sentidos, Strange se revolta com o tratamento cirúrgico que suas mãos receberam e passa a dedicar cada segundo do seu tempo para procurar todas as soluções médicas possíveis do ocidente. Seguindo um caminho cada vez mais sombrio e solitário, Strange descobre que um homem foi curado após sofrer um acidente tão terrível quanto o dele.
Através dessa pessoa, Strange conhece Kamar Taj, um santuário escondido em Catmandu – o incidente incitante do longa é bem fraco, assim como o da HQ. Viajando para o oriente, o protagonista se depara com um mundo estranho repleto de misticismo e de verdades ocultas. Com algum mísero esforço, a Anciã o acolhe e apresenta o incrível mundo místico que pode curar suas mãos destruídas.
Porém, conforme seu treinamento avança, Strange passa a descobrir segredos de sua mestra, além de ser abordado constantemente para que tome parte em uma luta transcendental contra Dormammu, o dominador de planetas que vive na Zona Escura, e seus zelotes liderados por um antigo aluno da anciã, Kaecilius que visa abrir um portal para que Dormammu consuma o planeta.
Escrito por três roteiristas, o texto de Doutor Estranho tenta começar quebrando um pouco a ordem lógica dos filmes Marvel. Cumprindo as exigências de todo bom blockbuster, o longa já apresenta suas cenas de ação em poucos minutos. Kaecilius ataca Kamar-Taj para remover páginas do livro de Cagliostro para realizar um feitiço que permitirá o contato de Dormammu com os zelotes. Nesse interim, a Anciã os persegue até Londres, em uma viagem entre portais, para recuperar o feitiço proibido resultando em uma enorme cena de ação que vemos finalmente uma ação que foge da porradaria típica. Os feitiços que interferem com edifícios na Dimensão do Espelhos servem para contribuir na luta.
Falhando em impedir a fuga de Kaecilius, a Anciã retorna para Kamar Taj e passamos a acompanhar, enfim, a história de Stephen Strange. Os outros filmes Marvel que possuem início similar, já estabelecendo seu vilão para mover a narrativa são Os Vingadores e, de certa forma, Guerra Civil. Pontos para Doutor Estranho em tentar fugir da mesmice ao aplicar urgência nos primeiros minutos.
Com o primeiro ato da história de Stephen Strange, as coisas tendem a seguir o padrão clássico da jornada do herói que todos estamos carecas de saber. Aqui, na seguindo o formato de Homem de Ferro e Thor, onde um arrogante poderoso e inteligente é desprovido de poder por uma condição incapacitante – um homem que depende de uma bateria para sobreviver, um deus transformado em humano – e que, em sua jornada, retomará seu status, mas com a índole evoluída. Dentro dos filmes Marvel, Doutor Estranho divide suas semelhanças formulaicas com esses dois longas, porém fora desse universo é possível encontrar diversas passagens que recordam Matrix, Lanterna Verde e Batman Begins.
O modelo de apresentação é praticamente igual: o personagem em seu cotidiano mágico aplicando seu poder sobre os outros enquanto dispara piadas e dança com músicas pop de sucesso. Após demonstrar o quão tosco Strange pode ser, o roteiro cresce ao apostar no drama – o mais intenso da era Marvel pós-Disney até então. E é justamente nisso que ele brilha: na confrontação do ego imenso de Strange diante de sua deficiência, não somente física, mas de orgulho. O personagem é doente de corpo e alma caindo numa obsessão deprimente em recuperar as mãos.
Nisso, Benedict Cumberbatch impressiona ao sair um pouco do básico garantido por seu grande carisma. Voltamos a ver uma faceta que havia apresentado em Além da Escuridão com seu Khan, quando o personagem se revolve em ódio. É algo menos intenso e caricato, o que colabora muito para nós crermos em sua dor. Isso acontece durante o último diálogo dele com Christine em seu apartamento.
Aliás, esse núcleo com Christine é bastante descartável já que o romance nunca engrena de fato (sem render nem um beijo), além do drama não ser minimamente desenvolvido. Sua função narrativa é mínima servindo apenas como uma espécie de deus ex machina para salvar Strange em uma luta de projeções astrais e para ele reconhecer que a tratava mal, indicando a evolução de seu ego. Somente isso, pois a personagem não ganha nem mesmo desfecho dentro da narrativa – até Natalie Portman recebia mais cuidado dos roteiristas.
Já era normal a Marvel fazer um trabalho ruim com seus vilões, mas tratar os interesses românticos com tão pouca vontade é algo relativamente novo. Pelo menos, Rachel McAdams oferece uma boa atuação automática de luxo.
O drama de Strange no confronto entre ego vs. Inaptidão consome bons minutos do longa, sua motivação para partir a Kamar Taj é bem pautada, inegável. O primeiro ato do longa é muito eficiente e, para ele, somente reservo meus elogios.
Todavia, estranhamente, o longa começa a decair assim que Strange chega a Kamar Taj. O longa possui um ápice visual incrível quando a Anciã “abre” a mente do doutor resultando na sequência visualmente mais arrebatadora do ano. Porém, após um clássico e clichê período que Strange precisa implorar para ser um estudante da Anciã, o filme começa a tropeçar em seu enredo – que é bastante simples por sinal.
A amizade de Mordo e Strange não é bem definida, mas ele serve como tutor para o protagonista. O interessante é que os roteiristas exploram em alguns diálogos toda a admiração que Mordo nutre pela Anciã – tentando justificar a motivação dele virar o antagonista no próximo filme. Quando Strange finalmente domina a magia dos portais em mais uma situação cliché, mas eficiente, temos uma sequência em montagem para mostrá-lo desenvolvendo seus talentos místicos e marciais.
Mesmo se tratando de uma boa sequência, praticamente não há sacrifício. Toda aquela atmosfera mais densa que marcava o primeiro ato desaparece e não volta a surgir. Os roteiristas lançam, através de muita exposição e didatismo, que Strange é fantástico, tem memória fotográfica e facilidade com teorias diversas. Logo, em questão de poucas cenas, o personagem já domina diversos feitiços e línguas mortas. Ao menos tem uma justificativa em uma cena que mostra a projeção astral de Strange lendo enquanto seu corpo físico dorme.
Nessas cenas, aprendemos sobre relíquias místicas, dos usos dos portais, sobre a Dimensão dos Espelhos onde os personagens podem lutar e interferir com a matéria sem que os feitiços afetem o mundo real e também há uma breve explicação sobre o plano de Kaecilius com as páginas rasgadas do livro da Anciã.
Ainda assim, se trata de uma sequência infeliz, pois vemos apenas seu progresso em feitiços primários. Não é como Matrix onde cremos, através de uma boa cena, que Neo sabe kung-fu. Aqui em Doutor Estranho, o domínio só surge através de “anos de teoria e prática” – pena que isso não é cumprido. Nesse meio tempo, os roteiristas encaixam cenas visando movimentar o drama de relacionamento de Christine e Strange, porém são inserts ligeiros esquecíveis.
Até que ele, curiosamente, se depara com o Olho de Agamotto que neste UCM é a Joia do Tempo. Rapidamente ele domina o artefato e suas magias podendo voltar e avançar no tempo. Através disso, remonta as páginas roubadas do livro da Anciã e descobre que ela utiliza energia da Zona Negra para manter-se imortal. É aí que o roteiro burocratiza toda a situação e acaba perdendo o rumo, pois o problema torna-se maior que os desejos do personagem.
Nesse exato momento, a narrativa entra em pausa, pois Kaecilius invade o Kamar Taj a partir dos portais dos Sanctums, templos que projetam auras protetoras na Terra – com o de Londres já destruído, ele tenta invadir outro. Strange, sem compreender direito a situação, invade o de Manhattan para avisar os magos do local. Então temos uma grandiosa cena de ação com Strange batalhando contra os zelotes e Kaecilius. Na luta, descobrimos que Strange não está pronto para lutar contra os antagonistas. De modo bastante inteligente, os roteiristas elaboram situações para que os capangas sejam eliminados usando apenas artefatos presentes no museu do Sanctum – essas resoluções inteligentes de conflitos é que conseguem distanciar esse filme dos outros Marvel.
Essa é praticamente a única sequência onde Kaecilius e Strange dialogam, explorando um pouco mais da motivação do vilão que é bastante estapafúrdia falando sobre vida eterna na dimensão bizarra onde Dormammu vive. O tema da mortalidade e tempo são recorrentes no roteiro, mas nunca aprofundados como se deve. De costume, tudo é resolvido com uma piadinha sem graça típica dos roteiros Marvel.
Aliás, é justamente nessa sequência que os roteiristas e Derrickson introduzem o Manto da Levitação que possui personalidade própria, rendendo algumas boas piadas. Porém, é difícil não se recordar do tapete de Aladdin ao ver a capa agindo como um parceiro “canino” de Strange em diversos momentos. Se é algo positivo ou negativo, sinceramente, não faço ideia, mas imagino que a decisão não deve agradar aos fãs mais ferrenhos das hqs do super-herói.
Após toda a luta, um conceito fresco e satisfatoriamente aplicado finalmente surge nos filmes Marvel: o vilão tentando seduzir o herói. Admito que quando o diálogo se inicia, a tela ganhou outro magnetismo. Seria absolutamente fantástico ver um bom desenvolvimento entre os dois e enfim, estabelecendo um vilão mais inteligente que não parte somente para a porrada. O diálogo influencia sim o protagonista, que passa a duvidar da índole de sua própria mentora naquele universo. Porém, novamente, isso acontece nessa única vez. O roteiro não dará mais chances de desenvolver o tema cerne do longa: tempo e morte.
Se ao menos trocassem aquela cena de ação gigantesca do começo do filme para apresentar um flashback decente, de uns oito ou doze minutos, para estabelecer Kaecilius e sua REAL motivação, o roteiro daria outro dinamismo para o drama de seu lado antagônico ter verdadeira relevância.
Exemplo: algo clichê. Kaecilius era um engravatado de sucesso negligente com sua família até que uma filha ou esposa adoeça gravemente e a medicina apenas ofereça um tempo de sobrevida para os entes queridos. Pronto, aí está uma bela motivação para termos um vilão obcecado com tempo e imortalidade, além de criar uma rixa genuína entre ele e Stephen Strange (representante da medicina). Simples e eficiente, já teria destacado essa obra além do básico. Inclusive, exigindo um pouco mais da atuação morna de Mads Mikkelsen.
Uma das grandes falhas de narrativa de Doutor Estranho é justamente a motivação dos dois lados lutarem. Strange cai nessa luta, ele não está lá porque quer, por sentir vontade em tomar parte em uma luta ancestral e cósmica. Assim como o vilão pouco se importa com a figura de Strange, nem sequer sabe de sua existência ou possui qualquer querela para ser definida em uma luta. Na grande verdade do MCU, Kaecilius não ofereceria perigo nenhum para Strange, seria mais um problema para os Vingadores. Por falta desse atrito, é difícil crer quando o protagonista decide entrar na luta, honrando a Anciã.
A culpa recai exclusivamente nos roteiristas que insistem em peças de ação muito compridas para a segunda metade, nunca dando a chance de resolver as burocracias que eles criam momentos antes. São problemas muito profundos que não recebem a menor resolução: Strange entra em colisão com a Anciã, a chamando de mentirosa por usar energia da Dimensão Negra para manter-se imortal. Então Strange recusa o título de Mestre feiticeiro se negando a proteger o Sanctum de Nova Iorque – ao mesmo tempo, Mordo perde a fé cega que tinha na Anciã. Strange relembra que veio até Kamar-Taj apenas para curar suas mãos e que não deveria entrar nessa luta por: ser um médico, cumprindo o juramento de não tirar vidas e, não entender muito bem o tamanho da ameaça que Dormammu representa.
Após atirar todos esses conflitos em tela, novamente tudo é interrompido para mais uma cena de ação onde, eventualmente, a Anciã morre. Porém, os roteiristas tentam resolver logo esse imbróglio criado com um diálogo final entre a Strange e sua mentora, a fim de gerar a catarse no protagonista, o transformando em herói. De algum modo, sim, a catarse de Strange se encontra nessa peça de diálogo, porém é algo tão fraco e difícil de crer que se torna totalmente esquecível. Além da característica geral da conversa ser bastante estranha.
Nessa altura, o trio de escritores já enterra qualquer possibilidade desenvolver o restante da narrativa por não haver mais tempo. O núcleo romântico com Rachel McAdams nem conclusão ganha – suas participações no hospital tentam elaborar alguma sensação de urgência e vulnerabilidade para Strange, Mordo recebe a motivação mais rasa possível para virar o vilão do próximo filme e Kaecilius já é descartado com facilidade.
O clímax da obra incomoda por diversos motivos, mas o mais gritante deles é a facilidade do domínio que Strange obtém sobre o Olho de Agamotto e a Joia do Tempo. Com esse recurso, ele é capaz de fazer um acordo com Dormammu. Certamente essa “batalha” contra o grande vilão é resolvida de modo inteligente, fugindo do padrão videogame que esses filmes têm tomado. Também é interessante notar como a Marvel soluciona o problema de não possuir os direitos de Galactus que atualmente se encontra no pacote do Quarteto Fantástico, vendido para a Fox durante uma crise editorial profunda.
Aqui, a Marvel já indica que Dormammu funcionará como o Galactus do MCU, já que é referenciado como “colecionador de mundos” e de “força da natureza”. Uma decisão lógica que não agradará muita gente. Também é aberto o conceito de universos paralelos já indicando que veremos mais versões de heróis já estabelecidos no MCU – possivelmente uma Spider Gwen e Miles Morales para as fases 6 e 7 desse projeto infinito para os cinemas.
Outro detalhe irritante é a quantidade expressiva de tiradas cômicas que esse longa possui. É algo tão surreal quanto o que aconteceu em Homem de Ferro 3 Excetuando o começo do longa, impecável e denso, assim que Strange chega a Kamar-Taj parece que Kevin Feige rouba o roteiro do longa e começa a rabiscar a cada cena suas exigências de tiradas cômicas bizarras que arrasam com o clima do longa.
Na luta contra Kaecilius, na primeira, há duas piadas em momentos-chave. Adeus tensão. Segundos depois da morte da Anciã, outra piada boboca. Adeus pesar e reflexão. Strange quase morre durante um duelo? Logo teremos uma piada. O produtor não deixa o filme ter esse respiro importante para o espectador se aprofundar ainda mais em sua atmosfera. Há quem não se importe, porém, no meu caso, isso incomoda e muito.
O Homem do Terror dá as caras na Marvel
O anúncio de Scott Derrickson para dirigir Doutor Estranho foi recebido com bastante euforia e não era por menos: sua especialidade em longas de horror poderiam agregar muito na linguagem do longa e na história da tragédia de Strange. E com certeza é uma escolha muitíssimo acertada. Derrickson é um dos diretores mais talentosos que já pintaram nas telas dos filmes Marvel.
A começar, usa linguagem visual é bem mais elaborada, apostando em uma diversidade muito bem-vinda de planos — evitando o padrão de planos conjuntos, médios e closes presentes em filmes anteriores. No começo, há um show de uso do bom uso das imagens para enfatizar a narrativa. Repare nos muitos enquadramentos que deixam as mãos de Strange em evidência, nas suas mãos ainda sadias, prontas para o exercício da profissão.
Após o acidente, Derrickson já enquadra a mão de Christine guiando a maca para a sala de cirurgia. Passa para o close revelando o estado gravíssimo que o doutor está e então usa a câmera subjetiva revelando as mãos enfaixadas com gazes encharcadas de sangue. Logo depois, o resultado final, com as mãos inchadas e remendadas totalmente imobilizadas com pinos fixados nos ossos. Derrickson apresenta uma vertente gore que nunca tínhamos visto em um filme desses até agora. É bem-vindo, pois agrega muito à narrativa. Ali, marca o ponto sem volta para Strange. O choque da ruptura completa de sua vida regressa.
Depois, Derrickson dá mais folga na ênfase às mãos, mas esses enquadramentos retornam de tempos em tempos exigindo que o espectador monte o contraste em sua mente, compreendendo a dor do protagonista. Infelizmente, as proezas das metáforas visuais se encerram em pouco tempo. Assim que Strange parte para Catmandu, a fotografia de Ben Davis se torna mais comportada com esquemas de iluminação padrão: luzes azimutais difusas de tons dessaturados.
Felizmente, a concepção visual de Doutor Estranho é bem distinta, então mesmo com uma iluminação mais comportada, a jornada visual não é comprometida. Novamente, por conta de Derrickson e da equipe muito competente de efeitos visuais, além do setor de figurino e design de produção. Tudo é realizado com o mais excelente capricho.
Derrickson usa inspirações vindas diretamente de A Origem e de 2001 de Nolan e Kubrick, respectivamente, para tornar a experiência visual desta obra algo diferente de tudo que já viu. Ignorando a gravidade, o diretor faz jogos de encenação extremamente complexos jogando seus personagens em direção a diversos quadrantes dos seus enquadramentos enquanto lutam fisicamente e com magias incandescentes belíssimas.
Com esses elementos, é indiscutível negar a qualidade visual do longa que explora, igualmente, a psicodelia e os efeitos hipnóticos de caleidoscópios. Há até mesmo uma sequência que o próprio cenário rotacional em efeito de caleidoscópio. É algo fenomenal que nunca tinha visto na vida. Tudo nos cenários é aproveitado para gerar esses efeitos ornamentais sejam espelhos, ladrilhos, prédios, esculturas barrocas na madeira, absolutamente tudo. É desde já um dos concorrentes mais fortes para ganhar o vindouro Oscar de efeitos visuais do ano que vem.
Derrickson também é feliz na decupagem das cenas de ação. Ele evita aquela montagem de cortes frenéticos, marca registrada dos irmãos Russo, dando chance da coreografia se desenrolar em poucos planos valorizando as lutas corporais e injetando tensão crescente para tanto.
Particularmente, na movimentação de câmera com o assunto tratado, a cena onde Strange passa a dominar o Olho de Agamotto experimentando com a matéria de uma maçã é bem pensada, apostando no básico do uso do travelling deslocando a câmera em movimentos de semi-circunferência. É uma abordagem de linguagem muito clássica que dá gosto de ver.
Também é muito recomendado que se veja Doutor Estranho em uma tela IMAX já que boa parte do longa é formato para esse padrão, além do uso do 3D ser espetacular com o esquema inteligente de profundidades de campo que se alteram a todo momento garantido efeitos vertiginosos raros. As sequências onde Derrickson congela o tempo e passeia com a câmera pelo espaço também merecem muito destaque.
Talvez, o único momento onde Derrickson erre se encontre justamente no confronto de Strange contra Dormammu – também construído por efeitos psicodélicos. Quando o protagonista prende o ser eterno em um loop temporal, Derrickson aposta no conjunto de elipses que mostram o herói morrendo diversas vezes – umas sete. Graças a pouca quantidade de planos para montar a lógica dessa sequência, fica difícil crer que Dormammu desista tão rápido do inferno criado por Strange, já aceitando o acordo. Ali seria o momento ideal em apostar no efeito de spli screen, brincando com várias telas mostrando as torturas que Strange se submete, novamente inserindo um pouco dos elementos de caleidoscópio previamente apresentados.
Doutor Estranho era a chance da Marvel arriscar em elementos novos e, de certa forma, ela acertou em cheio na inovação. O novo herói garantiu um frescor visual para esse universo cinematográfico que não víamos desde Guardiões da Galáxia. Porém, em total contraste de seus méritos visuais, a narrativa é um das mais fracas e apressadas que já vimos em um longa do tipo. O que torna tudo muito estranho, após presenciarmos um primeiro ato tão feliz em sua realização.
É muito decepcionante ver um filme desse calibre não conseguir estabelecer com qualidade nem mesmo seu protagonista. O restante dos personagens é muito descartável, agregando pouco ou nada. Não fosse o talento de Benedict Cumberbatch e também pelo trabalho melhor desenvolvido em Homem de Ferro, seria bastante complicado aceitar as decisões dúbias dos roteiristas para a segunda metade do longa. Dito isso, notável problema é tamanha esquizofrenia entre apostar na exposição intensa e didatismo para explicar as novas regras da vertente mística da editora enquanto deixam diversas narrativas paralelas de personagens de lado, sem oferecer um mínimo encerramento decente.
A Marvel não pára de apresentar conceitos fenomenais, mas ela precisa parar de incapacitar suas narrativas as limitando em filmes que tentam flertar com temas profundos e interessantes, mas que sempre acabam arranhando esses elementos. Quem leu até aqui, percebeu que Doutor Estranho é um longa com poucos erros, mas de muitas fraquezas oriundas de seu desenvolvimento pífio. Isso está cansando o público e até mesmo a crítica. Ou a Marvel arrisca com mudanças estruturais em sua narrativa ou veremos um grande império ficar cada vez mais limitado em suas finitas possibilidades.
Doutor Estranho (Doctor Strange, EUA – 2016)
Direção: Scott Derrickson
Roteiro: Jon Spaihts, C. Robert Cargill, Scott Derrickson
Elenco: Benedict Cumberbatch, Chiwetel Ejiofor, Tilda Swinton, Rachel McAdams, Mads Mikkelsen, Benedict Wong
Gênero: Aventura
Duração: 115 min
https://www.youtube.com/watch?v=YUfWrIcX4zw
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Crítica | Capitão América 2: O Soldado Invernal - Uma Marvel mais adulta
Em meu texto sobre Thor: O Mundo Sombrio, reclamei sobre a falta de personalidade dos diretores que assumiam projetos dentro do Universo Cinematográfico da Marvel Studios, que mais pareciam produtos sob encomenda do chefão Kevin Feige (não que isso comprometesse por completo o resultado final destes). Mas em Capitão América 2: O Soldado Invernal, a produtora parece ter dado mais liberdade aos irmãos Anthony e Joe Russo, que entregam um projeto radicalmente diferente dos anteriores e capaz de se destacar como um dos pontos altos da trajetória do estúdio – ainda que imperfeito.
A trama é ambientada em Washington, e segue o Capitão Steve Rogers (Chris Evans) trabalhando em conjunto com a Viúva Negra (Scarlett Johansson) para a SHIELD, sob seu pseudônimo bandeiroso. Após uma missão duvidosa, Nick Fury (Samuel L. Jackson) é atacado pelo misterioso Soldado Invernal (Sebastian Stan) e o herói começa a questionar sua lealdade com a agência, que pode estar sofrendo de corrupção em seus departamentos internos.
De cara, já se percebe a intenção dos roteiristas Christopher Markus e Stephen McFeely em conferir uma trama mais adulta e política ao herói da Segunda Guerra. Confesso que me preocupava com a forma com que o personagem renderia um filme-solo nos dias atuais (já que Rogers é essencialmente um homem de seu tempo), mas a dupla acerta ao trazer elementos de espionagem internacional e a paranóia do governo americano em manter seus “inimigos” sob completa vigilância, o que entra em choque com a personalidade maniqueísta de “preto e branco” do personagem criado na guerra contra os nazistas. A performance de Chris Evans é bem mais interessante aqui, já que permite ao ator não só brincar com a ideia de um sujeito fora de seu tempo (inúmeras referências, reparem no caderninho), mas também questionar seu próprio papel nesse mundo.
E é justamente por tais virtudes que é uma pena ver o filme tomar as decisões erradas ao explorar sua ameaça invisível. Partindo do ótimo personagem-subtítulo, que surge como um oponente letal e visualmente criativo (ajuda também que a inspirada trilha sonora de Henry Jackman lhe confira um tema arrepiante), o roteiro de Markus e McFeely decepciona ao trazer de volta ameaças do primeiro filme do herói. Entendo ser um elemento essencial dos quadrinhos do Capitão América, mas se já é trabalhoso fazer funcionar um sujeito trajando a bandeira dos EUA em pleno século XXI, o que dizer de uma divisão científica nazista? Funciona com o Capitão, mas no caso da HIDRA, é apenas mais uma agência querendo dominar o mundo – o que não combina com a abordagem oferecida pelos roteiristas na metade inicial do filme.
Mas, se em seu núcleo a produção apresenta seus problemas, ao menos pode orgulhar-se de soar mais como um filme em sua pura forma do que seus antecessores. O humor é muito melhor distribuído aqui (nada como a palhaçada de Thor ou Homem de Ferro 3) e, como havia comentado ali em cima, os irmãos Russo mudam completamente o estilo dos filmes da Marvel ao apostar em cenas de ação agitadas, com cortes rápidos e muita câmera na mão; uma decisão acertadíssima (e claramente inspirada na trilogia Bourne, de Paul Greengrass) e que garante a O Soldado Invernal seus melhores momentos, que certamente impressionarão o espectador com coreografias excepcionalmente elaboradas e perseguições de carro empolgantes.
No fim, Capitão América 2: O Soldado Invernal revela-se uma das produções mais adultas e bem colocadas da Marvel Studios, ainda que seja comprometida por incongruências temáticas. Empolga pelo espetáculo e alguns momentos de tensão genuína, tornando-se um dos filmes mais interessantes do estúdio até o momento.
Capitão América 2: O Soldado Invernal (Captain America: The Winter Soldier, EUA - 2014)
Direção: Anthony Russo e Joe Russo
Roteiro: Stephen Markus e Stephen McFeely
Elenco: Chris Evans, Scarlett Johansson, Sebastian Stan, Anthony Mackie, Samuel L. Jackson, Robert Redford
Gênero: Aventura, Ação
Duração: 136 min
https://www.youtube.com/watch?v=tbayiPxkUMM
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Crítica | Pânico (1996)
Pânico, de Wes Craven, viola uma das regras mais antigas da história cinematográfica: a narrativa é sobre personagens que vão ao cinema. Eles até já ouviram falar das celebridades. Eles se referem por nome a Tom Cruise, Richard Gere, Jamie Lee Curtis. Eles analisam motivações (“Norman Bates tinha motivo? Hannibal Lecter tinha uma razão para querer comer pessoas?”). OK, os personagens também vão ao cinema em A Última Sessão e os heróis de Os Balconistas trabalham numa locadora.
Até mesmo Bonnie e Clyde mergulhavam nessa metalinguagem. Mas esses filmes focavam no ato de ir ao cinema. Pânico é sobre o conhecimento: os protagonistas estão dentro de uma trama de terror, e devido ao fato de terem assistido a várias obras, sabem o que fazer e o que não fazer. “Não diga ‘volto em breve’”, um dos adolescentes avisa aos outros, “porque sempre que alguém diz isso, ele nunca volta”. De um modo, o plot mostra-se inevitável. Muito do modernismo presente em Pânico recai sobre a desconstrução dos clichês, significando que todos sabem sobre eles na teoria, mas na verdade ninguém consegue entendê-los. Pânico se auto-desconstrói; é como uma daquelas latas de sopa que se esquentam.
Em vez de deixar para o público antecipar os clichês de terror, os personagens conversam sobre eles de forma aberta. “Filmes do gênero são sempre sobre alguma loira de peitos grandes que corre para cima para o assassino encurralá-la”, diz um dos protagonistas. “Odeio quando eles são estúpidos assim”. O longa começa, obviamente, com uma jovem garota (Drew Barrymore) sozinha em sua casa. Ela recebe uma ligação ameaçadora de alguém com ares de Jack Nicholson. Ela está do lado de fora, fitando a escuridão da noite. Ela entra numa cozinha onde vemos muitas facas. Você conhece o procedimento.
Momentos depois, conhecemos outra jovem (Neve Campbell). Seu pai saiu da cidade pelo final de semana. Sua mãe foi assassinada... Bem, exatamente um ano atrás! Seu namorado escala através das trepadeiras e chega à janela de seu quarto. Na escola, rumores sobre cultos de assassinato circulam entre os alunos. O serial killer veste uma fantasia de Halloween intitulada “Pai da Morte”. Mais ligações, mais ataques. Os suspeitos incluem o namorado, o pai, e muitas outras pessoas. Um bom toque: o diretor da escola é o Fonz.
Tudo isso faz parte do plot principal. Pânico não é sobre o tema. É sobre si próprio. Em outras palavras, é sobre personagens que “sabem” que estão numa narrativa. Essas criações leem a revista Fangoria. Eles até utilizam diálogos próprios de filmes: “Fui atacado e quase cortado em pedaços ontem à noite”. A heroína vem rejeitando os avanços de seu par romântico, e bem a tempo de outro personagem comentar que “virgens nunca são as vítimas de filmes de terror. Apenas meninos e meninas maus sofrem as consequências”. Ao perceberem que entraram num loop metalinguístico, outro deles diz: “me vejo sendo interpretada por Meg Ryan. Mas, com sorte, Tori Spelling conseguiria o papel”. A obra em si já é irônica à medida em que o suspense dá lugar ao tragicômico e então volta para o terror. O macabro e o sangrento é usado tanto como uma originalidade quanto como clichê.
Uma das velhas esperas é a cena na qual um deles inesperadamente entra em cena, assustando a heroína, enquanto um acorde sinistro explode na trilha sonora. Amo essas sequências, porque (a) o som carrega uma mensagem de perigo, mas (b) é claro que a pessoa que entra é inofensiva e (c) apesar de não a vermos devido ao estreito enquadramento, no mundo real o personagem assustado conseguiria vê-la o tempo todo.
O filme também nos informa com precisão o modo como os repórteres de TV são retratados em obras do gênero. A jornalista, no caso, é Gale Weathers (Courteney Cox), que faz diversas perguntas interessantes, dentre as quais posso citar, “Como se sente quase sendo a vítima de um serial killer?”. Apesar de ser esperta e cínica, sugere ao xerife local que ambos vão até uma estrada deserta e isolada na qual a noite parece perfeita para se fazer uma caminhada – ao mesmo tempo em que um assassino está à solta.
Craven sempre foi considerado um dos mestres do suspense - e não é por acaso: clássicos do suspense como Quadrilha de Sádicos e O Monstro do Pântano envelhecem de forma misteriosamente maravilhosa a cada ano, além de criarem personagens icônicos que são lidos e relidos pela cultura pop contemporânea como homenagem e idolatria. Muitos dizem que seu ápice reside na franquia A Hora do Pesadelo, tanto pela abordagem de um tema psicológico de forma distorcida - e com a presença do animalesco Freddy Krueger - e recheado com ironias, mas creio que Pânico se firma com a convergência de todos esses elementos. Tanto as piadas internas quanto o auto-conhecimento dos personagens contribui para a construção de uma atmosfera irônica, perigosa e divertidamente defasada. Craven se superou aqui: o filme comenta sobre si próprio.
Infelizmente, o diretor veio a falecer em 2015, mas não em vão: seu gigantesco legado será lembrado por décadas a fio, cujas releituras e adaptações firmarão suas ideias como algumas das mais transgressoras e revolucionárias de todos os tempos.
Pânico (Scream, EUA – 1996)
Direção: Wes Craven
Roteiro: Kevin Williamson
Elenco: Drew Barrymore, Neve Campbell, David Arquette, Courtney Cox Arquette, Mathew Lillard, Skeet Ulrich, Rose McGowan, Jamie Kennedy, Linda Blair
Duração: 111 min.