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Crítica | Doutor Estranho (Com Spoilers)

Obs: somente leia o texto após ver ao filme.
Obs²: o texto é longo, como de costume para análises desse tipo. Leia com calma.

Grandes Sucessos vem de Pequenos Começos

Stephen Strange não teve uma história estranha. Apareceu pela primeira vez em Strange Tales #110 em 1963, plena Era de Prata dos quadrinhos, pleno anos 1960, década conturbada marcada pelo nascimento de movimentos de contracultura, guerras impiedosas no oriente e da ascensão das drogas sintéticas.

O mundo estava mudando a passos largos. A Marvel também. O teor puritano dos anos 1950 marcados pelo sonho americano pós-Guerra estava arrefecendo. A Marvel tropeçaria em outro sucesso criado pela mente brilhante de Steve Ditko.

A criação do personagem marcaria a aposta em um herói místico que fugiria da típica porradaria tão presentes nas páginas da casa das ideias. A criação de Steve Ditko, resenhada em apenas cinco páginas, foi aprovada por Stan Lee para servir como filler nas antologias da publicação Strange Tales, enxergando algum potencial.

Certamente não reconheceu que o embrião das ideias piloto de Ditko para o personagem estariam em plena sintonia com todo o movimento de contracultura e dos efeitos alucinógenos causados por drogas sintéticas que explodiria já no final da mesma década – consequentemente, aumentando a popularidade do personagem. Fato este que muita gente já encarava que o núcleo criativo da HQ já estivesse mais do que afundada em cogumelos e outros alucinógenos.

Demorou até Lee e cia. Decidirem que Doutor Estranho seria o substituto definitivo da publicação Stranger Tales. O personagem só ganhou sua edição mensal em 1968. Porém, até lá, Ditko e Lee mantiveram uma linha editorial em plena sintonia com diversas experimentações. Disso não há dúvida alguma. Como o personagem era muito pequeno perto de heróis como Os Vingadores e Homem-Aranha que mantinham sua linha editorial rígida no padrão mercadológico, Doutor Estranho pôde se tornar o parque de diversões da dupla.

Todo o surrealismo, apresentação colorida e psicodélica, com histórias absurdas que flertavam com mitologias diversas temas místicos envoltos por certa penumbra oriental que explodiria nos anos 1970 colaboraram para essa ser a década de maior destaque do super herói – contando até mesmo com desenvolvimento de arcos muitíssimos bem definidos, mas mantendo a média de 400 mil cópias vendidas.

Passados os anos 1970, Doutor Estranho ainda resistiria às duríssimas provas do tempo em 1980, 1990 e 2000, perdendo e recuperando suas edições mensais únicas diversas vezes tornando-se protagonista e coadjuvante de outras revistas melhores sucedidas. Agora, finalmente chegou a hora do personagem receber o maior dos holofotes possíveis: virar um personagem dos blockbusters da Marvel Studios.

A razão da presença de um personagem de menos destaque é muito simples e evidente. Não se trata apenas do projeto de expansão eterna de seu universo cinematográfico, mas de repetir a experiência de 2008 com Homem de Ferro, época onde os direitos ainda se concentravam com a Paramount. Robert Downey Jr. está a quase dez anos encarnando Tony Stark, se tornando cada vez mais caro. E a Marvel precisa de um novo rosto para preencher o vazio do carisma que Downey Jr. deixará quando aposentar sua participação nesses filmes.

Então quem melhor do que Benedict Cumberbatch? Podem dizer tudo sobre os masterminds executivos da Marvel, mas esses caras entendem muito sobre visão de mercado. O que estamos testemunhando é justamente isso: um novo ator consagrado que atrai público, um novo personagem interessantíssimo, um novo nome para sustentar as futuras fases 4 e 5 que ocorrem após a Guerra Infinita, filme previsto para 2018.

Então, para os fãs do Mago Supremo da Marvel, o filme cumpre o que promete? Ele indica mudanças na estrutura Marvel? Sim e não. É um bom longa, mas Doutor Estranho não é, nem de longe, o melhor produto que o estúdio já ofereceu aos seus fãs de carteirinha. Agora enfim chegamos no momento da análise. Caso não queira saber nada do filme, te recomendo deixar de ler aqui mesmo, além de oferecer a minha recomendação – ele vale seu dinheiro e merece ser visto em IMAX. Agora, se não se importa com spoilers, podemos prosseguir e já aviso, o texto é grande então leia com tranquilidade e sem pressa.

O Passado nem tão Estranho

O longa acompanha a história de origem de Stephen Strange de modo muito similar às HQs – o começo também é o melhor segmento da obra. Strange é um neurocirurgião arrogante e autoindulgente, crendo que é praticamente um deus na Terra. Ele se recusa a atender diversos pacientes ‘incuráveis’ para não manchar sua carreira prestigiosa cheia de holofotes e dinheiro abundante.

A caminho de mais uma premiação, dirigindo em altíssima velocidade, Strange se distrai com o tablet já escolhendo possíveis pacientes que lhe trariam ainda mais fama. Sem guiar muito bem a direção, bate em outro carro que provoca um enorme acidente que lhe custará toda a firmeza de suas mãos – seu principal instrumento de trabalho.

Quando finalmente recobra seus sentidos, Strange se revolta com o tratamento cirúrgico que suas mãos receberam e passa a dedicar cada segundo do seu tempo para procurar todas as soluções médicas possíveis do ocidente. Seguindo um caminho cada vez mais sombrio e solitário, Strange descobre que um homem foi curado após sofrer um acidente tão terrível quanto o dele.

Através dessa pessoa, Strange conhece Kamar Taj, um santuário escondido em Catmandu – o incidente incitante do longa é bem fraco, assim como o da HQ. Viajando para o oriente, o protagonista se depara com um mundo estranho repleto de misticismo e de verdades ocultas. Com algum mísero esforço, a Anciã o acolhe e apresenta o incrível mundo místico que pode curar suas mãos destruídas.

Porém, conforme seu treinamento avança, Strange passa a descobrir segredos de sua mestra, além de ser abordado constantemente para que tome parte em uma luta transcendental contra Dormammu, o dominador de planetas que vive na Zona Escura, e seus zelotes liderados por um antigo aluno da anciã, Kaecilius que visa abrir um portal para que Dormammu consuma o planeta.

Escrito por três roteiristas, o texto de Doutor Estranho tenta começar quebrando um pouco a ordem lógica dos filmes Marvel. Cumprindo as exigências de todo bom blockbuster, o longa já apresenta suas cenas de ação em poucos minutos. Kaecilius ataca Kamar-Taj para remover páginas do livro de Cagliostro para realizar um feitiço que permitirá o contato de Dormammu com os zelotes. Nesse interim, a Anciã os persegue até Londres, em uma viagem entre portais, para recuperar o feitiço proibido resultando em uma enorme cena de ação que vemos finalmente uma ação que foge da porradaria típica. Os feitiços que interferem com edifícios na Dimensão do Espelhos servem para contribuir na luta.

Falhando em impedir a fuga de Kaecilius, a Anciã retorna para Kamar Taj e passamos a acompanhar, enfim, a história de Stephen Strange. Os outros filmes Marvel que possuem início similar, já estabelecendo seu vilão para mover a narrativa são Os Vingadores e, de certa forma, Guerra Civil. Pontos para Doutor Estranho em tentar fugir da mesmice ao aplicar urgência nos primeiros minutos.

Com o primeiro ato da história de Stephen Strange, as coisas tendem a seguir o padrão clássico da jornada do herói que todos estamos carecas de saber. Aqui, na seguindo o formato de Homem de Ferro e Thor, onde um arrogante poderoso e inteligente é desprovido de poder por uma condição incapacitante – um homem que depende de uma bateria para sobreviver, um deus transformado em humano – e que, em sua jornada, retomará seu status, mas com a índole evoluída. Dentro dos filmes Marvel, Doutor Estranho divide suas semelhanças formulaicas com esses dois longas, porém fora desse universo é possível encontrar diversas passagens que recordam Matrix, Lanterna Verde e Batman Begins.

O modelo de apresentação é praticamente igual: o personagem em seu cotidiano mágico aplicando seu poder sobre os outros enquanto dispara piadas e dança com músicas pop de sucesso. Após demonstrar o quão tosco Strange pode ser, o roteiro cresce ao apostar no drama – o mais intenso da era Marvel pós-Disney até então. E é justamente nisso que ele brilha: na confrontação do ego imenso de Strange diante de sua deficiência, não somente física, mas de orgulho. O personagem é doente de corpo e alma caindo numa obsessão deprimente em recuperar as mãos.

Nisso, Benedict Cumberbatch impressiona ao sair um pouco do básico garantido por seu grande carisma. Voltamos a ver uma faceta que havia apresentado em Além da Escuridão com seu Khan, quando o personagem se revolve em ódio. É algo menos intenso e caricato, o que colabora muito para nós crermos em sua dor. Isso acontece durante o último diálogo dele com Christine em seu apartamento.

Aliás, esse núcleo com Christine é bastante descartável já que o romance nunca engrena de fato (sem render nem um beijo), além do drama não ser minimamente desenvolvido. Sua função narrativa é mínima servindo apenas como uma espécie de deus ex machina para salvar Strange em uma luta de projeções astrais e para ele reconhecer que a tratava mal, indicando a evolução de seu ego. Somente isso, pois a personagem não ganha nem mesmo desfecho dentro da narrativa – até Natalie Portman recebia mais cuidado dos roteiristas.

Já era normal a Marvel fazer um trabalho ruim com seus vilões, mas tratar os interesses românticos com tão pouca vontade é algo relativamente novo. Pelo menos, Rachel McAdams oferece uma boa atuação automática de luxo.

O drama de Strange no confronto entre ego vs. Inaptidão consome bons minutos do longa, sua motivação para partir a Kamar Taj é bem pautada, inegável. O primeiro ato do longa é muito eficiente e, para ele, somente reservo meus elogios.

Todavia, estranhamente, o longa começa a decair assim que Strange chega a Kamar Taj. O longa possui um ápice visual incrível quando a Anciã “abre” a mente do doutor resultando na sequência visualmente mais arrebatadora do ano. Porém, após um clássico e clichê período que Strange precisa implorar para ser um estudante da Anciã, o filme começa a tropeçar em seu enredo – que é bastante simples por sinal.

A amizade de Mordo e Strange não é bem definida, mas ele serve como tutor para o protagonista. O interessante é que os roteiristas exploram em alguns diálogos toda a admiração que Mordo nutre pela Anciã – tentando justificar a motivação dele virar o antagonista no próximo filme. Quando Strange finalmente domina a magia dos portais em mais uma situação cliché, mas eficiente, temos uma sequência em montagem para mostrá-lo desenvolvendo seus talentos místicos e marciais.

Mesmo se tratando de uma boa sequência, praticamente não há sacrifício. Toda aquela atmosfera mais densa que marcava o primeiro ato desaparece e não volta a surgir. Os roteiristas lançam, através de muita exposição e didatismo, que Strange é fantástico, tem memória fotográfica e facilidade com teorias diversas. Logo, em questão de poucas cenas, o personagem já domina diversos feitiços e línguas mortas. Ao menos tem uma justificativa em uma cena que mostra a projeção astral de Strange lendo enquanto seu corpo físico dorme.

Nessas cenas, aprendemos sobre relíquias místicas, dos usos dos portais, sobre a Dimensão dos Espelhos onde os personagens podem lutar e interferir com a matéria sem que os feitiços afetem o mundo real e também há uma breve explicação sobre o plano de Kaecilius com as páginas rasgadas do livro da Anciã.

Ainda assim, se trata de uma sequência infeliz, pois vemos apenas seu progresso em feitiços primários. Não é como Matrix onde cremos, através de uma boa cena, que Neo sabe kung-fu. Aqui em Doutor Estranho, o domínio só surge através de “anos de teoria e prática” – pena que isso não é cumprido. Nesse meio tempo, os roteiristas encaixam cenas visando movimentar o drama de relacionamento de Christine e Strange, porém são inserts ligeiros esquecíveis.

Até que ele, curiosamente, se depara com o Olho de Agamotto que neste UCM é a Joia do Tempo. Rapidamente ele domina o artefato e suas magias podendo voltar e avançar no tempo. Através disso, remonta as páginas roubadas do livro da Anciã e descobre que ela utiliza energia da Zona Negra para manter-se imortal. É aí que o roteiro burocratiza toda a situação e acaba perdendo o rumo, pois o problema torna-se maior que os desejos do personagem.

Nesse exato momento, a narrativa entra em pausa, pois Kaecilius invade o Kamar Taj a partir dos portais dos Sanctums, templos que projetam auras protetoras na Terra – com o de Londres já destruído, ele tenta invadir outro. Strange, sem compreender direito a situação, invade o de Manhattan para avisar os magos do local. Então temos uma grandiosa cena de ação com Strange batalhando contra os zelotes e Kaecilius. Na luta, descobrimos que Strange não está pronto para lutar contra os antagonistas. De modo bastante inteligente, os roteiristas elaboram situações para que os capangas sejam eliminados usando apenas artefatos presentes no museu do Sanctum – essas resoluções inteligentes de conflitos é que conseguem distanciar esse filme dos outros Marvel.

Essa é praticamente a única sequência onde Kaecilius e Strange dialogam, explorando um pouco mais da motivação do vilão que é bastante estapafúrdia falando sobre vida eterna na dimensão bizarra onde Dormammu vive. O tema da mortalidade e tempo são recorrentes no roteiro, mas nunca aprofundados como se deve. De costume, tudo é resolvido com uma piadinha sem graça típica dos roteiros Marvel.

Aliás, é justamente nessa sequência que os roteiristas e Derrickson introduzem o Manto da Levitação que possui personalidade própria, rendendo algumas boas piadas. Porém, é difícil não se recordar do tapete de Aladdin ao ver a capa agindo como um parceiro “canino” de Strange em diversos momentos. Se é algo positivo ou negativo, sinceramente, não faço ideia, mas imagino que a decisão não deve agradar aos fãs mais ferrenhos das hqs do super-herói.

Após toda a luta, um conceito fresco e satisfatoriamente aplicado finalmente surge nos filmes Marvel: o vilão tentando seduzir o herói. Admito que quando o diálogo se inicia, a tela ganhou outro magnetismo. Seria absolutamente fantástico ver um bom desenvolvimento entre os dois e enfim, estabelecendo um vilão mais inteligente que não parte somente para a porrada. O diálogo influencia sim o protagonista, que passa a duvidar da índole de sua própria mentora naquele universo. Porém, novamente, isso acontece nessa única vez. O roteiro não dará mais chances de desenvolver o tema cerne do longa: tempo e morte.

Se ao menos trocassem aquela cena de ação gigantesca do começo do filme para apresentar um flashback decente, de uns oito ou doze minutos, para estabelecer Kaecilius e sua REAL motivação, o roteiro daria outro dinamismo para o drama de seu lado antagônico ter verdadeira relevância.

Exemplo: algo clichê. Kaecilius era um engravatado de sucesso negligente com sua família até que uma filha ou esposa adoeça gravemente e a medicina apenas ofereça um tempo de sobrevida para os entes queridos. Pronto, aí está uma bela motivação para termos um vilão obcecado com tempo e imortalidade, além de criar uma rixa genuína entre ele e Stephen Strange (representante da medicina). Simples e eficiente, já teria destacado essa obra além do básico. Inclusive, exigindo um pouco mais da atuação morna de Mads Mikkelsen.

Uma das grandes falhas de narrativa de Doutor Estranho é justamente a motivação dos dois lados lutarem. Strange cai nessa luta, ele não está lá porque quer, por sentir vontade em tomar parte em uma luta ancestral e cósmica. Assim como o vilão pouco se importa com a figura de Strange, nem sequer sabe de sua existência ou possui qualquer querela para ser definida em uma luta. Na grande verdade do MCU, Kaecilius não ofereceria perigo nenhum para Strange, seria mais um problema para os Vingadores. Por falta desse atrito, é difícil crer quando o protagonista decide entrar na luta, honrando a Anciã.

A culpa recai exclusivamente nos roteiristas que insistem em peças de ação muito compridas para a segunda metade, nunca dando a chance de resolver as burocracias que eles criam momentos antes. São problemas muito profundos que não recebem a menor resolução: Strange entra em colisão com a Anciã, a chamando de mentirosa por usar energia da Dimensão Negra para manter-se imortal. Então Strange recusa o título de Mestre feiticeiro se negando a proteger o Sanctum de Nova Iorque – ao mesmo tempo, Mordo perde a fé cega que tinha na Anciã. Strange relembra que veio até Kamar-Taj apenas para curar suas mãos e que não deveria entrar nessa luta por: ser um médico, cumprindo o juramento de não tirar vidas e, não entender muito bem o tamanho da ameaça que Dormammu representa.

Após atirar todos esses conflitos em tela, novamente tudo é interrompido para mais uma cena de ação onde, eventualmente, a Anciã morre. Porém, os roteiristas tentam resolver logo esse imbróglio criado com um diálogo final entre a Strange e sua mentora, a fim de gerar a catarse no protagonista, o transformando em herói. De algum modo, sim, a catarse de Strange se encontra nessa peça de diálogo, porém é algo tão fraco e difícil de crer que se torna totalmente esquecível. Além da característica geral da conversa ser bastante estranha.

Nessa altura, o trio de escritores já enterra qualquer possibilidade desenvolver o restante da narrativa por não haver mais tempo. O núcleo romântico com Rachel McAdams nem conclusão ganha – suas participações no hospital tentam elaborar alguma sensação de urgência e vulnerabilidade para Strange, Mordo recebe a motivação mais rasa possível para virar o vilão do próximo filme e Kaecilius já é descartado com facilidade.

O clímax da obra incomoda por diversos motivos, mas o mais gritante deles é a facilidade do domínio que Strange obtém sobre o Olho de Agamotto e a Joia do Tempo. Com esse recurso, ele é capaz de fazer um acordo com Dormammu. Certamente essa “batalha” contra o grande vilão é resolvida de modo inteligente, fugindo do padrão videogame que esses filmes têm tomado. Também é interessante notar como a Marvel soluciona o problema de não possuir os direitos de Galactus que atualmente se encontra no pacote do Quarteto Fantástico, vendido para a Fox durante uma crise editorial profunda.

Aqui, a Marvel já indica que Dormammu funcionará como o Galactus do MCU, já que é referenciado como “colecionador de mundos” e de “força da natureza”. Uma decisão lógica que não agradará muita gente. Também é aberto o conceito de universos paralelos já indicando que veremos mais versões de heróis já estabelecidos no MCU – possivelmente uma Spider Gwen e Miles Morales para as fases 6 e 7 desse projeto infinito para os cinemas.

Outro detalhe irritante é a quantidade expressiva de tiradas cômicas que esse longa possui. É algo tão surreal quanto o que aconteceu em Homem de Ferro 3 Excetuando o começo do longa, impecável e denso, assim que Strange chega a Kamar-Taj parece que Kevin Feige rouba o roteiro do longa e começa a rabiscar a cada cena suas exigências de tiradas cômicas bizarras que arrasam com o clima do longa.

Na luta contra Kaecilius, na primeira, há duas piadas em momentos-chave. Adeus tensão. Segundos depois da morte da Anciã, outra piada boboca. Adeus pesar e reflexão. Strange quase morre durante um duelo? Logo teremos uma piada. O produtor não deixa o filme ter esse respiro importante para o espectador se aprofundar ainda mais em sua atmosfera. Há quem não se importe, porém, no meu caso, isso incomoda e muito.

O Homem do Terror dá as caras na Marvel

O anúncio de Scott Derrickson para dirigir Doutor Estranho foi recebido com bastante euforia e não era por menos: sua especialidade em longas de horror poderiam agregar muito na linguagem do longa e na história da tragédia de Strange. E com certeza é uma escolha muitíssimo acertada. Derrickson é um dos diretores mais talentosos que já pintaram nas telas dos filmes Marvel.

A começar, usa linguagem visual é bem mais elaborada, apostando em uma diversidade muito bem-vinda de planos — evitando o padrão de planos conjuntos, médios e closes presentes em filmes anteriores. No começo, há um show de uso do bom uso das imagens para enfatizar a narrativa. Repare nos muitos enquadramentos que deixam as mãos de Strange em evidência, nas suas mãos ainda sadias, prontas para o exercício da profissão.

Após o acidente, Derrickson já enquadra a mão de Christine guiando a maca para a sala de cirurgia. Passa para o close revelando o estado gravíssimo que o doutor está e então usa a câmera subjetiva revelando as mãos enfaixadas com gazes encharcadas de sangue. Logo depois, o resultado final, com as mãos inchadas e remendadas totalmente imobilizadas com pinos fixados nos ossos. Derrickson apresenta uma vertente gore que nunca tínhamos visto em um filme desses até agora. É bem-vindo, pois agrega muito à narrativa. Ali, marca o ponto sem volta para Strange. O choque da ruptura completa de sua vida regressa.

Depois, Derrickson dá mais folga na ênfase às mãos, mas esses enquadramentos retornam de tempos em tempos exigindo que o espectador monte o contraste em sua mente, compreendendo a dor do protagonista. Infelizmente, as proezas das metáforas visuais se encerram em pouco tempo. Assim que Strange parte para Catmandu, a fotografia de Ben Davis se torna mais comportada com esquemas de iluminação padrão: luzes azimutais difusas de tons dessaturados.

Felizmente, a concepção visual de Doutor Estranho é bem distinta, então mesmo com uma iluminação mais comportada, a jornada visual não é comprometida. Novamente, por conta de Derrickson e da equipe muito competente de efeitos visuais, além do setor de figurino e design de produção. Tudo é realizado com o mais excelente capricho.

Derrickson usa inspirações vindas diretamente de A Origem e de 2001 de Nolan e Kubrick, respectivamente, para tornar a experiência visual desta obra algo diferente de tudo que já viu. Ignorando a gravidade, o diretor faz jogos de encenação extremamente complexos jogando seus personagens em direção a diversos quadrantes dos seus enquadramentos enquanto lutam fisicamente e com magias incandescentes belíssimas.

Com esses elementos, é indiscutível negar a qualidade visual do longa que explora, igualmente, a psicodelia e os efeitos hipnóticos de caleidoscópios. Há até mesmo uma sequência que o próprio cenário rotacional em efeito de caleidoscópio. É algo fenomenal que nunca tinha visto na vida. Tudo nos cenários é aproveitado para gerar esses efeitos ornamentais sejam espelhos, ladrilhos, prédios, esculturas barrocas na madeira, absolutamente tudo. É desde já um dos concorrentes mais fortes para ganhar o vindouro Oscar de efeitos visuais do ano que vem.

Derrickson também é feliz na decupagem das cenas de ação. Ele evita aquela montagem de cortes frenéticos, marca registrada dos irmãos Russo, dando chance da coreografia se desenrolar em poucos planos valorizando as lutas corporais e injetando tensão crescente para tanto.

Particularmente, na movimentação de câmera com o assunto tratado, a cena onde Strange passa a dominar o Olho de Agamotto experimentando com a matéria de uma maçã é bem pensada, apostando no básico do uso do travelling deslocando a câmera em movimentos de semi-circunferência. É uma abordagem de linguagem muito clássica que dá gosto de ver.

Também é muito recomendado que se veja Doutor Estranho em uma tela IMAX já que boa parte do longa é formato para esse padrão, além do uso do 3D ser espetacular com o esquema inteligente de profundidades de campo que se alteram a todo momento garantido efeitos vertiginosos raros. As sequências onde Derrickson congela o tempo e passeia com a câmera pelo espaço também merecem muito destaque.

Talvez, o único momento onde Derrickson erre se encontre justamente no confronto de Strange contra Dormammu – também construído por efeitos psicodélicos. Quando o protagonista prende o ser eterno em um loop temporal, Derrickson aposta no conjunto de elipses que mostram o herói morrendo diversas vezes – umas sete. Graças a pouca quantidade de planos para montar a lógica dessa sequência, fica difícil crer que Dormammu desista tão rápido do inferno criado por Strange, já aceitando o acordo. Ali seria o momento ideal em apostar no efeito de spli screen, brincando com várias telas mostrando as torturas que Strange se submete, novamente inserindo um pouco dos elementos de caleidoscópio previamente apresentados.

Doutor Estranho era a chance da Marvel arriscar em elementos novos e, de certa forma, ela acertou em cheio na inovação. O novo herói garantiu um frescor visual para esse universo cinematográfico que não víamos desde Guardiões da Galáxia. Porém, em total contraste de seus méritos visuais, a narrativa é um das mais fracas e apressadas que já vimos em um longa do tipo. O que torna tudo muito estranho, após presenciarmos um primeiro ato tão feliz em sua realização.

É muito decepcionante ver um filme desse calibre não conseguir estabelecer com qualidade nem mesmo seu protagonista. O restante dos personagens é muito descartável, agregando pouco ou nada. Não fosse o talento de Benedict Cumberbatch e também pelo trabalho melhor desenvolvido em Homem de Ferro, seria bastante complicado aceitar as decisões dúbias dos roteiristas para a segunda metade do longa. Dito isso, notável problema é tamanha esquizofrenia entre apostar na exposição intensa e didatismo para explicar as novas regras da vertente mística da editora enquanto deixam diversas narrativas paralelas de personagens de lado, sem oferecer um mínimo encerramento decente.

A Marvel não pára de apresentar conceitos fenomenais, mas ela precisa parar de incapacitar suas narrativas as limitando em filmes que tentam flertar com temas profundos e interessantes, mas que sempre acabam arranhando esses elementos. Quem leu até aqui, percebeu que Doutor Estranho é um longa com poucos erros, mas de muitas fraquezas oriundas de seu desenvolvimento pífio. Isso está cansando o público e até mesmo a crítica. Ou a Marvel arrisca com mudanças estruturais em sua narrativa ou veremos um grande império ficar cada vez mais limitado em suas finitas possibilidades.

Doutor Estranho (Doctor Strange, EUA – 2016)

Direção: Scott Derrickson
Roteiro: Jon Spaihts, C. Robert Cargill, Scott Derrickson
Elenco: Benedict Cumberbatch, Chiwetel Ejiofor, Tilda Swinton, Rachel McAdams, Mads Mikkelsen, Benedict Wong
Gênero: Aventura
Duração: 115 min

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Publicado por Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema seguindo o sonho de me tornar Diretor de Fotografia. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas.

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