Em 2014, a Marvel Studios faria sua aposta mais arriscada que abriria as portas para os títulos mais esquecidos e impopulares ganharem suas próprias adaptações cinematográficas – detalhe, isso também serviu para alguns heróis do selo DC. Guardiões da Galáxia era um tiro incerto por conta da enorme responsabilidade que o filme teria dentro do MCU: apresentar uma nova equipe de heróis sem superpoderes e, de quebra, estabelecer com clareza o universo cósmico da editora.
O resultado foi melhor do que todos esperavam. Estourando todas as previsões anteriores, o filme arrecadou mais de 750 milhões mundialmente – valor expressivo ante os 170 milhões investidos na sua produção. James Gunn e seus Guardiões da Galáxia viraram os queridinhos de 2014 e com mérito.
Acompanhamos a história de Peter Quill, um fora da lei que foi abduzido quando criança. Vivendo entre os piores, Quill vira um saqueador tapado com pinta de Indiana Jones. Um dos artefatos que está em sua mira é um orbe misterioso. Já recuperando o item, torna-se alvo de diversos mercenários e alienígenas poderosos que também estão à procura do orbe, seja para vende-lo ou para descobrir seus misteriosos segredos.
Fugindo de diversos captores, Quill acaba preso durante uma perseguição juntamente com quem o perseguia: um guaxinim falante, uma planta gigantesca e uma alienígena movida por seu ódio. Na cadeia, conseguem aceitar as diferenças um do outro e armar um plano para escapar do cárcere a fim de venderem o orbe para o Colecionador em Luganenhum. Na fuga, outro alienígena brutamontes, Drax, entra para a equipe em busca de saciar sua sede vingança contra Ronan, o Acusador, o principal oponente que caça o grupo em sua jornada.
Se há maior mérito para Guardiões da Galáxia é resgatar a qualidade narrativa que havíamos visto em Homem de Ferro enquanto consegue se tratar de uma história que parece descolada de todos os filmes anteriores do universo cinematográfico da Marvel. O roteiro de James Gunn, também diretor da obra, e de Nicole Perlman consegue render a grande maioria dos vícios que prejudicaram outros filmes da Fase 2 – as piadas fora de hora, a falta de desenvolvimento do drama, da real ameaça do perigo, etc.
Assim que o filme começa já é possível perceber essa pegada mais distinta ao apresentar o principal drama que assombrará o protagonista no restante do filme: a morte de sua mãe, vítima de um câncer possivelmente causado pelo contato com o pai de Quill, um extraterrestre feito de “pura luz” – importante lembrar que esse indício é sugerido muito sutilmente e nunca mais volta a ser mencionado como algoz da doença no restante do longa.
Antes de morrer, ela dá um presente para o filho que não larga o walkman com uma Mixtape criada por ela antes da doença. Logo, o instrumento que justifica todas as músicas pop dos anos 1970 que agitam a trilha musical que preenchem cenas divertidas repletas de bom humor é um dispositivo paradoxal muito eficiente para comprarmos o drama de Quill. Se trata da representação de toda a saudade, carinho e luto pela morte precoce de sua mãe e também do adeus ao seu planeta natal e família, já que pouco depois Gunn mostra o protagonista já adulto, manipulando seu querido walkman.
O escopo intimista e dramático rapidamente dá lugar a diversão e carisma que marcam a atmosfera de Guardiões da Galáxia durante a abertura dos créditos com Quill cantando “Come and Get Your Love” enquanto explora um planeta desolado, local que a orbe está localizada – um começo que lembra muito Caçadores da Arca Perdida, aliás.
Os roteiristas então seguem esse ritmo, variando entre cenas espalhafatosas muito cômicas – característica pedigree dos filmes Marvel, para outras onde o drama é esboçado, mas nunca plenamente desenvolvido sendo apenas o protagonista a receber um arco completo. Pelo menos, Gunn consegue delinear muitíssimo bem a cada apresentação de um novo personagem – mesmo que todos já sejam arquétipos muito conhecidos e já utilizados até mesmo em Os Vingadores.
O rol inteiro dos heróis de Guardiões serve como alívio cômico, mesmo que a dupla Rocket Raccoon e Groot sejam os mais funcionais para tanto – Drax com sua literalidade explícita também contribui. Como havia dito, Gunn soube dosar bem as piadas para que ficassem orgânicas dentro das cenas, nunca interferindo com ápices dramáticos ou de tensão como acontece em Homem de Ferro 3 e Doutor Estranho. Todos os personagens possuem seu próprio drama apresentado através de diálogos ou das muitas brigas que tem entre si – tal qual como Os Vingadores onde o grupo somente se confraterniza no clímax do filme.
Rocket é o personagem que carrega a maior carga dramática do longa, mesmo sendo o mais utilizado para fazer piadas e soltar frases de efeito. Ele carrega todo o ódio existencial porque reconhece que foi uma criação bizarra de mentes cruéis, além de saber que é o único de sua espécie. Drax quer vingar-se pelo assassinato de sua família cometido por Ronan – é um arco bom, mas de uma nota só. Gamora desiste de sofrer abusos por tantos anos e decide trair Ronan e Thanos, seu pai e “mestre” do antagonista do longa. Groot é um monstro de Frankenstein que só possui resquícios de bondade e ingenuidade. Seu único “conflito”, se é que podemos chamar assim, é proteger os amigos a qualquer custo. Graças a essa pureza do personagem, Gunn consegue criar momentos verdadeiramente belos, seja com a flor que ele distribui a uma criança ou quando solta seus pólens iluminados.
Só de haver a sugestão de dramas mais profundos já me deixa mais satisfeito do que geralmente ocorre na fórmula Marvel – detalhe que todos os conflitos ficam latentes, mesmo que o longa não dê oportunidade para concluí-los. Também se trata de uma narrativa de grupo onde a ação tem que ser priorizada por conta de sua natureza blockbuster de verão então afirmo com tranquilidade que desde X-Men 2, eu não via uma narrativa desse tipo ser bem explorada como acontece aqui.
Entretanto, mesmo com um roteiro divertido que se aproveita de arquétipos bem estabelecidos, além de dosar muito bem seu drama, Guardiões da Galáxia possui notáveis problemas. Estruturalmente é tudo bem encaixado e orgânico, mesmo que o longa perca fôlego no intervalo entre o segundo e o terceiro ato. Gunn brinca com os gêneros da ópera espacial aliada com elementos de prison break e de filmes de expedições. Um dos elementos que cansou na época era novamente o uso de um Joia do Infinito como Macguffin para mover toda a narrativa. Ou seja, o longa possuía diversos clichês Marvel que assolaram a medíocre segunda fase do MCU.
Tanto que até um dos conflitos secundários que possui sua importância lembra muito a relação entre Bucky e Steve Rogers. Trata-se da briga de Nebula com Gamora, irmãs que escolhem lados opostos em uma jornada com a mesma finalidade. Até mesmo a conclusão desse arco é igualzinha ao que acontece em Soldado Invernal. Outro elemento que já estava cansando é o clímax que aposta em ameaças que vem do céu, em rota de colisão com a superfície. Isso já era visto em Mundo Sombrio, Soldado Invernal, Os Vingadores e ainda seria repetido em Era de Ultron. Ao menos, aqui, Gunn conduziu magistralmente uma sequência criativa de luta aérea a la Star Wars e Top Gun.
E claro, como não poderia deixar de ser, o maior problema que a Marvel possui até hoje: o vilão descartável #X. No caso, esse aqui seria o vilão descartável #10. Ronan não é pior de todos os antagonistas apresentados graças à atuação de Lee Pace e também por conta do problema sociopolítico que ele representa. Novamente, é algo rabiscado na narrativa, mas ao menos mostra a motivação de Ronan. Um intolerante que não lida com o tratado de paz entre Xandar e os Kree – duas civilizações que estavam em guerra por milênios. Logo, ele busca o orbe para Thanos sob a promessa de ele destruir Xandar.
Mesmo se tratando de um vilão raso e relativamente estúpido, ao menos há uma reviravolta no núcleo, deixando Ronan menos submisso a Thanos. Algo interessante, mas ainda assim, insatisfatório. O personagem continua unidimensional e de peso pífio. Todo o conflito entre bem e mal aqui é telegrafado e previsível o que torna toda a narrativa de Guardiões exatamente como um passeio em uma montanha russa: é algo muito divertido, mas que você já sabe todo o percurso e a conclusão antes mesmo de embarcar na aventura.
Com o auxílio de uma narrativa muito convidativa para a criatividade, James Gunn brilha na direção. O que é algo deveras impressionante graças a sua inexperiência com produções dessa escala ou com cenas de ação tão complexas. O que Gunn domina completamente é sua habilidade com diversos tipos de linguagem cinematográfica. O cara é mestre em atmosfera.
Repare em cenas de drama, como a do começo do filme. Ao contrário de diversos outros diretores Marvel, Gunn aproveita e muito a fotografia excelente de Ben Davis para incutir essas emoções no espectador. A iluminação fraca, barroca, de sombras bem delineadas, de tons mistos entre um bege nauseabundo e o branco esverdejado, mantendo a profundidade de campo bem restrita contribuem para focar nosso olhar e pensamentos na dor de Quill ao ver sua mãe morrer diante de seus olhos. Logo depois, em sua abdução, os enquadramentos distantes revelando um bosque tenebroso cheio de névoa já sugerem que algo de maligno acontecerá com o garoto – a abdução.
Antes dos créditos, os tons sóbrios ainda se mantem, até Quill ligar seu walkman. Nos créditos, já ocorre a primeira subversão de expectativa que Gunn tanto trabalhará ao longo do filme. O ambiente inóspito do planeta que acompanha o ser esquisito de máscara tenebrosa subitamente se transforma em um passeio divertido e animado com Quill revelando seu rosto. Outros exemplos genuínos de subversão de expectativa e do domínio sobre linguagem que Gunn possui são: a cena do diálogo quase romântico entre Quill e Gamora quando ele explica sobre Footloose; na caminhada triunfal do grupo se dirigindo à batalha final e também do embate final entre Ronan e Quill.
Entretanto, o diretor não vive somente de subversão e trabalha seguindo a cartilha em momentos adequados. Vejamos: toda a sequência da fuga no Kyln, a prisão galáctica; quando ocorre a primeira catarse em Quill ao salvar Gamora no espaço – detalhe para os belíssimos planos de profunda contemplação, e onde Gunn arrisca, corretamente, na linguagem do western spaguetti na cena de glória de Yondu, após a destruição de sua nave.
É a direção mais entusiasmada dos filmes Marvel, com toda a certeza. A variedade de planos, de sacadas inteligentes de encenação, do completo aproveitamento da fotografia de cores explosivas e esquemas de iluminação mais elaborados de Ben Davis que finalmente eleva a qualidade de cinematografia dos cinzentos longas anteriores da editora – até agora, o trabalho fotográfico de Guardiões é insuperável dentro do MCU, e, principalmente, do perfeito equilíbrio entre drama e comédia. Não faço ideia como, mas Gunn conseguiu render Kevin Feige para deixar as sequências dramáticas intocadas, sem alívios cômicos irritantes.
Ironicamente, Gunn não erra nas muitas sequencias de ação, tornando toda a decupagem muito orgânica e fácil de ser compreendida, mas sim em alguns dos diálogos entre o grupo. O exemplo mais nítido dos excessos de cortes secos em uma conversa ocorre justamente no discurso catártico que Quill dispõe em sua última tentativa de unir o grupo. Nada muito grave, mas certamente incômodo.
Também é impossível encerrar a crítica sem comentar do ótimo trabalho do elenco. Principalmente o de Zoe Saldana e Chris Pratt que conseguem dominar com facilidade todos os picos dramáticos que seus papeis exigem apostando muito na força de seus olhares. Dave Bautista, Bradley Cooper e Vin Diesel também realizam ótimo trabalho embora seus papéis mais chamem a atenção pela competência surreal dos departamentos de efeitos visuais, animação e maquiagem.
É perfeitamente compreensível caso alguém desgoste de Guardiões da Galáxia. Com certeza não é um filme que poderá cair no gosto de todos, mesmo esbanjando tanto carisma. Porém, conseguiu me agradar e olha que os filmes Marvel conseguem acumular muitas decepções na minha caderneta. O trabalho é exemplar como já foi vastamente explorado e a direção de James Gunn certamente é o grande diferencial. O diretor-roteirista acertou em cheio a ponto de os notáveis problemas da narrativa não incomodarem muito. O sentimento que predomina é a certeza de termos visto um filme excelente que nos fisga, com certeza, pela emoção.
Guardiões da Galáxia (Guardians of the Galaxy, EUA – 2014)
Direção: James Gunn
Roteiro: James Gunn e Nicole Perlman
Elenco: Chris Pratt, Zoe Saldana, Dave Bautista, Bradley Cooper, Vin Diesel, Karen Gillan, Lee Pace, Josh Brolin, Michael Rooker, John C. Reilly, Glenn Close, Sean Gunn
Gênero: Aventura, Ficção Científica
Duração: 122 min