Crítica | O Segredo dos Seus Olhos
O cinema argentino é extremamente relevante para a indústria cinematográfica mundial. É, indiscutivelmente, o melhor cinema que a América Latina pode oferecer. Já recebeu sete indicações para a categoria de Oscar Estrangeiro sendo que ganhou o prêmio duas vezes. A primeira com História Oficial em 1985. Já na segunda vez, mais emocionante, disputando com A Fita Branca, a Argentina levou o troféu com está belíssima obra que certamente está na lista de “Filmes para ver antes de morrer” de muita gente. Trata-se, nada mais, nada menos, de O Segredo dos seus Olhos.
Utilizando o clichê a seu favor, o filme começa com Benjamin Esposito tentando colocar suas memórias no papel. Está a fim de escrever um romance autobiográfico. Porém, um caso mal resolvido do passado insiste em assombrar seu sono das tranquilas noites argentinas. Logo, Esposito começa a retomar contato com as pessoas que trabalharam com ele no caso que marcou sua vida durante seus anos de labuta no Juizado. O crime, obsceno, estupro seguido de morte segue sem um culpado. Até agora.
Simples, porém, eficiente. Juan José Campanella trabalha com o autor do livro homônimo, Eduardo Sacheri, para adaptar essa ótima história para as telonas. Logo, fidelidade à obra original nem chega a ser uma preocupação aqui. O Segredo de seus olhos é mais uma manifestação poderosa, mas ao mesmo tempo singela dos maiores dramas humanos desde o nosso surgimento neste vasto planeta: o amor e, no caso, sua cria, a melancolia.
Para isso, os dois roteiristas investem em muitos diálogos e pouca ação. Logo, já aviso, esse filme tem um ritmo muito diferente dos filmes hollywoodianos que estamos habituados a ver. Mas também não se trata de um marasmo digno de Alain Resnais ou de Yasujiro Ozu. Se fosse para comparar, diria que Segredo tem um ritmo similar ao de Sangue Negro e de outros filmes de Paul Thomas Anderson.
Voltando ao texto do filme, Campanella sabe muito bem como extrair o máximo dos personagens. O quarteto principal é bem desenvolvido durante o longo flashback que constitui a maioria do filme. Temos Benjamín, o protagonista. Sua chefe e interesse romântico, Irene. Pablo Sandoval, o amigo alcoólatra e colega de trabalho de Benjamín e por fim, Ricardo Morales, o viúvo da vítima que procura vingança a qualquer preço. Assim como na vida, os personagens ganham sua complexidade através do relacionamento entre eles.
O mais rico, evidentemente, é Benjamín e Irene, um arco romântico com pinceladas melodramáticas, já que a indecisão sobre o futuro do casal é constante. O romance aqui, apesar de ter a tensão sexual sempre presente, transborda melancolia e frustração conforme a história progride. Mesmo que haja essa problematização constante, o romance não cansa, além de ter me lembrado de outra história de amor que gosto muito: O Amor nos Tempos do Cólera de Gabriel Garcial Marquéz. É simplesmente bonito de ver o amor medroso entre os frígidos Benjamin e Irene
Com Pablo, descobrimos a faceta cômica de Benjamin, um sarcasmo implacável e impaciência constante. Ainda assim, novamente, é trabalhado o amor pelo amigo e também a melancolia diante da impotência com o vício que destrói a sua vida privada. Já com Ricardo, descobrimos o desejo da violência de Benjamín por uma vingança que não pertence a ele, mas sim ao viúvo. É interessante que os roteiristas destinam, sempre, ao menos uma cena para inserir um diálogo mais complexo e emotivo. Absolutamente todos são ótimos, mesmo que simples.
Tirando esse quarteto que cresce progressivamente na narrativa – ainda que alguns sejam polarizados como Pablo em seus momentos de embriaguez e lucidez ou com Ricardo durante o desejo homicida e no luto, outros personagens servem de muleta para gerar conflitos ou fazer volume. O caso mais fácil de notar é o do juiz Fortuna que supervisiona o gabinete que o trio trabalha, mas isso ocorre também com o assassino que nós nunca conhecemos de fato, apesar da atuação crua e visceral de Javier Godino. Outro personagem que serve apenas para “antagonizar” é a figura superficial de Romano, ainda que o texto o use para criticar duramente o sistema.
Além de um excelente trabalho com os personagens, o roteiro trabalha com algo que muitos roteiristas brasileiros nem sonham em fazer: linguagem coloquial – quer um exemplo? Veja Qualquer Gato Vira Lata entre outras neochanchadas estúpidas para entender o que digo.
Isso aproxima e muito os personagens de todos nós. Eu sempre aplaudo de pé decisões certeiras de diálogos que envolvam a fala como ela é dita pelos seres humanos reais, fora da diegese – desde que seja condizente com a época. Ou seja, cheia de palavrões e bairrismos. É algo que emana paixão. A paixão por falar reforçando nossas expressões faciais tornando a emoção algo realmente crível.
Além do roteiro ser uma peça ótima para o saldo geral do filme, os atores é que dão vida de modo esplendido. Começando por Ricardo Darín que dá ao seu Benjamín o ar melancólico através de seus olhares derrotados. Sim, Benjamín é um personagem derrotado desde antes de pegar no caso. Mesmo que as palavras não sejam ditas, Darín torna possível a nós interpretarmos os seus fantasmas do passado com o olhar e a postura. Todavia, Darín não faz de seu personagem um deprimido, pois a vontade de sair da situação medíocre é grande e Benjamín se dedica a resolver o caso e prender o assassino. Porém, ao longo do filme, vemos o personagem ser derrotado em absolutamente todas as esferas – trabalho, amigos, relacionamento, desejos pessoais, educação, renda, etc. E isso é absolutamente genial, já que ele triunfa, de fato, apenas uma vez.
É injusto dizer que apenas Benjamín é derrotado. Na verdade, assim como trabalha Darín, Soledad Villamil, Pablo Rago e Guillermo Francella conseguem superar a barreira do texto e transmitir os desejos e estados de espírito de seus personagens com clareza, além de conferir um esboço satisfatório para o passado deles. Através de Irene, Soledad vai progressivamente demonstrando sua frustração diante da “impotência” de Benjamín – o que torna a célebre cena do interrogatório absolutamente perfeita. Enquanto Benjamín é frustrado com o trabalho e na esfera amorosa, Irene é realizada no trabalho, mas o campo amoroso passa a elipsar sua felicidade profissional. Logo, Benjamín, além de deprimido, é um agente depressivo para Irene ainda que dependa integralmente dele a felicidade conjunta dos dois – por medo, se torna egoísta. Já com esse parágrafo, deu para notar como os personagens são muito esféricos.
Já Rago e Francella consegue elevar seus personagens também através da atuação poderosa. Os dois são complexos, Rago interpreta Morales e protagoniza cenas poderosas que se concentram apenas nele – como a do telefonema. E Francella, outro deprimido, com o alcoólatra Pablo Sandoval. Fora isso, é importante salientar, ao contrário de um mal que acomete ao nosso cinema, além da pobreza estética e narrativa, os atores argentinos nunca, absolutamente nunca, pendem para a caricatura. É algo centrado, pés no chão e hiper-realista que nos afeta de modo direto. Para mim, aqueles personagens existiam de fato e não era apenas encenações tridimensionais do script.
Apesar de se tratar de uma história de mistério, quase um noir, com muitos personagens frustrados, Campanella não permite que seu filme se transforme em algo deprimente, chato ou sem vida. Isso se dá por sua direção competente em dosar muito bem o drama com a comédia enquanto leva a investigação de Benjamín por anos a fio.
Além de saber equilibrar o teor do seu filme, Campanella tem um modo muito característico de filmar. Nesse ponto, começa minha parte favorita da crítica – a técnica que dá vida a arte. De cara, percebemos que ele adora explorar o canto dos enquadramentos. Isso acontece em diversos planos. Ele coloca seus atores praticamente no limite do campo filmado criando um incomodo visual como se todos eles se sentissem acuados em determinados momentos. Depois, também nos enquadramentos, Campanella pede para seu fotográfo, Félix Monti, usar objetivas grande angulares. O resultado disso também é outro incomodo visual, mas diferente. Com o uso das grandes angulares para decupar alguns diálogos no clássico campo/contracampo, Campanella torna os personagens maiores do que são enquanto o secundário é diminuído, distante, além de “claustrofobizar” a encenação. Os diálogos que tangem o conflito amoroso de Benjamín e Irene são onde a técnica é utilizada. E, novamente, agora através do olhar do cineasta e da câmera, o espectador é recompensado com um prato cheio para apreciar e interpretar esses detalhes que fazem toda a diferença. Perceba, é um jogo de campo/contracampo como qualquer outro, simples, mas o uso do recurso fotográfico e do enquadramento conseguem tornar a decupagem de Campanella superior a de muitos filmes.
O Segredo de Seus Olhos é um dos pouquíssimos filmes que utilizam a linguagem cinematográfica em favor da narrativa 100% do tempo. Absolutamente todos os enquadramentos são pensados em favor dela, além de serem belíssimos. Duvida? Até mesmo establishing shots do Juizado, pondo em evidencia as enormes pilastras que simbolizam a força do poder Jurídico, também servem para enclausurar os personagens em ambiente depressivo e tenso.
Portanto, é óbvio que Campanella possui um jogo de encenação rico, mas eu ainda nem entrei no mérito da movimentação de câmera que é majestosa e estável – apenas em momentos-chave o cineasta utiliza a shaky cam. Assim como os enquadramentos voltados ao diálogo, Campanella usa outra técnica de decupagem cinematográfica. Uma que foi utilizada exaustivamente por Alfred Hitchcock. No cinema, temos, popularmente, duas técnicas que são replicadas em diversos filmes e seriados. A mais comum chama-se Master Shot na qual é definido um plano principal – normalmente um plano conjunto, então os sucessivos planos se originam dele. Exemplo claro desse tipo de decupagem são os seriados de sitcom. Já Campanella quebra essa lógica e trabalha com a complexa Triple Take – na qual a decupagem se dá pela câmera seguindo uma ordem muito específica de planos sucessivos evitando sempre o master shot. Para ilustrar, pense na sequencia onde a mãe do menino sequestrado em O Homem que Sabia Demais canta para uma restrita plateia a canção Whatever Will Be enquanto o pai, James Stewart, vasculha a casa para encontrar seu filho.
Acredite, decupar em Triple Take é algo complexo, é como se o realizador já tivesse a cena praticamente pronta e visualizada em sua cabeça. Para alguns, isso é natural de tão própria que é a linguagem cinematográfica para sua vida. Para outros, somente com muito estudo para realizar essa riqueza visual.
Pode parecer que esse filme é rico em quantidade de planos, mas se engana quem pensa isso. Campanella resolve cenas inteiras com apenas um (!) plano. É algo arrebatador porque funciona muitíssimo bem. Tome dois exemplos: a cena do telefonema onde a câmera faz um travelling para a esquerda com um diminuto zoom para engrandecer a expressão do ator; e a cena do elevador que nos apavora tamanho o terror de Irene e de Benjamín ao ver o assassino empunhando sua arma – novamente, Campanella enquadra com uma grande angular em contra plongée deixando a pistola exatamente no ponto de fuga favorito de nossos olhos na tela. A distorção da objetiva confere o tamanho gigantesco da arma, enfatizando a ameaça. Além de terminar a ação da cena com o reflexo do espelho. Repito, isso é coisa de quem muito tino cinematográfico. Não é qualquer besta quadrada que entende tanto de linguagem a esse ponto.
Além disso, o diretor também gosta de utilizar alguns planos holandeses – aqueles onde o corpo da câmera está na diagonal. Admito que há um excesso desses planos, ainda que pequeno, pois às vezes não faz sentido a utilização do mesmo, mas isso é gosto pessoal. O diretor também resolve a encenação com alguns planos sequência. Um, o histórico, imenso e grandioso o qual falarei mais adiante, mas há outros belos também. Como o que detona o despojamento e a interrupção da atmosfera humorada e ensolarada da rua ao entrar no quarto sombrio onde está o corpo da mulher assassinada. Ou também nos recorrentes split screens que Campanella faz mecanicamente com a arquitetura das casas para mostrar a ação de dois personagens distintos. Isso acontece durante a invasão da casa da velha.
Já o histórico e muito comentado que deixa muita gente intrigada até hoje com sua complexidade de construção é o plano sequencia aéreo que entra no estádio de futebol, acompanha a jogada, corre para a plateia, torna-se terrestre enquadrando Benjamín e Pablo procurando o assassino e desistindo da caçada para enfim encontrar o assassino no momento em que o time emplaca o gol, iniciam uma perseguição que se dá entre os corredores internos do estádio, entra no banheiro gerando um leve confronto e outra fuga do assassino voltando aos corredores para então ele pular de um alambrado, correr para o acesso do gramado, interferir no jogo, ser atropelado pelo atleta e cair derrotado.
Assim como a maioria dos enquadramentos e da escolha das objetivas, o plano sequência de O segredo tem, além da função estética, o proponente narrativo importantíssimo, afinal trata-se da sequência que mostra Benjamin triunfando pela primeira vez no filme ao prender o bandido.
Acredite, até mesmo planos sequencia tem hierarquia. No caso, o de Segredo é um plano sequencia superior ao de 007 Contra Spectre. A razão disso é simples. Um é idealizado para favorecer a narrativa enquanto o outro se baseia apenas no apuro estético, no prevalecimento da técnica. Em outras palavras, trata-se de um enfeite muito caro e belo.
Se quiser mais dois exemplos de planos sequência que trabalham a favor da narrativa te apresento agora: o do suicídio em Boogie Nights e o da caminhada na feira em Notting Hill. Esses dois são os meus planos sequencia favoritos da vida. Encontrei o terceiro.
Caso você se pergunte por que priorizamos tanto o plano sequência, a resposta é simples. O primeiro motivo é que é legal para caramba ver a ação sae desenrolar em apenas um take. Segundo, a estética visual e narrativa tendem a ser mais interessantes graças a movimentação criativa da câmera. Terceiro, o filme torna-se realista, pois, assim como a vida, não há cortes, é continuo.
Além disso, para engrandecer ainda mais esse plano sequencia fenomenal, existem sincronismos de encenação que reforçam ainda mais o quanto escrevo que Campanella foi um gênio nesse filme. Por exemplo, assim que Benjamin e Pablo encontram o assassino e começam a perseguição, no mesmo momento, o time faz um gol. Uma simbologia óbvia que consegue capturar a euforia dos personagens enquanto impõe barreiras físicas para o sucesso da captura já que, assim como na vida, os torcedores pulam como malucos na arquibancada para comemorar.
No final, quando o perseguido se choca com um jogador, o juiz imediatamente toca o apito, sinalizando a falta. A falta é sempre uma derrota para o atleta, além de ser a aplicação da punição. O mesmo se dá com o assassino.
O modo de filmar também contribui. No começo, mesmo instável, a movimentação é elegante. Depois, quando a câmera passa a se concentrar nos personagens, ela torna-se instável para transmitir a violência, a excitação, a velocidade e
Entretanto, por mais que este plano sequencia traga lágrimas a quem ama cinema, tenho algumas observações que tornam o processo cinematográfico mais humano, passível de erro. Obviamente o plano é falseado - pelas minhas contas, umas quatro vezes sendo que uma delas é bem visível quando a câmera foge do helicóptero para as mãos do cinegrafista. Nesse movimento, a câmera enquadra um mar de torcedores para então subir e revelar a dupla protagonista no meio da multidão.
Naquele momento, no qual se foca a multidão, infelizmente, o efeito visual é um tanto rudimentar deliberando o falseamento. Também no começo do plano, a aérea é instável. Isso foi problema de produção e é perfeitamente compreensível. Uma lástima não terem um helicóptero cinematográfico à disposição.
O mais interessante de O Segredo dos seus Olhos é um filme com pouco glamour. O design de produção se baseia sempre no uso de locações com adereços de arte e figurino realistas condizentes com a realidade financeira de cada um. Aliás, tanto design de produção e figurino quanto fotografia trabalham juntos para conferir essa simplicidade monocromática do longa.
O diretor de fotografia Félix Monti trabalha com o clássico jogo de três pontos, porém, em algumas cenas mais intimistas, não é raro ver ele utilizar apenas um ponto tornando a atmosfera pesada e sombria enfatizando seu belíssimo tratamento barroco da iluminação – novamente, a cena do telefonema retorna e da invasão à casa de Benjamín. Durante o longa todo, Monti prefere trabalhar com uma dinâmica de cor muito restrita. O filme é mesmo monocromático variando em escalas de cinza, marrom e sépia. As cores, dessaturadas, sempre. O ambiente é mesmo depressivo, condizente não somente com a narrativa triste e seus personagens melancólicos, mas também reflete a atmosfera de uma Argentina ainda instável politicamente e fragilizada na economia.
Depois de tantos elogios a Campanella, presume-se que ele foi impecável aqui. Certamente ele foi. Tenho convicção nisso. Todas as cenas foram bem resolvidas e pensadas com muita visão. Ele acerta em praticamente tudo, desde os enquadramentos restritos, criando pequenas máscaras onde apenas um segmento do plano é visível nos colocando como voyeurs intrometidos – daí vem o segredo dos nossos olhos, já que muitas vezes somos confidentes dos personagens; até no excelente uso muito restrito da inigualável música de Federico Jusid e Emilio Kauderer. As composições musicais dos dois bebem na fonte da Era Romântica da música erudita tendo inspiração principal em Gustav Mahler e Frederic Chopin. As composições são, francamente, angelicais. São belas que nos comovem apenas por ouvir.
Com o auxílio da música excepcional da dupla, Campanella cria uma das cenas mais memoráveis, tristes e brilhantes do cinema. Trata-se da separação na estação de trem. Meus amigos, abro aqui um breve intervalo para dizer que me lavei de lágrimas ali. Novamente, nossos olhos testemunham a separação de dois personagens. Um está no trem, o outro parado na estação vendo ele partir, totalmente impotente. Sem diálogos, apenas com a intensidade da atuação, da música triste e da decupagem clássica, Campanella consegue fazer você se emocionar. Não há palavras para descrever tamanha força desta cena. E olha que se trata de uma releitura muitíssimo acertada do final de Casablanca onde Bogart vê o amor de sua vida fugir para longe da guerra e, consequentemente, dele. Faça um favor a si mesmo e assista logo ao filme no Netflix.
O diretor erra apenas uma vez. E trata-se de um erro técnico. Em um dos diálogos entre Benjamin e Ricardo, na estação de trem, o diretor alucina e quebra o eixo de câmera sem dó e nem piedade. O pior é que o teor do diálogo não contribui para atribuir licença poética para o erro. Ali, o negócio é crasso mesmo. Mas algo extremamente pequeno perto da grandiosidade que é O Segredo dos seus Olhos.
Juan José Campanella fez sua carta de amor ao cinema clássico e noir com O Segredo dos Seus Olhos. Além de cumprir com eficácia esta impactante declaração de amor, conseguiu tornar seu próprio filme em um dos clássicos mais queridos do carente cinema moderno.
E eu, bom, escrevi minha carta de amor a este filme.
https://www.youtube.com/watch?v=dY-WjN5n2Pc
Crítica | A Última Noite de Bóris Grushenko
Terminada a primeira fase do diretor, enquanto transitava pelo estudo da narrativa e dos esquetes de stand up, Woody Allen em A Última Noite de Boris Grushenko, começa a aprimorar suas marcas autorais enquanto constrói uma história – ainda que seja bem simples e marcada por diversas paródias e esquetes cômicas separadas que agregam pouco na história.
Aqui, numa das fases mais criativas do diretor, Woody conta a desventura de Boris, um zé-ninguém que vive em plena Rússia czarista. Metido em seus dramas cotidianos e romances fracassados, Boris é convocado para o exército conter a invasão das tropas napoleônicas. Nisso, ele e o amor de sua vida, Sonja, tem a brilhante ideia de matar Napoleão Bonaparte para acabar com a guerra.
Marcando o progresso textual que viria ao primeiro ápice com Noivo Nervoso, Noiva Neurótica, Allen ainda transita bastante entre o stand up e a narrativa, porém, agora os números de stand up contribuem para a narrativa apesar de serem paralelos a ela. Logo nos primeiros minutos de filme, o diretor já insere diversas tiradas cômicas non sense sobre personagens excêntricas que só contribuem para o riso. Aliás, apenas Boris e Sonja são desenvolvidos com clareza durante a minutagem mais que satisfatória do filme.
Aqui, começamos a perceber nitidamente a linha autoral que Allen vai seguir: o humor sempre neurótico com críticas certeiras ao que contemporâneo na época. Woody constrói Boris como um covarde nato, questionador da fé alheia que adora filosofar sobre presepadas. Enquanto com Sonja, investe em um romance absurdo e extremamente engraçado ao dar a roupagem de ninfomaníaca para a personagem enquanto torce para que Boris morra na guerra evitando o matrimônio.
Mas o que mais encanta em A Última Noite de Bóris Grushenko é a habilidade do diretor-roteirista em manipular o humor para diversas formas. O filme é paródico: ora tem humor inteligente e ora parte para a comédia primitiva do slapstick. O fantástico é que a mistura cai muito bem, pois se percebe quando Woody quer trabalhar com a paródia despretensiosa, além de desenvolver seu humor politicamente incorreto.
Allen também brilha quando faz seus personagens quebrarem a quarta parede enquanto confidenciam temores e filosofias redundantes. Em uma variação disso, ele parodia diretamente Ingmar Bergman com enquadramentos certeiros enquanto os personagens balbuciam frases imbecis sobre trigo. Não somente nos enquadramentos, mas também atinge diretamente O Sétimo Selo com a sua Morte repleta de senso de humor e vestida de branco.
As sátiras não se limitam apenas a Bergman. Woody Allen faz piada com praticamente toda a literatura russa clássica como Guerra e Paz, Crime e Castigo, Irmãos Karamazov, O Idiota e Anna Karenina. Como o filme se trata de uma “releitura” histórica, também há diversas piadas brilhantes sobre o período incluindo alguns anacronismos repletos de ironia. Não satisfeito, o humor pastelão vem de mestres como Charlie Chaplin, Buster Keaton e irmãos Marx. Ou seja, se você não conhece muito sobre Bergman, literatura russa, do contexto histórico e dos comediantes clássicos do cinema, certamente perderá piadas fantásticas. Entretanto, apesar de Woody exigir um bom conhecimento do espectador, seu humor é universal. Logo, muitas piadas serão apreciadas por todos, principalmente as diversas cenas que se baseiam apenas na exclamação de diversos provérbios e no trabalho literal sobre diversos deles.
Em termos de história, como havia dito antes, ela é bem simples. Ainda é um fio condutor frágil, apesar de contar com boas reviravoltas entre as excelentes piadas. A grande novidade aqui é que este é o filme de guerra de Woody. Existem algumas cenas de “ação” onde os dois exércitos se enfrentam. Ali, com muito humor negro, ele ainda consegue apresentar o sucateamento do exército russo.
Vale destacar que mesmo com um orçamento absurdamente apertado, três milhões de dólares, para uma obra que pode ser considerada grande vide trabalhar em um tempo diégético de época, além de contar com cenas de batalha com muitos figurantes, Woody faz milagre pela qualidade do design de produção. Desde figurinos a cenários, tudo é muito bem produzido e cuidado. A pena é que Allen explora pouco os cenários ou a fotografia, sempre rudimentar até hoje – alguns filmes como Meia Noite em Paris escapam disso.
No mais, Woody cria enquadramentos bons para descrever a história apropriadamente, mas só brilha de fato nas paródias com Bergaman e no raro uso da profundidade de campa para inserir uma das melhores piadas – dos Napoleões se estapeando ao fundo do salão. Allen também se preocupou a tal com a trilha musical do filme que encomendou peças inteiras de Igor Stravinsky, porém por conta do tom pesado da música, algo que ele não queria para seu filme, acabou descartando.
Para substituir perfeitamente, ele chamou o igualmente ótimo Serguei Prokofiev para montar a trilha musical. Enfim, Prokofiev conferiu o tom leve que permeia o filme.
Apesar do título infeliz em português que estraga o final do filme, A Última Noite de Bóris Grushenko é uma pérola subestimada de Woody Allen. Seu humor aqui é genial tornando este um de seus filmes mais engraçados. Não há erro. Se você gosta de humor inteligente e de qualidade, corra atrás desse filme. É uma das obras mais interessantes que vi em minha vida.
Crítica | Cães de Aluguel
Em 1992 mais um diretor entraria para a história do cinema. Quentin Tarantino era revelado ao mundo com seu primeiro longa-metragem Cães de Aluguel no festival de Sundance. Trabalhando na melhor forma do worst case scenario em seu filme, Tarantino foi aclamado pelos críticos e pelo público tornando-se um dos diretores mais interessantes da atualidade.
Tarantino já revelava seu método peculiar de direção e de escrita. Os diálogos extensos, complexos, polêmicos que trazem a opinião do autor a tona de diversos assuntos e a violência gráfica banhada a litros sangue impressionaram o público perplexo. O diretor mistura comédia, horror e suspense com extrema competência na história de Cães de Aluguel que acompanha os eventos posteriores de um assalto mal realizado.
Marcado pelo estilo visual impactante, Tarantino constrói cenas que os espectadores não esquecem assim como a introdução genial de seu longa – a interpretação icônica da letra de “Like a Virgin”, música de Madonna que polemizou o ano de 1984 que, além de ser original, diverte o espectador. Sem economizar diálogo, o roteirista lança duras críticas em relação às gorjetas destinadas às garçonetes, ao salário mínimo, a hipocrisia e ao governo americano. Com isso, Tarantino revela que seus personagens são politizados, inteligentes e nem um pouco descartáveis. Porém a construção do perfil dos protagonistas é interrompida graças ao formato não-linear do roteiro recheado de flashbacks.
Logo na cena seguinte, Tarantino joga seus personagens em situações críticas e desesperadoras. Obviamente, as emoções que o espectador passa não são nada agradáveis. A agonia gerada pela violência e suspense vem à tona quando Michael Madsen – absolutamente brilhante, formula uma dança macabra diante de sua vítima ao som de Stuck in the Middle With You. Já sabendo manufaturar cenas bem dirigidas, Tarantino aumenta o suspense da ação nefasta que Mr. Blonde fará com um plano sequência simples. Nele, acompanhamos Madsen dançar, torturar a vítima, dançar mais um pouco, seguir para fora do armazém, abrir o porta-malas do carro, pegar uma lata de gasolina, voltar ao armazém, dançar mais um pouco para então despejar litros de gasolina no homem aterrorizado. Aliás, o modo como Tarantino trabalha com seu elenco já se faz presente aqui. Ele deve ser abençoado, pois já aqui temos performances fantásticas da maioria do elenco.
Todavia, apesar dos atores esbanjarem carisma, o espectador não cria uma empatia forte com os personagens o suficiente para que o impacto do desfecho seja avassalador como deveria ser. Simplesmente há o choque pela tragédia em si. Com o tempo, Tarantino soube desenvolver melhor seus personagens – a Noiva, por exemplo.
Ele comete muitos acertos e poucos erros logo em sua estreia. Sacadas inteligentes como a sensação claustrofóbica gerada pela fotografia sombria que peneira a luz com extremo cuidado dentro do armazém, a opção em nos enclausurar junto de seus personagens em apenas um cenário durante quase o filme inteiro, o feeling teatral, as reviravoltas pontuais, a enorme farsa, além do final aberto impactante.
Já em seu primeiro filme, Tarantino fez algo que diretores passam a vida para fazer: tornar seu filme histórico.
Crítica | O Bom Dinossauro
Com Spoilers
2015 foi o primeiro ano que a Pixar lançou dois filmes, um exemplar e outro bom: Divertida Mente e O Bom Dinossauro, respectivamente. Chegando um pouco depois da estreia nos Estados Unidos, o filme finalmente estreia em território nacional.
Como de costume, a Pixar trabalha com sua principal força motriz – o pitch do E se? E se ratos cozinhassem? E se brinquedos tivessem vida? E se as emoções fossem pessoinhas controlando suas ações? E se só existissem carros no mundo? E se existisse uma sociedade inteira de monstros que vivem escondidos dentro dos armários? E se o asteroide que dizimou os dinossauros ao atingir a Terra há 60 milhões de anos tivesse tomado outro caminho? É com essa brilhante proposta que Pixar trabalha aqui.
O roteiro de Meg LeFauve – inspirado na história criada por mais quatro pessoas, acompanha a jornada do pequeno apatossauro, Arlo. Ele ajuda sua família diariamente com tarefas diárias para manter sua fazenda funcionando até o inverno. Porém, em um dia incomum, Arlo descobre um ser estranho roubando comida e decide persegui-lo na tentativa de recuperar o alimento. No meio da perseguição, o dinossauro se distrai e acaba caindo no rio de forte correnteza próximo a sua fazenda. Ao recobrar a consciência, ele percebe que está muito distante de casa e terá que descobrir o caminho de volta. A boa, ou má, notícia é que ele fará essa jornada ao lado do ladrão de sua colheita, um menino humano selvagem.
É inegável, O Bom Dinossauro passa longe do brilhantismo fantástico que a Pixar tem ao executar suas ótimas ideias. Talvez a fraqueza da história do longa tenha relacionamento direto com a produção conturbada do filme – boa parte da equipe abandonou o projeto resultando em alguns adiamentos de um filme que levou quatro anos para ficar pronto. A base da história é simples e faz uso de diversos clichês sem agregar muita coisa neles.
O retorno à casa, a provação física, a conquista da independência e a domação dos sentimentos é o cerne da proposta da narrativa. Para isso, temos características vindas diretamente de outros clássicos da animação como Dumbo, O Rei Leão, Era do Gelo, Mogli e, principalmente, Irmão Urso. Isso se dá principalmente no vínculo que Arlo cria com Spot, o menino humano, pois a amizade dos dois nasce de uma grande tragédia.
Para salvar o longa de um grande marasmo durante a jornada de Arlo, a roteirista insere pontualmente novos personagens que servem para injetar vida a história até sua conclusão. Depois de um tempo, isso se torna um padrão, porém não incomoda, pois a cada novo coadjuvante, novas ideias são apresentadas.
As ideias são boas sim quando elas surgem. É interessante ver como a roteirista trabalha a mistura clássica do road movie aliado à atmosfera texana a la western. A começar, no filme, sempre temos uma ampla demonstração entre natureza selvagem vs. natureza domada e civilização. Ela apresenta essa nova “sociedade” de dinossauros e a evolução do modo de vida dos animais. Temos algum desenvolvimento tecnológico, incluindo a agricultura e a pecuária. Além disso, há o desejo pela eternidade representada na marca que a família da Arlo faz no silo como uma forma de recompensa por um trabalho grandioso.
Ela também explora um pouco o ambiente e a dinâmica familiar de Arlo em sua fazendo, mas é uma pena que tudo isso seja superficial na maioria do tempo – banalidade e Pixar não combinam. A superficialidade tange outros personagens também. As únicas figuras um pouco complexas são Arlo e Spot – ainda que os seus conflitos sejam clichês, explorados na repetitividade e que tenha uma resolução fraca usando outros artifícios clichês para finalizar o filme.
No que tange os personagens, ao menos em Arlo, temos um caso crônico de sofrimento, dor psicológica e física – o personagem se esborracha em pedras, é atropelado, aprisionado, caçado, fica repleto de hematomas, sofre com agentes depressivos e é acometido por melancolia. Nunca em um filme da Pixar vi um personagem sofrer tanto como o pequeno dinossauro. Se levar isso em consideração, eu sinceramente não recomendo o filme de forma alguma para crianças muito sensíveis, pois ele toma decisões muito curiosas que não agradarão de forma alguma diversos pais e assustarão crianças mais novas ou menos maduras.
Primeiro, tomando de O Rei Leão, o pai de Arlo tem uma morte trágica fazendo o protagonista acreditar, em partes, que a culpa de óbito seja dele – enquanto isso é explorado, Arlo joga a culpa da morte em Spot o que não é verdade. Temos então um raciocínio um tanto infantilizado para o protagonista e sua transformação se dá justamente nisso: na busca pela independência e na perda da inocência – algo bem corajoso para um filme que mira sua audiência na faixa etária de 4 a 10 anos. Além disso, a característica que define o réptil é a covardia. Arlo vive dando chiliques, clama por socorro, tem medo da própria sombra, além de carregar a estigma de ser o “patinho feio” da família.
Logo, há um choque de realidades na proposta intimista deste longa. Leve em consideração isso, esse filme tem um tom diferente, apesar de ser mais simples. A beleza dele se dá através da interpretação nos detalhes e em suas sutilezas. Como havia apontado anteriormente, Arlo, após ser jogado na natureza selvagem, encontra alguns outros dinossauros que tem funções narrativas distintas.
O primeiro encontro com um personagem fora do núcleo principal é com um velho e paranoico paquirinossauro. O coadjuvante tem uma única função na narrativa – dar um nome a Spot. Então, dentro do filme, é outro bicho superficial e pouco trabalhado que nos deparamos. Porém, fora do filme, com alguma reflexão, é possível interpretar que ali começa a ser trabalhada uma das mensagens principais do longa: a família. Naquele primeiro encontro, Arlo ainda não sofreu a catarse. O dinossauro, na verdade, passa a ficar mais covarde por sofrer o trauma de perder seu pai em meio a um dilúvio. Porém, Arlo e o estranho dinossauro, compartilham da mesma covardia e da solidão mesmo que ela seja recente em Arlo. O outro dinossauro já é mais velho, acostumado a ficar sozinho ou com outros bichos que não dominam a fala – os quais ele transforma em totens de proteção. Logo, esse estranho encontro tem outra função: avisar a Arlo em uma premonição hipotética que se ele permanecer sozinho e covarde será tão lunático quanto o paquirinossauro. Sim, é cruel, mas como havia dito antes, esse filme é estranho em sua execução, pois enquanto aprofunda a reflexão, ele oferece uma história mais frágil e boba quanto bolhas de sabão.
A esquizofrenia estilística do roteiro persiste até o final trabalhando nessas dicotomias: solidão e família, covardia e bravura, egoísmo e gentileza. Não há meio termo, é tudo oito ou oitenta com O Bom Dinossauro. E isso é raríssimo com a Pixar.
Seguindo nossa análise, outra escolha interessante abordada pela roteirista e que com certeza contou com a opinião do diretor, Peter Sohn, é a troca de papéis. Os dinossauros, em sua maioria, são os seres que desenvolveram a linguagem, a tecnologia e também traços civilizatórios, ou seja, são antropomorfizados. Enquanto os humanos, representados por Spot, são animalizados, bestas selvagens, fortes, independentes e contam com domínio amplo da natureza sem o uso de instrumentos. No caso de Spot, o homem é um cão. Toda sua movimentação, gestos, expressões faciais nos remetem a nossos amigos caninos. Céus, o personagem tem até nome de cachorro! E essa ideia sutil com execução bruta me encantou, lhes confesso. Afinal, o normal seria pensar em quão legal seria ter um dinossauro de estimação que te defenda de todos os males, seja seu amigo para todas as horas e que seja leal até a morte. Bom, aqui justamente é o dinossauro que tem um humano de estimação. Porém, seguindo o cinismo refinado do filme, Spot é quem salva Arlo de todos os perigos encontrados na jornada.
A relação entre os dois é encantadora, assim como boa parte das sequências destinadas a envolver a amizade deles – só há uma um tanto fora de tom com uma cena alucinógena meio estupida. O legal é que, dada a limitação da linguagem, a amizade dos dois é construída através de ações físicas e trocas de olhares carregados de ternura e euforia – assim como na infância onde participamos de brincadeiras menos intelectuais e mais físicas como esconde-esconde ou polícia e ladrão. Logo, novamente, é mais “mostração” do que “contação”. Por isso a quantidade de diálogos é diminuta em comparação com filmes mais verborrágicos como Divertida Mente.
Então, obviamente, isso afeta a (rara) comédia que é muito menos refinada do que outros filmes da produtora. Aqui se faz o uso extensivo do slapstick mesmo quando o diretor corta o tom leve para inserir uma tragédia repentina – vide a tentativa solitária de Arlo em comer algumas frutinhas.
Por sinal, o diretor Peter Sohn, mesmo que movimente a câmera com lindos movimentos e nos estonteie com enquadramentos de tirar o fôlego, não parece saber encontrar o tom que o filme quer seguir. Ou há momentos demasiadamente sombrios ou há cenas de encher os olhos de tão leves e bonitas. Isso ocorre constantemente. A proposta do diretor é a mesma da roteirista: amadurecer Arlo enquanto ele enfrenta seus medos ao sair de sua zona de conforto. No segundo encontro com outros dinossauros, um grupo de pterodáctilos, Sohn força o cinismo do filme.
Depois de outra forte tempestade – Sohn usa pelo menos três grandes tempestades para pontuar o crescimento emocional do protagonista, Arlo e Spot encontram os dinossauros alados. No texto, tudo leva a crer que eles são uma espécie de grupo de resgate. Nisso eles encontram um bichinho felpudo e fofinho que está aprisionado entre destroços de árvores. Acreditando fazer uma boa ação, Arlo aceita os pedidos de ajuda dos pterodáctilos. Após salvar a criatura, eles parabenizam Arlo – Sohn mostra tudo em closes para mostrar o bichinho resgatado. Então, numa fração de segundo, o diretor choca ao mostrar os dinossauros engolindo o mamífero e depois lutando entre si pela sua carcaça morta. Sim, é de fato pesado e é gráfico, além de tornar Arlo um cúmplice passivo dos vilões. Porém, mesmo que eu ache desnecessário esse tipo de abordagem, acredito que pelo setting pré-histórico e selvagem do filme, faz todo o sentido. Ali é mais um momento no qual Arlo é confrontado pelo terror da natureza, a fragilidade da vida e da cadeia alimentar. Novamente Arlo percebe que seu lugar é na segurança de sua fazenda onde tudo é confortável e tranquilo. Em tese, podemos dizer que o retorno de Arlo é a busca por sua Pasárgada pessoal. E também, em termos narrativos, o diretor finalmente encontra os antagonistas da trama – igualmente superficiais a outros personagens.
Logo antes disso, para ilustrar bem essas mudanças de tom repentinas que Sohn elabora, o diretor cria a cena mais bela do filme inteiro e bem pode ser uma das mais poderosas da Pixar. Trata-se de uma representação visual da família de modo bem primitivo na forma, mas muito elaborado na ideia. Íntimo, singelo e simples. Aquece nossos peitos e enchem os olhos de lágrimas de tão forte que a cena é revelando que o diretor consegue sim ter uma sensibilidade inexistente no filme até então. Também, para dar origem a essa cena, o diretor utiliza mais uma vez outra característica forte do filme que é a mágica entorna da figura dos vagalumes. Sabiamente, após a perda do pai, Arlo mostra a Spot os insetos luminosos – refletindo instantaneamente uma relação paternal com o garoto. Entao eles acompanham um vagalume perdido que sobe para o céu noturno perdendo-se entre as infinitas estrelas – o que evoca a lembrança da figura paterna e da família. Enfim, é um belíssimo momento.
No terceiro encontro com novos dinossauros, novamente é trabalhada outro ponto de guinada para o personagem que só havia conhecido a violência e a paranoia na natureza selvagem. Fina ironia, Arlo e Spot são acolhidos por uma família de tiranossauros nômades que vagam com seu rebanho entre o ermo. Aqui é explicito o tom aventureiro tirado dos westerns. Nessa passagem, ao contrário do que acontece com os pterodáctilos, Arlo é incentivado a ser corajoso pela primeira vez em sua vida. Finalmente vemos o personagem amadurecer um pouco – infelizmente o parceiro Spot permanece simples até o fim do filme. Com esses tiranossauros, o diretor emenda outra mensagem para definir outra dicotomia entre a selvageria e a civilização – o controle da fome. Enquanto os pterodáctilos e os raptores caipiras agem na base da violência para conseguir sanar seu apetite, os apatossauros e tiranossauros possuem sua própria produção de alimentos através da agricultura e pecuária o que também explica uma espécie fixar propriedade enquanto a outra prefere o nomadismo. Logo, com base nessa interpretação, entende-se por que uns seres são mais racionais e menos selvagens que outros.
Permeando o extrafilme e sobre o que de fato está no filme, o diretor elabora uma reflexão até mesmo filosófica sobre a figura do rio caudaloso assim como faz com as tempestades. No começo do filme, o rio que elimina o pai da vida de Arlo, mas ele se salva. Não chega de fato a entrar no rio. Quando o protagonista enfim cai no rio enquanto persegue Spot, ele chora pela mãe, se debate sem saber nadar e se desespera. No clímax após o uso de alguns clichês – catarse pelo delírio, Arlo entra no rio mais uma vez, só que voluntariamente, na tentativa de salvar Spot. O dinossauro enfim perde seu medo do rio que tenta tirar tudo aquilo que ama. Arlo finalmente vai domar a natureza, vai exibir sua independência. E de fato ele consegue tudo isso. Temos o personagem transformado em um herói.
Toda essa emblemática em torno do rio me lembrou muito a filosofia de Heráclito, panta rei, tudo flui. Isso é sintetizado pelos escritos de Simplício onde conhecemos a máxima, “nunca um homem entrar no mesmo rio duas vezes”. Bom, nesse caso, o dinossauro. No âmago, Arlo está transformada na segunda vez que entra no rio. E o rio também não é o mesmo, apesar de ter função narrativa similar ao do primeiro encontro.
Enfim, é evidente que isso pouco importa para uma criança ou para um espectador que só está procurando uma boa história vinda da Pixar. Porém, essa beleza nos detalhes, esses cuidados e reflexões foram o que salvaram o filme para mim, pois de fato a história em si não surpreende em nada em meio a tanta previsibilidade e clichês. Portanto, existe muito mais do que os olhos podem ver em O Bom Dinossauro.
Porém, no que tange de fato a visão, este novo filme entrega o melhor trabalho da Pixar em toda sua história de sucesso. Temos uma animação absolutamente espetacular. Vemos a respiração dos dinossauros, sentimos as toneladas enquanto os fantásticos animais se movem pelo cenário esmagando suas patas, as expressões sempre muito variadas repletas de olhares que exclamam a vida desses seres digitais. Entretanto, estranhamente, a animação não é o fator predominante de destaque, mas sim o trabalho monstruoso que fizeram na texturização de elementos e na física deste longa.
Todos os cenários do filme são fotorrealistas em contraponto com os personagens de traços cartunescos. É como se fosse mais um cinismo do filme em dizer que tudo envolvendo nossos protagonistas trata-se de fantasia, uma ilusão onírica que dá vida ao cenário, esse sim, real, físico e sublime. Para se ter uma pequena ideia é possível ver a luz de fogueiras ou solar reagindo entre as escamas dos dinossauros enquanto eles se movem. Fora que todo esse trabalho de iluminação é constantemente alterado já que os bichos ficam molhados de tempos em tempos. Aliás, todo o trabalho de iluminação é muito bem pensado durante o filme inteiro para tornar sempre a atmosfera a mais palpável possível.
Continuando sobre as texturas, desde as ranhuras das folhas comidas por insetos até o aspecto áspero da rocha castigada pelo sol. Do cascalho arranhado do rio, da translucidez de suas águas por vezes espumada, das nuvens gordinhas que revelam efeitos divinos de god rays entre tantas outras características impecáveis. Já na física temos as belíssimas animações do farfalhar das folhas, dos cabelos, de pelos reagindo ao vento, além do intenso trabalho envolvendo a água, desde os filetes que escorrem pela face dos personagens até as águas revoltas do rio que explodem entre si, em rochas ou personagens.
O Bom Dinossauro não passa perto do brilhantismo apresentado por outros filmes originais da Pixar, infelizmente. Ele traz boas ideias, mas as explora pouco. Fica preso em contar uma história sobre retorno e provação pessoal que já foi contada milhares de vezes antes. Também sofre com o fato de ter poucos dinossauros para as crianças contemplarem, além de se perder no tom por vezes violento demais para catalisar reações dos personagens – mesmo que faça sentido dentro da proposta e de eu mesmo louva a coragem narrativa em exibir essas passagens.
Porém, temos uma história inofensiva com alguns bons personagens, além de nos presentear com o melhor nível de detalhes, texturas e animação que a Pixar já nos apresentou. Também temos a trilha musical absolutamente fantástica dos irmãos Jeff e Mychael Danna que conferem todo o ar único e mágico em diversas sequencias. Além de termos todos esses detalhes que estão sugeridos pelas sutis características do filme que abordei no texto. A mensagem do longa também é relevante, mesmo que seja uma repetição de outras animações consagradas.
O Bom Dinossauro evoca a importância da união, da família e da superação dos medos. Conta que somente juntos, é possível vencer e conquistar o amanhã. Trata-se mais um ótimo trabalho desse estúdio maravilhoso que nos conquista, periodicamente, desde 1995 e que com toda certeza continuará nos apaixonando por décadas a fio.
Crítica | Rocky II: A Revanche - A estreia de Sylvester Stallone como diretor
Levou apenas três anos para que Rocky ganhasse uma sequência após seu estrondoso sucesso de crítica, público e de premiações. Como não poderia deixar de ser, o tema era óbvio: a aguardada revanche entre Apollo Creed e Rocky Balboa. Um pitch simples que seria aprovado na hora por qualquer produtora. A outra principal novidade é a direção de Sylvester Stallone.
Novamente voltando ao cargo de roteirista, Stallone já define o molde do longa assim que ele tem início ao retomar boa parte da primeira luta entre Rocky e Creed – Stallone usa o trecho do filme anterior. Depois, o longa começa imediatamente de onde Rocky parou. Já nos primeiros dez minutos, Stallone consegue justificar o motivo da revanche e pautar a rivalidade entre os dois lutadores. Agora, Apolle Creed, é o antagonista motivado. Tudo que tange o personagem a respeito de sua gana em vencer é bem apresentado, porém é uma pena que Stallone não explore muito Creed deixando o personagem pouco complexo durante o filme inteiro, afinal, essa era a oportunidade de conhecermos de fato, Apollo.
Depois, Stallone começa a elaborar mesmo a história deste filme que, por incrível que pareça, se trata de uma ótima narrativa. O roteirista se preocupa em já apresentar as sequelas da luta com Apollo. Agora Rocky já não pode lutar como antes pois parte de sua visão foi comprometida, além das recomendações médicas para que ele se aposente.
Então Stallone passa a trabalhar com contrastes com o primeiro filme constantemente. Vemos Rocky, antes um pobretão, finalmente a ter algum luxo na sua vida. Compra casa, carro, joias, etc. Porém, o mais interessante nesses pequenos contrastes é como ele trabalha a relação de Adrian com Rocky. Conhecemos o casal a fundo em sua dinâmica familiar. Ela, apesar de ser a razão do relacionamento, cede nos devaneios ingênuos de Rocky. Acredito que o relacionamento dos dois, em seu tom encantador e esquisito, seja um dos melhores que já vi na vida. Uma pena que nos filmes posteriores, a figura de Adrian perca importância com participações menores. Felizmente temos esse filme, o último em que Rocky ainda é um bobalhão inocente em seu romance tão puro e simples com Adrian.
Aliás, Stallone tem alguma coragem em usar Adrian como força motriz em diversas decisões de Rocky. Toda a problemática do filme segue na perturbação psicológica de Rocky em falhar com Adrian diversas vezes: contrariar sua vontade para que ele deixe os ringues, não se manter em diversos empregos secundários, na necessidade de Adrian voltar a trabalhar mesmo grávida, estar longe depois do parto e também sentir-se responsável pelo coma que acomete a mulher.
É um conflito relevante que nos conquista pouco a pouco, além de denotar o declínio de Rocky em contraponto com a sua ascensão no primeiro filme. Rocky ganha complexidade por conta disso, além da revelação dele ser praticamente analfabeto em uma cena bem dirigida e do perigo da cegueira.
Além de Rocky e Adrian, temos o crescimento da figura de Mickey, o velho marrento treinador do personagem. Para mim, esse papel foi o qual marcou Burgess Meredith para sempre. O ator continua excepcional com seus olhares malucos e sua voz carregada ao proclamar frases de efeito excelentes: Your’re gonna eat lightning and crap thunder! O interessante é que logo a melhor frase do longa é inserida em outra cena para revelar como Rocky está desmotivado a treinar, ou seja, um uso de ironia refinada. Essa desmotivação do protagonista é contrastada diretamente com a obstinação, inserida pontualmente, de Apollo. Dessa vez a luta será para valer.
Porém, toda a construção desse treinamento desmotivado é proposital para entregar a melhor guinada motivacional da história da saga. Assim que Adrian acorda do coma, convenientemente semanas antes da luta, ela clama por Rocky e pede para ele ganhar. O momento é fortíssimo e ganha ainda mais força quando Stallone lança a sequência de treinamento em montagem com a icônica Gonna Fly Now. Não satisfeito, logo depois insere outra cena com a típica corrida de aquecimento. Dessa vez, a corrida de Rocky não é solitária: diversas crianças o perseguem até todos chegarem na escadaria do Museu de Arte da Filadélfia. Brega e potente, coisas que Stallone consegue entregar. Aliás, a sequência é diversificada e apresenta novos treinamentos além do concluir a antológica perseguição à galinha – Cidade de Deus né?
Já na direção, Stallone não inventa muita coisa. Mantém o tom realista, esteticamente rude e cru do longa anterior. Porém é nítida a diferença da adição de poucos milhões de dólares entre um filme e outro. Dessa vez a fotografia consegue preencher as ruas na profundidade de campo nas externas noturnas assim como a câmera se movimenta melhor. Também temos, enfim, figurantes para preencher a plateia da segunda luta do século. Dessa vez o embate foi travado com gente no set.
Stallone também emenda muitas sequencias em montagem por falta de criatividade e aplicar um dinamismo no filme. Temos montagens de treinamento, montagens de Rocky trabalhando e comprando. Porém, a melhore de todas é a montagem que demonstra o carinho de Rocky e Mickey com Adrian durante o coma. Verdade, há excesso de montagens, mas nada que prejudique muito. Enquanto faz sem inspiração muitas cenas, com enquadramentos simples, Stallone brilha no clímax do filme e na poderosa cena na qual Rocky pede para Mickey treiná-lo – dessa vez acontece o oposto do ocorrido no primeiro filme.
Para o clímax, temos uma excelente luta, talvez a melhor de todos os filmes, com altos e baixos muito bem dosador por Stallone, além de um trabalho de câmera excepcional com diversos planos que circundam o ringue. Dessa vez há a presença de slow motions bem inseridos sendo o melhor deles na reviravolta fantástica que se dá no último round, aliás, este, com pouquíssimo uso da trilha musical de Conti. Nos momentos finais da luta, Stallone acerta em nos deixar completamente aflitos para ver quem levanta da lona primeiro. É mais um momento brilhante que faz o coração bater forte enquanto nós torcemos por Rocky. A cena clama para nós gritarmos “Levanta, Rocky! Levanta! Falta pouco!!!” enquanto a música explode quando ele finalmente levante e vira campeão! Só nós sabemos como é divertido quando um filme provoca isso na gente.
Rocky II é um ótimo filme embora tenha uma mensagem menos poderosa que a transmitida pelo primeiro longa. Também não há mais aquelas sutilezas corajosas. Encaro esse segundo filme como um desenvolvimento e aprofundamento de três personagens – Rocky, Adrian e Mickey. Paulie, irmão de Adrian, continua um personagem perdido e pé no saco com pouca função narrativa. Já Apollo é desperdiçado, resumindo o trabalho em torno o oposto que o personagem era no longa anterior: de falastrão, feliz e eufórico para um homem fechado, violento e sóbrio. Teríamos um tremendo potencial com Apollo nesse filme.
Também na essência, Stallone procura muito ficar espelhando seu trabalho anterior e trabalhar com opostos e contrastes. Ainda que seja interessante, torna o filme óbvio, infelizmente. Enquanto desperdiça ideias nessas jogadas bobas, Stallone entrega mais uma montanha russa de emoções já que somos muito apegados aos personagens, acabamos sentindo suas dores, suas perdas, suas risadas e, principalmente, a glória de suas conquistas. Simples, mas poderoso.
Rocky II: A Revanche (Rocky II, 1979)
Direção: Sylvester Stallone
Roteiro: Sylvester Stallone
Elenco: Sylvester Stallone, Talia Shire, Burgess Meredith, Burt Young, Carl Weathers, Tony Burton, Joe Spinell, Frank McRae
Gênero: Drama
Duracão: 119 min
https://www.youtube.com/watch?v=6PSSxAGSiCY
Crítica | Snoopy & Charlie Brown: Peanuts, o Filme
A obra define o homem. No caso da realização de Charles M. Schulz, a eternidade. Quando alguns jornais compraram a ideia do quadrinista, ele nem imaginava que a turma de Snoopy e Charlie Brown lhe trariam sustento para criar sua família, alegrias, fãs, prêmios e inspiração até a hora de sua morte em 2000 quando perdeu uma breve batalha contra o câncer.
Depois de dezesseis anos da morte de criador e trinta e cinco anos de seu último filme, a turma de Charlie Brown ganhou um novo filme. Um filme extremamente simples e tão fofo e agradável quanto. Mas já aviso que, apesar de ter assistido alguns episódios do desenho animado de Charlie Brown quando era criança e ter lido diversas tirinhas, as aventuras da turma criada por Schulz não me despertam nostalgia – mesmo reconhecendo o valor de todas elas.
O roteiro escrito pelo filho e também pelo neto de Schulz, Craig e Brian, conta a grande aventura de Charlie Brown em busca de conquistar seu primeiro amor: a menininha ruiva que acabara de se mudar para a cidade. Nisso, os dois e o terceiro roteirista, Cornelius Uliano, trabalham diversas passagens que definem o caráter de Charlie Brown em contraponto com seu pessimismo, lamentações e baixa autoestima. Para quem não sabe, Charlie Brown, desde sua concepção, é um nítido azarado. Mesmo tento muitos amiguinhos, ele acredita que ninguém gosta de sua personalidade ou tão pouco dele.
Com ideias simples e muitas referências às tirinhas originais de Schulz, o trio apresenta uma boa história, porém, bastante fragmentada, infelizmente. Características clássicas como a completa falta de habilidade de Charlie Brown para empinar pipas, dancinhas, filosofadas de Snoopy enquanto relaxa no telhado de sua casinha, o fanatismo de Schroeder com Beethoven, a barraquinha de terapia de Lucy estão lá. É um fan service orgânico que, em sua maioria, encaixa na narrativa. Cada passagem do longa apresenta uma nova tentativa de Charlie Brown em conquistar o coração da garotinha – e como todos sabemos, falhar de diversas maneiras muito charmosas. Porém, mesmo que as passagens sejam simples e já exploradas em algumas outras animações, os roteiristas pecam em deixar o filme mais uniforme.
O que prejudica ainda mais a unidade da narrativa são as constantes interrupções para inserir uma segunda história paralela bem fraquinha – aviso que isso é gosto, você pode achar a segunda historinha encantadora. Em diversos momentos, os roteiristas apresentam uma pequena narrativa que mostra Snoopy tentando salvar uma cadelinha, Fifi, das mãos do terrível piloto Barão Vermelho durante a Primeira Guerra Mundial. Não há muito o que explorar aqui. É como se fosse uma demonstração que evocasse como a narrativa principal do filme é tão simples que precisasse de uma história complementar – em parte, é verdade. Porém, seria mais adequado explorar mais a turma de Charlie Brown que fica em escanteio boa parte do longa, aparecendo para reforçar algumas mensagens óbvias perdendo a complexidade que esses personagens apresentam nas tirinhas com tiradas cheias de ironia e fina melancolia.
As interações que levam mais destaque são de Charlie Brown com Snoopy – ótimas cenas que reforçam a imagem da amizade dos dois, com Linus, Lucy e com sua irmãzinha Sally. Nessas sequencias, o longa traz mensagens muito bonitas sobre moralidade e ética. O mais interessante é que isso é apenas interpretativo, nunca é explicitado através de um diálogo expositivo para a plateia. Bom, até o final um tanto anti climático. Infelizmente, no último diálogo importante do longa, todas as qualidades sutilmente apresentadas de Charlie Brown são jogadas por meio de uma exposição tão preguiçosa que quase trucida o trabalho apresentado até então.
Já a direção de Steve Martino traz propostas interessantes, inclusive no uso da animação. Esta é a primeira vez que vemos a turma de Charlie Brown animada em computação gráfica. Curiosamente, a movimentação dos personagens ainda segue a o padrão bidimensional já visto nas animações clássicas – como a do grupo dançando freneticamente ou alguns desenhos vindos diretamente dos quadrinhos como a imagem de Snoopy dançando em seus dois pés alegremente com sua cabeça levantada. É raro vermos alguém atravessando a tela em sua profundidade, mas sempre caminhando entre o canto esquerdo e direito – inclusive a animação dos pés remete ao antigo desenho. Nesses trechos, a câmera sempre se movimenta com travellings ou panorâmicas sem muita função dramática, porém confere o aspecto de tirinhas que o diretor propôs. Logo, o uso do efeito estereoscópico se baseia bastante na contemplação da profundidade de campo bem trabalhada que revelam casinhas, cumes ou alguma vegetação no infinito do enquadramento.
As sequências com Snoopy na Primeira Guerra servem para quebrar esse padrão. Como há muita ação nessas cenas repletas de perseguições com aviões, ali, a animação e a câmera se movimentam livremente pelo cenário. Mesmo assim, teria sido interessante ver alguns trechos com a marcante animação 2D. O diretor também insere os traços tão característicos de Schulz para animar as expressões dos personagens, além de reforçar algum estado de espírito – o redemoinho mal desenhado para indicar frustração ou raiva está presente. Ainda incorporando a espiritualidade das tirinhas, Martino coloca pontualmente algumas onomatopeias visuais como plaft, kromk, tum, tonc!
Martino trabalha até mesmo com algumas metáforas visuais singelas. O filme tem início no inverno condizendo com a forte repressão da personalidade do personagem de Charlie Brown enquanto camina, durante o filme, para a primavera revelando o “florescer” de Charlie. É básico sim, mas satisfatório. O trabalho com Charlie Brown também é muito bem feito. Impossível não nos apegarmos a ele e sua turma. É um encantamento que o filme irradia com fartura.
O novo e muito bem-vindo filme de Peanuts apresenta a obra maravilhosa de Schulz para uma nova geração. Ainda que não se aprofunde muito no texto mantendo a obra com um tom mais infantil do que as tirinhas, o longa nos conquista com momentos bem elaborados, com pinceladas pontuais do humor característico de Schulz, além de ser muito divertido e leve. É uma ótima pedida para as crianças ou para uma diversão com a família. Além disso, acredito que a mensagem do longa seja muito relevante para a infância de hoje tão centrada em gadgets eletrônicos e isolamento físico. Uma infância tão diferente da que tive nos anos 1990.
Crítica | Joy: O Nome do Sucesso
Com Spoilers
Ah, histórias de superação! Lindas, emocionantes, nos fazem chorar. Nos mostram como a vida nos espanca diariamente para então acreditarmos que com nossa determinação, criatividade, boa vontade e esperança, coisas boas surgirão em nosso caminho. Não é por menos que nos solidarizamos com os protagonistas dessas obras, afinal todos são lutadores ferozes, mas também muito vulneráveis. Da safra boa desses filmes temos obras memoráveis como Gênio Indomável, Rocky, À Procura da Felicidade, Carruagens de Fogo, Billy Eliot, Sociedade dos Poetas Mortos e A Felicidade Não Se Compra. Porém, por mais que esse subgênero seja incrivelmente generoso para nos proporcionar histórias incríveis, ele também dá origem a filmes ruins, como este Joy – possivelmente o longa mais medíocre desse ano que mal começou.
David O. Russell estava caminhando lentamente para um declínio criativo em meio a tantas indicações a diversos Oscar – isso afeta a cabeça. Depois do sucesso de um bom filme, O Vencedor e de O Lado Bom da Vida – este, exelente, O. Russel começou a dar indícios de que estava encurralando a própria obra. Isso é nítido em Trapaça, um filme um tanto regular, mas é aqui em Joy que a coisa desanda a tal ponto que o diretor deixou de ser o queridinho da Academia nas indicações deste ano.
Russell nos apresenta Joy já quando criancinha. Incentivada pela avó, Joy tem sonhos de ser uma grande inventora. Alguém que fará a diferença no mundo. Porém, os sonhos da infância logo são enterrados por um casamento fracassado, um emprego insatisfatório e duas crianças pequenas para sustentar, além de ter que assumir a posição de ser líder da família ao socorrer as neuroses de seus parentes descontrolados. Joy acredita que sua vida será fadada ao fracasso e a depressão, porém, em um dia, a jovem mulher tem uma grande epifania: decide inventar um esfregão revolucionário. A partir dessa invenção, a vida de Joy muda completamente, porém, para atingir o sucesso, ela terá que superar muitos obstáculos.
Logo de início, O. Russell já avisa que o longa é sobre “mulheres fortes”, ou seja, se trata de uma tentativa de roteiro que fisga o feminismo. Porém, assim como em O Vencedor onde o protagonista era avacalhado por sua família neurótica, o mesmo acontece com Joy. A tentativa, ao menos nesse, é abordar a família de uma maneira próxima às comédias de Woody Allen como Tudo Pode dar Certo, mas o que realmente acontece é que tudo dá errado aqui.
Primeiro pelo formato um tanto dúbio escolhido para tratar a narrativa. Russell escolhe usar uma narração over e como já dizia Kaufman em Identidade: narração over não é para qualquer um. O uso é deslocado ao tentar contextualizar com um formato a la contos de fada, além do formato muito similar à Crepusculo dos Deuses – só que no clássico agregava alguma coisa para a obra. Nessa narração, o diretor apresenta a malha principal de personagens com uma preguiça notória seguindo a estética de vídeos caseiros/familiares. Exposição jogada ao léu.
Nesses primeiros minutos de Joy, eu mesmo já tive uma catarse. Já desconfiei que O. Russell pesaria a mão tanto no roteiro quanto na direção. Para a minha infelicidade, estava certo. O diretor prejudica o ponto vital de um filme: a relação entre espectador-personagem. Aqui ela é quase inexistente. É atropelada pelo constante vai e vem de personagens coadjuvantes e de novos conflitos que são ignorados tão rapidamente quanto são apresentados.
Para o roteirista, a constante é um só: malhar sua protagonista até o limite. A personagem sofre abusos psicológicos, é humilhada e desacreditada pela família durante o filme inteiro. Todos a tratam como uma serva, mas o pior é que ela não reage às opressões despropositadas dos outros. Sim, Russell repete a mesma fórmula protagonista vs. família que nós já vimos em O Vencedor. Porém, no filme anterior, havia lapsos de carinho entre as neuroses dos familiares. Como havia dito, em Joy, é um rodeio de personagens tresloucados, caricatos, superficiais, repetitivos e chatíssimos. É possível fazer até mesmo um drinking game de quantas cenas temos que suportar vê-los dizerem abobrinhas à protagonista complacente.
De início, pode parecer que Russell mira somente nos personagens masculinos apresentando-os como imprestáveis, atrasos de vida e danificados, mas não demora muito para que ele também direcione a metralhadora para as figuras femininas da fita. Temos três figuras que castram Joy deliberadamente, ao contrário dos homens que são molengas em sua maioria.
A mãe de Joy, Terry é completamente viciada em telenovelas de qualidade duvidosa. Ela transfere todas as responsabilidades de matriarca da casa para Joy, optando por viver em reclusão, se protegendo de um divórcio, pouco se importando com o destino da filha. Aliás, todas as cenas com a personagem são vergonhosas devido ao teor ridículo dos diálogos e da encenação pobre. A madrasta, Trudy, fonte do dinheiro para Joy se lançar no empreendedorismo é uma personagem que transita entre confiar na protagonista para então passar a condená-la como todas as outras. Também há sua meia-irmã, Peggy, uma invejosa que se intromete em todos os assuntos para nos enervar com frases desbaratadas em momentos críticos do longa.
Somente a avó, Mimi, é quem sempre apoia Joy seja lá por qual motivo divino. O problema é que mesmo sendo a única personagem do núcleo familiar que nós temos a chance de gostar, ela é desperdiçada pelo filme. Some, reaparece e torna-se um clichê previsível. Já com seus filhos, o relacionamento de Joy também é prejudicado na mão do roteirista. As interações são sempre rasas usando a filha para forçar algum drama frívolo. Já com o filho, O. Russell praticamente oculta o menino durante toda a projeção. Na única cena que Joy é obrigada a interagir com ele, o diretor encobre a figura da criança com uma porta. É absolutamente ridículo e desproposital, pois não há motivo dentro do filme para essa aversão cinematográfica com o garoto.
Já Joy somente é salva pela performance assustadora de Jennifer Lawrence que carrega esse filme nas costas. Dessa vez a indicação ao prêmio Oscar foi muito merecida e se vencer, também não vejo problemas. Lawrence faz milagre e suplementa as deficiências que Joy tem no roteiro. Mesmo que a personagem não reaja às provocações da família, Lawrence nos oferece olhares e expressões que dizem muito do interior da personagem: sempre enclausurada, melancólica e perdida em meio a tantas aventuras de empreendedorismo.
Os talentos de Robert De Niro, Isabella Rossellini, Virginia Madsen e Diane Ladd são completamente desperdiçados com as boçalidades surreais dos personagens.
O roteiro também trabalha mal sua protagonista. É difícil compreender a relação dela com alguns personagens por conta da caricatura dos coadjuvantes. É tudo muito infantil e neurótico para ser levado a sério. As relações mais equilibradas de Joy com sua avó, sua melhor amiga, seu pai e com o ex-marido também não ajudam muito. São todas rasas que nivelam a personagem por baixo servindo como sustentação algumas poucas vezes. Já sobre o trabalho de Joy, também há pouco a ser dito. O roteirista apresenta uma cena dedicada a isso para destacar ainda mais como a vida da mulher é difícil, porém, logo depois ele esquece completamente dessa rotina da personagem.
Russell também define mal o desenvolvimento da protagonista. Durante o longa, Joy tem três catarses – quando o normal é ter apenas uma. O problema é que as três catarses são repetitivas servindo apenas para mover a personagem atrás de seu sonho ou para resolver algum problema. Aliás, é risível ver como ele lida para solucionar os múltiplos conflitos que ele cria durante a jornada da inventora. Muitas vezes as coisas são omitidas para o espectador, são resolvidas via deus ex machina ou são ignoradas. Também pela pressa em contar muito e não contar nada, Russell dificulta o processo para nós assimilarmos sobre a situação financeira real na qual Joy se encontra – principalmente quando o esfregão dela começa a fazer sucesso.
Porém, nem mesmo a megalomania e presunção de David O. Russell conseguem estragar o filme por completo. Toda vez que a narrativa se afasta do ambiente claustrofóbico e irritante da família de Joy, o longa ganha um vigor absurdo. Isso se dá com a apresentação do personagem do sempre ótimo Bradley Cooper, Neil Walker, um figurão de uma rede televisiva. Aqui, o roteirista apresenta material bom, enfim. Mostra a voracidade do consumo das televendas, do crescimento do setor, da direção dos programas, além de um bom establishing histórico sobre o assunto – algo muito pouco explorado pelo cinema por enquanto. Nesse microcosmo, Russell traz as melhores cenas do longa com muito vigor de câmera, direção, trilha musical e montagem. Finalmente vemos o diretor brilhar. Porém, rapidamente isso tudo é cortado para retornarmos para mais sequencias chatas com a família de Joy. Além do texto se contradizer em uma das viradas mais importantes sobre as chances da protagonista na televisão.
Nessa dicotomia da televisão entre a mãe, Terry, e Joy, Russell até apresenta uma camada mais complexa. Enquanto Terry se limita, aliena e acovarda diante de telenovelas sufocantes, Joy tem a oportunidade de expandir, extravasar, se revelar e consolidar seu produto. É um contraste sutil e muito interessante. Fiquei até surpreso que o diretor não tenha martelado isso de modo explícito, nada elegante.
No campo da direção, Russell atenta menos contra a sua obra, mas ainda não foge da má realização. O trabalho de movimentação de câmera com steadicams está melhor do que nunca conferindo a boa agilidade de cena presente em seus filmes. O diretor também consegue apresentar bem os objetivos de Joy, dizer o que ele quer com a personagem. Fora isso, entrega cenas boas – a maioria fora do núcleo da família, ainda que ele use técnicas ultrapassadas e clichés para montar as sequencias – como a do pitch do produto de Joy. Também há uma boa apresentação para o personagem de Bradley Cooper. Ele opta por revelar Neil Walker em partes, enfocando primeiro nas mãos dele afim de revelar um suntuoso anel indicando poder e riqueza.
Enquanto entrega momentos pontuais satisfatórios, Russell esbanja um trabalho ruim na maioria do filme tedioso. Em uma cena em particular, o andamento é tão artificial e bizarro que chega a assustar. Reparem quando Joy, Trudy e os outros familiares se reúnem para observarem um questionário que a viúva faz com a protagonista. A execução é uma vergonha, pois, além do teor do texto ser ruim, o diretor insere a amiga de Joy em algumas inserções nada funcionais para dar prosseguimento à cena. Até mesmo ele sabe que seus personagens são tão repetitivos que é preciso outro fator para as coisas se movimentarem no filme.
Em outro momento, na verdadeira primeira boa cena do filme, Russell estraga tudo novamente ao dar mais um desfecho apressado, além de fazer a protagonista ser hostilizada por uma estranha no estacionamento do mercado. Também, durante a apresentação do esfregão no programa televisivo, Russell conclui tudo com pressa. Não somente aí, o diretor tem pressa até para terminar o filme. Tanta pressa que coloca um flash forward para revelar o grande futuro glorioso que a vida reserva para a personagem. Somente na sequência final, o diretor consegue criar uma cena que mistura um plano sequência inspirado em A Invenção de Hugo Cabret fornecendo um tom tosco resultante da mistura adicional com Cidadão Kane e O Poderoso Chefão a la femme fatale. É risível, mas essa não era a intenção do cineasta.
Joy é o ponto derradeiro que explícita como o queridinho do Oscar de outrora entregou um produto ruim. Em sua pressa de criar conflitos, tornar sua protagonista amorfa que nunca reage às loucuras de sua família, David O. Russell esquece da boa comédia, do drama bem dosado e do prosseguimento natural do desenvolvimento da história durante o filme. Apesar de contar com algumas boas cenas, da excelente trilha musical e da forte presença e bom trabalho de Jennifer Lawrence no elenco, Joy simplesmente não vale a pena em meio tantas fragmentações tresloucadas. É um filme que traz uma história de superação como qualquer outra, porém sem o encanto e paixão presentes em outros longas clássicos.
Joy é uma tristeza cinematográfica.
Crítica | Star Wars: Marcas da Guerra, de Chuck Wendig
Admito que consumir entretenimento e cultura é uma tarefa fácil para mim. É com prazer que vejo, leio e ouço tantos materiais que edificam o nosso intelecto. Viver diversas vidas, discutir com a própria obra, amadurecer com visões diferentes, crescer. De tantas coisas que já consumi apenas duas obras me deixaram possesso: Skyline e O Mistério da Rua 7. Esses são os piores filmes que já vi em minha vida. Porém, nunca tinha encontrado uma obra tão ruim quanto no campo da literatura. Bom, parece que finalmente encontrei. Marcas da Guerra é a apresentação do que o campo de marketing e storytelling da Disney pretende fazer com o novo cânone de Star Wars em seu projeto diversificado de transmídia.
Propagandeado incessantemente como o primeiro livro de uma trilogia (céus) que tem o propósito de conectar O Retorno de Jedi com O Despertar da Força, Marcas da Guerra é uma obra literária que testa a sua paciência a cada capítulo ao longo de intermináveis quatrocentas páginas.
O autor Chuck Wendig – e sei lá mais quantos escritores fantasmas, estabelece a história seis meses após a Batalha de Endor e a destruição da segunda estrela da morte. Nisso, acompanhamos as aventuras de ao menos sete personagens que protagonizam a narrativa dentre os milhares que surgem a cada capítulo. Para justificar a proposta de conexão temos os conhecidos Wedge Antilles desbravando a Orla Exterior e o Almirante Ackbar sem nos avisar que este livro é uma baita armadilha.
Wendig não perde muito tempo para se livrar Antilles e se concentrar logo no núcleo original que ele quer de fato trabalhar: a rebelde indecisa Norra, seu filho mala sem alça Temmin, o ex-imperial bêbado Sinjir, a caçadora de recompensas okay Surat Nuat e a melhor personagem, a imperial Almirante Sloane. Em questão de poucas páginas, Antilles é capturado por Sloane enquanto Norra acaba perdida no planeta de Akiva onde ocorre a maioria da ação do livro. Lá ela encontra Temmin e forma uma aliança com os outros personagens visando destruir o restante dos imperiais que farão uma reunião de emergência naquela mesma semana no palácio do ditador local.
O contraste entre as características entre o que há de bom e ruim no livro é tão nítido como preto e branco. Já aviso que quem espera alguma conexão boa ou alguma informação que agregue alguma informação para suplementar os diversos buracos no roteiro de O Despertar da Força, é melhor tirar o cavalo da chuva. Aliás, nem recomendo a compra do livro pois a decepção será tremenda. Durante a penosa experiência, apenas três informações podem ser consideradas relevantes: é dado a entender que a Nova República será desarmamentista – o que contradiz a fala de C-3PO no sétimo episódio, Han e Chewie partem para salvar Kashyyk e há uma pincelada indicando que o Imperador ainda possa estar vivo – algo completamente deplorável se for comprovado no próximo livro que infelizmente eu terei de ler.
Pronto, é isso aí que o livro oferece para agregar algum conteúdo ao Episódio VII. Então, será que se trata mesmo de um caça-níquel descarado? Bom, não seria caso a narrativa original fosse algo muito, mas muito legal, incrível e surpreendente. Pena que não é o caso.
Wendig tem manias constantes de fazer graça ao resolver conflitos com os piores deus ex machina que já tive o desprazer de ler, além de “matar” seus personagens afim de criar os cliffhangers entre capítulos mais preguiçosos que já vi. Só Norra deve “morrer” umas quatro ou cinco vezes durante o livro inteiro. Na segunda vez que ela “morre” já me deu náuseas. Na terceira, torci para que ela sumisse de vez, pois a personagem é um porre entre tantas e tantas ladainhas.
Isso tem uma razão muito objetiva: é muito, mas muito difícil gostar de algum desses personagens novos. Veja, eu não ligo se querem enfiar ou inventar trocentos indivíduos inéditos para que os fãs comprem milhares de bonequinhos em alguma futura adaptação cinematográfica ou televisiva. Porém, o mínimo que peço é que façam o serviço direito, já que perderam a vergonha na cara.
Dentre o sexteto protagonista, a menos pior ou superficial é a Almirante Sloane. Apesar do núcleo dela ser tão repetitivo quanto a de todos os outros, ao menos o conflito é interessante: como reerguer o Império após a destruição de seu alicerce e mestre? Nisso, temos a oportunidade de conhecer bem Sloane, uma mulher repleta de paciência que tenta superar os comandantes restantes da pequena cúpula do Império dentro da disputa de poder. Todos os outros vilões são caricatos, propositalmente, para contrastar com o “grande” intelecto de Sloane. Com Sloane, o autor pincela características interessantes como a nudez e a possível homossexualidade da moça. Também ela ganha mais peso na história sobre suas próprias dúvidas sobre o Império e o seu futuro.
Contrastante com a boa figura feminina, temos a dupla insossa Norra e Temmin. O conflito dos dois é sim relevante já que se trata de uma reconciliação entre mãe e filho. Após o pai de Temmin ser capturado pelo Império, Norra abandona o filho e parte para o resgate se filiando à Aliança Rebelde. Logo, Temmin tem profundas magoas com sua mãe por tê-lo abandonado em um planeta inóspito.
O conflito é clichê e razoável, porém, Wendig atrasa a narrativa dedicando diversas passagens para resolver esse problema da reconciliação que só é finalizado no último (!) capítulo do livro. Temos que aguentar muita novela mexicana até a conclusão da história. Fora a repetitividade, há o problema de contar com reviravoltas pouco ou nada significativas. Típico de uma trama de múltiplos protagonistas, os encontros e desencontros entre eles são constantes o que também atrasa bastante o ritmo do livro. Apesar disso, como os personagens ficam estacionados nesse dramalhão, eles não são satisfatoriamente desenvolvidos. Ficam reféns do próprio drama e, ironicamente, tornam-se superficiais. Uma escrita preguiçosa que acaba com o potencial dos ditos principais protagonistas.
Temmin não sofre tanto quanto Norra nas mãos de Wendig já que o autor apresenta bem o personagem. Nos primeiros capítulos, a independência e a fala esperta do menino nos cativa, mas tudo isso logo fica estacionado transformando o garoto em alguém tão chato quanto sua mãe. Ao menos ele protagoniza uma reviravolta excelente no fim abarrotado de ação do livro.
Já com a caçadora de recompensas Surat Nuat é tudo medíocre. É uma personagem função: serve apenas para catalisar a ação do livro. Os conflitos dela são básicos tratando sempre da esfera monetária, uma personagem completamente impessoal a respeito da guerra interestelar. Faz sentido ela ser uma tábua, já que é uma caçadora de recompensas, mas é decepcionante não vê-la passar por uma boa transformação. Com o ex-imperial Sinjir, Wendig quase realiza um excelente trabalho, mas aparentemente ele gosta de se sabotar.
Sinjir é bem apresentado, apesar da introdução ser muito semelhante ao primeiro capítulo de Kenobi, o ótimo western espacial escrito por John Jackson Miller. Ali é pincelado algum backstory intrigante que nunca é propriamente revelado. Há um mistério sobre o passado do personagem durante a Batalha de Endor carregada de violência. Ficar provocando o leitor durante o livro inteiro para não entregar nada é bastante complicado. Sinjir e Surat, previsivelmente, passam por uma tensão romântica resolvida aos tropeços. Praticamente, o trabalho inteiro é insatisfatório.
Além de termos uma história sem graça sobre personagens medíocres e nada marcantes, Wendig insere “interlúdios” entre alguns capítulos que terminam com a falha sensação de urgência que o autor permeia durante todo o livro – já que não nos importamos com nada, não há tensão. Esses interlúdios são a síntese da típica “encheção de linguiça”. Muitos contam historinhas completamente inúteis e sem graça. Pior que são desconexas abordando ocasiões ocorridas em outros lados das galáxias. A senso de união também é prejudicado pois não há sequência dentro um interlúdio e outro. De tantos desses pequenos capítulos, acredito que apenas três são interessantes: um que acompanhamos Han, outro que há uma negociação pelo suposto sabre vermelho de Darth Vader e um que aborda o processo de recrutamento de stormtroopers na Academia Imperial. Porém, o pior disso tudo, é que esses interlúdios prejudicam ainda mais o ritmo inconstante da história que Wendig tenta contar. Se não fosse a crítica, eu admito que teria me encontrado pulando diversos pequenos capítulos para acabar logo com o livro.
Até na técnica de escrita Wendig falha. Não se trata de figuras de linguagem ou na descrição visual da ação ou dos cenários – algo que ele faz relativamente bem, por mais brega que seja, justiça seja feita. Mas sim na constante e insuportável construção de parágrafos com sentenças pequenas – algo que foi bastante criticado na versão original. Infelizmente não ficamos livres disso na adaptação para o português.
Ilustrando: toda vez que nosso cérebro lê uma sentença e a finaliza com um ponto final, nós temos uma breve pausa na leitura mental. Sim, essa voz mesmo que você escuta enquanto lê diversas besteiras na internet. Ela. Se. Cala. Quando. Há. Pontos. Tornando a frase segmentada. Percebe? É muito chato. Pois isso. Incomoda. E quebra. O ritmo. Da leitura. ARGH!
Existem tantas sentenças pequenas. Algumas tão pequenas. Como essa. E irrisórias que te dá vontade de jogar o livro na parede pela falsa sensação de convulsão mental. Segue um exemplo dos milhares tirados de um trecho do livro: “Foi o que ela recebeu. Sloane fez muitos inimigos no início. Sempre foi de falar o que pensava. Não sabia seu lugar. E aquilo a prejudicou.”. Além disso, há erros de digitação no livro – ao menos quatro que eu tenha notado, mas claro que isso não é culpa do autor (se livrou dessa, Wendig!).
Me decepciona muito a Disney trabalhar de forma tão preguiçosa o material transmídia que é considerado como o principal elo entre o cânone George Lucas para o novo universo. Não há praticamente nada nesse livro que justifique essa posição importantíssima que ele recebeu. Oferecer meia página de informação útil não compensa a fanfic ruim do restante da obra. No fim, o livro falha em trazer novidades importantes, falha com O Despertar da Força, pois não responde as questões deixadas pelos buracos do roteiro, falha com ele mesmo em não conquistar novos leitores ao abordar uma boa história e falha, principalmente, com os fãs por não respeitar o dinheiro investido.
Marcas da Guerra é a tristeza infinita. Lhes juro que torci para que a cada capítulo o livro melhorasse, mas simplesmente isso não aconteceu. No final, fiquei tão frustrado quanto alguém que é decepcionado pela quebra da promessa de alguém que queremos confiar. Em meio a uma ação irregular de ritmo pecaminoso com muitos personagens insossos, mal uso de clichês, insistência em conflitos prolongados além do necessário, falhas assustadoras em gerar empatia com personagens, desenvolvê-los de modo apropriado, oferecer um backstory interessante, muitos interlúdios inúteis, infinitas sentenças curtas irritantes, prometer novas aventuras com esses personagens nada afáveis e ser uma propaganda enganosa da pior espécie, eu simplesmente não recomendo esse livro nem para o meu pior inimigo. É uma tortura chinesa.
Lenta. Irritante. E pausada.
Star Wars: Marcas da Guerra (Jornada para Star Wars: O Despertar da Força)
Título original: Afterfmath: Star Wars: Journey to Star Wars: The Force Awakens
Lançamento no Brasil: 2015
Autor: Chuck Wendig
Páginas: 464 Páginas
Editora: Editora Aleph
Crítica | Trumbo: Lista Negra
Até mesmo a fábrica de sonhos tem seu período sombrio. A era da Lista Negra de Hollywood surgiu em 1948 quando a MPAA – Motion Picture Association of America, perseguiu quaisquer artistas que fossem suspeitos de participar do partido Comunista americano ou seguir ideologias identificadas à esquerda no compasso político. Tudo isso foi catalisado pela paranoia crescente conforme a Guerra Fria começava a tomar forma.
Dentre as muitas condenações, um grupo se destacou na resistência contra a opressão estatal dos julgamentos dos artistas. Os chamados Dez de Hollywood se impuseram contra os abusos da associação. Um dos membros de maior prestígio profissional era o roteirista Dalton Trumbo. O peso da perseguição política com Trumbo foi avassalador.
O filme escrito por John McNamara trata justamente dos anos difíceis de Trumbo e a adaptação dele e sua família diante de uma nova realidade. Apesar de possuir um texto satisfatório e uma verve cômica excelente, o trabalho do roteirista é bem instável. Isso já começa no primeiro minuto de projeção. McNamara oferece um estabelecimento histórico tão pobre e cínico que falha em cravar o alicerce do filme.
No primeiro ato inteiro, o mais fraco, o roteirista tenta trabalhar com a ideologia esquerdista, a romantização apaixonada da convicção de Trumbo – estranhamente o personagem mais se comporta como um liberal – e, consequentemente, com os conflitos iniciais da Lista Negra. Infelizmente, tudo é muito rasteiro e maniqueísta. Caindo no vício mais condenável de cinebiografias, ele vitimiza Trumbo além da conta. O personagem é demonizado pela MPAA representada por John Wayne e pela anti comunista ferrenha Hedda Hopper e também por desconhecidos após a exibição de um newsreel.
Já com apenas isso, o roteiro começa a mostrar suas deficiências nítidas. A maior problemática se encontra na figura de Hedda, encarnada por Helen Mirren que sustenta a personagem. McNamara insiste em deixar a mulher como uma caricatura histérica superficial, algo muito próximo de um Dr. Evil de saias. As tramoias e os jogos ardilosos de Hedda deixam isso claro, fora a criação de alguns conflitos inadequados que ela tece em diálogos com Trumbo chegando ao ápice na última cena que os dois personagens contracenam. Hedda é tão profunda como a vilã de uma novela mexicana. Também é muito bizarro como a principal antagonista do filme desaparece por boa parte da fita.
Outro ponto que incomoda é o fato de McNamara lançar muitas ideias interessantes, mas nunca as desenvolvê-las de modo apropriado pela necessidade em encaixar mais períodos na vida de Trumbo. Nisso, o longa torna-se pouco complexo e instável devido à pressa. Nunca temos a oportunidade de entender melhor o processo do Estado contra Trumbo, de observarmos seu período na prisão com mais calma, da ironia de sua posição como uma figura que entretém diversas pessoas que o odeiam, de acompanharmos o processo criativo de filmes importantíssimos como A Princesa e o Plebeu, Arenas Sangrentas ou Spartacus. Até mesmo as amizades e a família de Trumbo saem prejudicadas nisso. E, pior, para quem já conhece a fórmula que o roteirista usa, é possível identificar alguns clichês e reviravoltas antes mesmos delas acontecerem.
McNamara passa boa parte do texto insistindo no desenvolvimento muito dúbio na amizade de Trumbo com Arlen Hird. Seja pelos diálogos desinteressantes ou pela repetitividade desses encontros, a verdade é que pouco ligamos para o relacionamento dos dois ou no desenlace desse arco.
Após abandonar o campo da ideologia e da vitimização do protagonista, McNamara passa a construir uma história significativamente melhor na segunda metade do filme. Infelizmente a pressa em incluir muita coisa permanece, porém com o surgimento de novos personagens e com a exploração da dinâmica familiar de Trumbo, além da deterioração do personagem diante de sessões intensas de trabalho pouco gratificante.
Numa escolha muito inusitada, temos Jay Roach – diretor da trilogia Austin Powers, na direção do longa. Infelizmente, Roach segue uma linha de direção nada inspirada. Trumbo é um filme quadrado tanto no conteúdo quanto na forma. Logo, fica difícil identificar quem falha mais ao trabalhar uma grande história como a vida de Dalton Trumbo, afinal McNamara e Jay Roach não ousam em nada.
O diretor trabalha tanto no piloto automático que a decupagem do filme é quase televisiva de tão pouco variada que é. Repare como sempre há os mesmos enquadramentos quando acompanhamos Trumbo a trabalhar seja dentro de sua banheira ou em seu escritório. Ou então na repetição visual causada pelas muitas inserções intrusivas de newsreels pouco funcionais – somente em um, o diretor aproveita para criar alguma transição visual interessante. Pior, quando Roach resolve inventar algo que acredita ser visualmente apelativo, ele erra veio e acerta o brega. Isso ocorre na cena onde o personagem observa seu nome nos créditos de determinado filme. Roach enquadra o nome de Trumbo através do reflexo dos óculos do personagem enquanto este contempla o feito.
Porém, o visual do filme é satisfatório, por sorte, graças a fotografia adequada e pelo competente design de produção. Assim como o roteiro, Roach apresenta boas ideias pouco aproveitadas. Por exemplo, é difícil não notar a semelhança entre Marat, jornalista importante durante a Revolução Francesa, e Trumbo durante as sessões de escrita dentro da banheira – ambas as figuras históricas tinham esse hábito.
A pressa não é somente característica do texto. O filme inteiro possui um ritmo bom por causa das diversas elipses que sempre nos jogam em conflitos novos, mas ao mesmo tempo que se cria isso, o diretor e o roteirista convenientemente se esquecem de muitas coisas deixadas para trás. Fora isso, percebemos que Trumbo vai evoluindo como personagem, mas não vemos exatamente o que ocorre para realizar essa transformação. Isso se dá bastante com as cenas dedicadas à família de Trumbo. O ápice chega com a inesperada cena do aniversário da filha mais velha de Trumbo e o conflito decorrido nessa passagem para logo depois esquecer essa neurose do protagonista assim como não há o menor desenvolvimento da relação dele com seus outros dois filhos e esposa. Na maioria das vezes, o diretor falha em conseguir criar tensão, pois não há o mínimo de antecipação. Tudo é jogado na tela e resolvido com notória rapidez.
Talvez o maior mérito de Roach seja na direção de seus atores, pois o elenco de Trumbo é muito competente. O destaque fica mesmo na interpretação forte de Bryan Cranston ao encarnar o protagonista. Realmente o ator consegue criar facetas novas para seu personagem. Variando entre a ternura nos gestos de carinho com seus filhos, no olhar obstinado que evocam inspiração nas cenas de trabalho acompanhadas pela excelente trilha musical de Theodore Shapiro, na convicção da voz e na expressão de desdém no julgamento dos Dez de Hollywood entre diversas outras coisas.
Somente na última cena na qual contracena com Louis C.K. – o ator mais fraco do elenco, Cranston puxa uma expressão corporal meio corcunda cheia de indignação e impaciência que lembra muito com as poses que o ator fazia ao encarnar Walter White quando este desmoralizava Jesse Pinkman – se o leitor viu Breaking Bad, não será difícil imaginar a atuação de Cranston. Fora Cranston, John Goodman também brilha ao encarnar o caricato produtor Frank King. Christian Berkel está tão bom quanto com seu excêntrico Otto Preminger. Diane Lane e Elle Fanning também conseguem moldar coisas interessantes com o pouco que havia a trabalhar.
Trumbo: Lista Negra é um filme que segue à risca a receita de uma cinebiografia genérica. Não é de modo algum um filme ruim, mas sim um longa desperdiçado. Com uma história interessante acompanhada do elenco repleto de grandes nomes, é triste perceber como Trumbo poderia ser algo muito mais grandioso do que ele é. A pressa em solucionar conflitos breves para incluir novas passagens na vida do protagonista certamente é o fator que mais prejudica o filme. A direção engessada, porém, razoável de Roach também não permite a criação de elementos interessantes ou genuínos. Não fosse a grande atuação de Bryan Cranston, certamente este longa passaria despercebido aos olhos de muita gente. O que resta é a boa mensagem do filme enaltecendo às liberdades individuais, o humor certeiro, a oportunidade de conhecer um pouco mais da vida de um dos maiores roteiristas da História do Cinema e, também, de uma mancha na história de Hollywood. Um bom filme que se contenta com pouco.
Crítica | O Regresso, de Michael Punke
Como muita gente já deve saber, a história de O Regresso, filme de Inãrritu que estrei nesta quinta, é inspirado na história real de um desafortunado chamado Hugh Glass. Porém, o que talvez passe despercebido é que o roteiro do longa é baseado no trabalho literário de Michael Punke.
Assim como o filme, Punke explora o episódio que tornou Hugh Glass uma verdadeira lenda. A abordagem do autor é similar com a de Truman Capote em A Sangue Frio. Ou seja, é uma romantização dos fatos ocorridos na realidade – claro que o trabalho de Punke não chega perto do brilhantismo de estilo e narrativa de Capote. Então, não se engane. Essa não é a história 100% verdadeira dos fatos ocorridos com Glass, mas trata-se de uma boa obra de entretenimento com algum valor histórico.
Hugh Glass faz parte de uma expedição da Companhia de Peles Montanhas Rochosas. Durante uma das longas viagens da companhia, Glass é atacado por uma gigante ursa parda. O combate é esmagador. Glass é comido vido, dilacerado, rasgado, esmagado, quebrado. Porém, por um milagre, ele sobrevive ao ataque. Seus colegas de expedição, diante da descrença na sobrevivência de Glass, decidem deixá-lo aos cuidados, com a recompensa de setenta dólares para cada um, de outros dois homens: o ingênuo Jim Bridger e o cínico Fitzgerald.
Diante da impaciência em tratar dos ferimentos de Glass e do medo de iminente ataque indígena ou de até mesmo ficarem perdidos, Fitzgerald e Bridger abandonam Glass no meio da floresta congelada e do ermo selvagem. Também roubam suas armas e pertences antes de deixa-lo congelar até a morte. Porém, o ódio de Glass é poderoso. Novamente, Glass dribla a morte enquanto se recupera gradativamente do ataque da ursa. Em sua jornada de sobrevivência, o homem jura vingança contra os dois traidores.
O livro é dividido em duas partes. A distinção entre as duas é clara. A primeira parte é mais dinâmica, mesmo centrada apenas no solilóquio de Glass. O autor não enrola para mostrar o ataque da ursa. Em poucos capítulos, Glass já apanha bastante, porém o ponto principal da narrativa, a vingança, ainda leva algum tempo para engrenar. Essa primeira parte é a mais conectada com o filme. Tanto pela atmosfera mais solitária quanto pelos acontecimentos adaptados.
Punke acerta ao transcorrer todos os episódios de terror que Glass tem que enfrentar contra a natureza inóspita do oeste inexplorado dos Estados Unidos. A narrativa se passa em 1823, no século XIX. Nesse oeste congelado, não haviam leis, nem moral ou ética. Era o puro instinto da sobrevivência. O dinamismo da ação é ótimo aqui – aliás, é até melhor que no filme. Glass tem encontros com diversos animais selvagens, tem que caçar para saciar sua fome, dar um jeito nos seus ferimentos infeccionados, manter a sanidade, alimentar a sede da vingança, encontrar o caminho de volta para algum forte, fugir de indígenas hostis como os arikaras, sioux ou os blackfeet, além de se abrigar contra nevascas duras.
Nessa esfera visceral, Punke se sai muitíssimo bem. As palavras do livro são cruas e bem gráficas – ótima competência para a construção visual da narrativa. Porém, no que se trata do drama humano, acredito que o autor falha. Na primeira parte, nada é de fato grave. Como se trata do começo do livro, é muito interessante aprender sobre esse período histórico, da sociedade da época, da noção de justiça de fronteira, do modo de vida daquelas pessoas e seus instrumentos de caça um tanto rudimentares.
Até mesmo é legal conhecer melhor diversos personagens que ganham um tratamento mais simplório no filme. Punke faz questão de elaborar o backstory de ao menos quatro dos personagens principais. Conhecemos melhor Fitzgerald e seu vício em jogos de azar; Jim Bridger com sua vontade em se tornar um grande explorador; do passado “ama;diçoado” de Capitão Henry e sua empreitada empreendedora e de Hugh Glass.
Como não poderia deixar de ser, Glass é quem recebe mais atenção nisso tudo. Porém, confesso que de todos os personagens, o passado dele foi o que menos me cativou – ainda que seja uma grande história cheia de aventura e que evoque paixão pela natureza. Ali, comecei a notar as deficiências de Punke na narrativa do livro.
Realmente quando o autor se dedica a desenvolver os personagens, seja pela falta de conflito ou pelo ritmo maçante dos acontecimentos, o livro torna-se extremamente enfadonho. O dinamismo visto outrora rapidamente some. Em pouquíssimas passagens onde Glass interage com outros personagens, me senti interessado pelo o que era descrito. As boas histórias estão ali. Geralmente quando Glass interage com índios: seja pacificamente ou durante uma das muitas perseguições nervosas.
O ritmo da leitura também é constantemente quebrado pela escolha do autor em não se centrar apenas em Glass. Toda vez que lemos o ponto de vista de Fitz, Henry ou Bridger, as páginas tornam-se mais lentas. No caso de Henry, a narrativa fica mais enfadonha por conta da repetição de fatos. Sempre o líder da expedição está procurando algum forte ou abandonando o mesmo.
Também na primeira parte, principalmente no ataque da ursa, ao mesmo tempo que o autor fascina pela descrição realista do ocorrido, ele força a barra com algumas “liberdades poéticas” que utiliza para tornar o conflito mais “artístico” ou profundo quando o ideal seria ater-se ao instinto. Afinal, não creio que Glass tenha olhado com “medo e fascinação” para o animal enquanto tentava manter o couro cabeludo preso a pele do escalpo.
Na segunda parte, o livro torna-se mais insosso. A ação fica menos constante e o interesse sobre os personagens vai, lentamente, diminuindo. Aqui, o autor aposta mais em relações homem/homem do que as interessantes homem/natureza. Talvez seja pelo teor mais chato dos diálogos banais que não exploram bem a tensão que deveria permear o livro. Também, a inserção de novos personagens se revela necessária – mesmo que sejam um gatilho para a ação. Porém, como dificilmente há a chance de simpatizar com eles, o resultado torna-se um tanto falho. E não são poucas as situações como essa.
A segunda parte diverge praticamente em tudo em relação ao filme. E também é um exercício de determinação. Acredito ser extremamente fácil abandonar o livro devido o constante desinteresse que surge diante do material e do clima tedioso. O autor também desiste de desenvolver melhor os personagens – tornam-se fantasmas monótonos do prometiam ser. A antecipação da vingança também esfria rapidamente. O que penso é que é fácil gostar bastante da primeira parte do livro. Ela é rápida e muito interessante. Já aqui, os capítulos custam a acabar.
Para piorar, o fim do livro é totalmente anti-climatico. Não consegue cumprir a premissa que era construída até então, além de trair seu marketing. Primeiro pelo estabelecimento para lá de preguiçoso em colocar Glass no encalço de Fitzgerald. Depois, pelo procedimento que o autor oferece à vingança. Como essa parte é completamente fictícia, a imaginação do autor poderia ser mais apurada oferecendo um final realmente memorável a sua obra e a lenda de Hugh Glass. O que é apresentado para nós é muito decepcionante.
Depois, quando ele revela que boa parte do livro vem de sua imaginação, a situação não melhora muito, já que é possível criar coisas realmente fantásticas com esse argumento. Também acredito que, às vezes, falta um pouco mais de contexto histórico a ser apresentado para o leitor, além de uma melhor diferenciação das tribos indígenas.
O Regresso é um livro muito. Começa explosivo com uma escrita inspirada, repleta de vida e situações muito interessantes. Porém, sua segunda parte e seu final absolutamente broxante frustram o potencial que história apresenta em seu início. Eu recomendaria apenas para os que viram o filme, se encantaram muito com a jornada de Hugh Glass e ficaram ávidos por mais daquele universo. Aqui é uma outra versão. Algumas passagens são melhores e mais aprofundadas do que o que é visto no filme, porém no que tange a segunda parte da obra e seu desfecho, acredito que o filme seja melhor. Enfim, um bom exercício de leitura e de pesquisa bibliográfica, mas creio que não será o livro de vingança e sobrevivência que marcará sua vida. Dizem que a versão de Frederick Manfred em seu Lord Grizzly é superior.