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Crítica | As Viúvas – Subvertendo o filme de Assalto

Desde o final da década passada, o cineasta britânico Steve McQueen vem se firmando como uma das vozes mais talentosas e sólidas do cinema de língua inglesa, mesmo com um currículo tão curto. Passando por pesados estudos de personagem protagonizados por seu colega Michael Fassbender com o intenso Fome e o devastador Shame, McQueen entrou no radar da Academia com 12 Anos de Escravidão, que conquistou o Oscar de Melhor Filme em 2014. Agora, após um hiato considerável, McQueen retorna naquele que certamente é seu projeto mais comercial, mas que nem de longe ofusca suas qualidades artísticas: As Viúvas, uma subversão do cinema heist.

A trama começa quando um roubo liderado pelo criminoso Harry Rawlings (Liam Neeson) dá errado, resultando em sua morte e na de todos os seus companheiros. Como o dinheiro foi destruído na explosão do veículo da equipe, a viúva Veronica (Viola Davis) é pressionada por Jamal Manning (Brian Tyree Henry), um mafioso de Chicago que está iniciando uma campanha para se tornar vereador de uma zona chave da cidade, a lhe pagar a quantia milionária que foi perdida. À medida em que a disputa entre Manning e o favorito Jack Mulligan (Colin Farrell), Veronica se reúne com as demais viúvas da equipe de seu marido, para que elas mesmas executem um novo assalto.

Um organismo vivo

O subgênero do heist (filme de assalto) é uma armadilha estrutural, visto que a maioria dos filmes com essa veia segue uma fórmula muito específica, com o planejamento do golpe, a divisão de tarefas de equipe e toda a antecipação para finalmente ver o plano ser executado. As Viúvas já subverte essa proposta de forma eficiente em seus minutos iniciais, pelo simples fato de trazer um dos astros de ação mais populares do momento, Neeson, sendo explodido após uma cena de ação intensa, algo que definitivamente prepara o terreno para um filme de gênero distinto; ainda que inevitavelmente traga um pouco da fórmula.

Escrito por Gillian Flynn (autora e roteirista de Garota Exemplar) e o próprio McQueen, o roteiro é mais fragmentado do que aparente ser. Optando por fazer um verdadeiro malabarismo entre os diferentes pontos de vista da história, as viúvas de Veronica dividem o espaço com a vasta trama eleitoral envolvendo os personagens de Farrell e Henry, que ainda trazem subtramas que envolvem a relação de Jack com seu pai (um ótimo Robert Duvall) e Jamal com seu irmão, vivido por Daniel Kaluuya – ao mesmo tempo em que a narrativa se aprofunda em dramas pessoais de cada uma das viúvas, sendo divertido ver como a personagem de Cynthia Erivo é apresentada de forma inicialmente abrupta, sendo uma babá que é contratada por Michelle Rodriguez para cuidar de seus filhos – a montagem de Joe Walker é excepcional nesse quesito, de equilibrar as narrativas. 

É quase como se a cidade de Chicago fosse a real protagonista da história, que é eficiente em criar uma atmosfera vivida e marcada por eventos sempre se desenrolando; algo que até justifica melhor algumas “coincidências”e encontros entre personagens no decorrer da trama; especialmente na participação reduzida de Carrie Coon. Se há um pecado aqui é que a trama eleitoral infelizmente não cativa tanto quanto ao setor dedicado às viúvas, que traz muito mais urgência, enquanto tais cenas de campanhas e negociações acabem pendendo para o lado mais político e socialmente relevante do texto – algo que deve vir mais de McQueen do que Flynn, visto que suas marcas autorais (com destaque para uma reviravolta abrupta) são bem perceptíveis aqui.

Um mestre com a câmera

Como diretor, Steve McQueen é um mestre com a câmera. Em diversas sequências, o diretor impressiona pelos planos longos que são usados para construir tensão, vide aquele em que temos uma série de panorâmicas ao redor do personagem de Kaluuya e os jovens que está ameaçando, ou até mesmo um de caráter mais simbólico. Há um momento em que Farrell entra em seu carro, mas a câmera jamais sai do canto do carro, sem revelar o ator durante o extenso diálogo, apenas a ponta do capô e as ruas do bairro passando – algo que serve para contextualizar ainda mais o ambiente e, posteriormente, colocar o espectador na perspectiva do motorista negro, que apenas escuta o diálogo preconceituoso de Mulligan.

Essas características também aplicam-se nas cenas mais movimentadas do filme. É o tipo de ação mais intensa e desesperadora possível, e McQueen capta esse realismo ao sempre capturá-las com um enquadramento dentro de algum ambiente, principalmente o interior de carros, vans e garagens. A cena do assalto climático é um exemplar de suspense e ação andando de mãos juntas, com destaque para o empecilho que é resolvido de uma maneira absurdamente simples – mas eficiente. O fato de termos Hans Zimmer entregando um de seus trabalhos mais contidos e discretos também é uma prova desse estilo mais realista de intensidade, com a trilha musical manifestando-se pela primeira vez após cerca de 1 hora de projeção.

Grande Golpe

Com tantos nomes de peso em seu elenco, não é surpresa alguma que tenhamos aqui uma das melhores coleções de performances do ano, com a sempre excepcional Viola Davis entregando mais uma atuação primorosa. É o conflito entre o desespero e a contenção desta que rendem os melhores momentos de Veronica, especialmente quando a vemos forcando-se a manter sua postura mais destemida e controlada, mesmo estando gritando por dentro. Dentre o grupo de viúvas, Elizabeth Debicki finalmente ganha espaço para demonstrar um talento até então desconhecido, tendo o arco mais interessante – e com mais propensão ao humor – através de uma mulher mais vulnerável e dependente de todos ao seu redor (e até um tanto bobinha), mas que surpreende ao tornar-se uma das figuras mais fortes. Michelle Rodriguez tem alguns momentos de entrega mais dramática, mas não deixa de ser mais uma variação de sua postura que passamos a conhecer na franquia Velozes e Furiosos.

Quem rouba a cena entre os coadjuvantes é Daniel Kaluuya, encarnando a figura mais ameaçadora do núcleo Manning. Seu Jatemme é um sujeito silencioso e quieto, mas cujas explosões súbitas de violência e sadismo o tornam um antagonista perigoso e imprevisível – a calma quase infantil na voz de Kaluuya ao ameaçar um contato de Harry é desde já um um dos pontos altos da carreira do ator. De forma um pouco mais contida, Brian Tyree Henry faz de Jamal um sujeito mais cordial e concentrado, mas cuja brutalidade vem à tona em uma tensa interação com Veronica. 

As Viúvas é mais um grande trabalho de Steve McQueen, que revela ser capaz de conduzir uma narrativa bem mais comercial e de apelo ao público, mas com suas marcas autorais sempre no próximo nível. Sempre um alento ver que o cinema de gênero pode encontrar formas de se renovar

As Viúvas (Widows, EUA – 2018)

Direção: Steve McQueen
Roteiro: Gillian Flynn e Steve McQueen, baseado na obra de Lynda LaPlante
Elenco: Viola Davis, Elizabeth Debicki, Michelle Rodriguez, Cynthia Erivo, Carrie Coon, Liam Neeson, Jon Bernthal, Colin Farrell, Brian Tyree Henry, Daniel Kaluuya, Robert Duvall, Molly Kunz, Jacki Weaver, Lukas Haas, Garrett Dillahunt
Gênero: Drama, Ação
Duração: 129 min

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Publicado por Lucas Nascimento

Estudante de audiovisual e apaixonado por cinema, usa este como grande professor e sonha em tornar seus sonhos realidade ou pelo menos se divertir na longa estrada da vida. De blockbusters a filmes de arte, aprecia o estilo e o trabalho de cineastas, atores e roteiristas, dos quais Stanley Kubrick e Alfred Hitchcock servem como maiores inspirações. Testemunhem, e nos encontramos em Valhalla.

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