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Crítica | Cinquenta Tons Mais Escuros

E.L. James conseguiu o mais improvável. E não dúvido nada que tenha acontecido por um feliz acidente do acaso. Tornar um projeto que se iniciou como uma fanfic da saga Crepúsculo em uma das trilogias literárias mais vendidas da História. A história de Anastasia e o excêntrico milionário Christian Grey movimentaram a imaginação das pessoas, seja pela enorme polêmica repercussão na mídia ou com a improvável eficiência da técnica de narrativa da autora ainda amadora.

Como de praxe, tudo que movimenta quantidades massivas de dinheiro na literatura, logo tem seus direitos cinematográficos comprados. O enorme desafio em adaptar uma história bastante erótica com diversas passagens de sadomasoquismo caiu nos colos do centenário estúdio Universal. O dilema enfrentado era a questão monetária. Devido às passagens de sexo que praticamente sustentam toda a relação entre os protagonistas, o filme receberia uma censura alta – algo quase sempre incompatível no desejo dos estúdios com seus blockbusters.

Entretanto, o ano de 2015 seria um dos melhores para a Universal. Dois de seus carros-chefe atingiram a marca do bilhão de dólares em bilheteria. E os fãs de Cinquenta Tons de Cinza foram fidelíssimos, mesmo com as notas abissais conferidas pela crítica especializada. O filme foi um grande sucesso, ainda que não tenha agradado a todos. Com muita polêmica nos bastidores das futuras sequências, a diretora abandonou o cargo que foi conquistado por James Foley, um dos diretores da prestigiada House of Cards. Com muito dinheiro para contornar as crises diversas da produção, é possível afirmar que Cinquenta Tons Mais Escuros é um longa superior ao original? De certa forma, sim, mas ainda deixa muito a desejar como discutiremos em detalhes agora.

Ciclo Sem Fim

Previamente, era esperado que E.L. James, autora dos livros, adaptasse sua segunda obra como roteirista. Porém, quem assume a escrita é Niall Leonard. Como esperado, a narrativa se dedica a mostrar uma reaproximação do casal após o rompimento do contrato no filme anterior. Grey percebe que sua vida fica vazia e sem sentido com a ausência de Anastasia e se prontifica a reencontrar a moça.

Anastasia conseguiu um emprego assistente de um jornalista da mídia independente de Seattle, tentando normalizar sua vida após os episódios intensos com Grey. Após reencontrar a antiga paixão, Anastasia aceita reatar com o milionário, mas sob algumas novas condições em seu contrato: dessa vez, eles terão um relacionamento normal como namorados e Grey terá de mostrar seus segredos mais profundos de seu passado que, infelizmente, ressuscitará alguns fantasmas que prometem ameaçar a vida do casal.

Mesmo com uma premissa mais interessante em oferecer um estudo maior ao personagem de Christian Grey, o roteiro de Leonard costuma falhar, apesar de manter uma integridade aceitável até metade do segundo ato do filme. Aqui, os holofotes abandonam a protagonista de outrora para oferecer insights dramáticos sobre o passado do homem milionário tentando justificar, em uma versão de boteco da filosofia de Édipo, as taras sadomasoquistas praticadas constantemente pelo personagem.

Sua misoginia de outrora é desconstruída passo-a-passo de modo bastante frisado. Os diálogos continuam bastante expositivos entre as muitas conversas entre o casal. Christian é apresentado como um homem vulnerável e mais humano para Anastasia e, por consequência, consegue virar um personagem com maior empatia por parte do público. Seus ataques de ciúmes e possessão ajudam a criar um humor involuntário em torno de diversas das ações que toma quando confrontado por Anastasia. Claro que seus eventos traumáticos do passado obscuro que flertam com horror, são totalmente clichês, manjados e nunca explorados de fato, já que o roteirista tem imensa pressa para contar uma narrativa deveras simplória.

O personagem expõe os abusos sofridos por conversas que rapidamente são interrompidas ou através de algumas situações bregas para definir certa ‘transformação’ como quando desenha limites em seu corpo cheio de cicatrizes para que Anastasia possa tocá-lo e demonstrar afeto amoroso. O maior progresso do trabalho de Leonard é mesmo desenvolver Grey no limite da possibilidade que o material base oferece. O personagem cresce solidamente tentando se livrar dos vícios sadomasô – mesmo que nada disso seja mostrado em tela, apenas discutido em diálogos.

Aliás, um dos pontos mais criticados de Cinquenta Tons de Cinza foi a péssima qualidade que os diálogos carregavam. Aqui, há certa melhoria. Como o filme inteiro acompanha a dinâmica do casal praticamente investindo somente cenas nas quais os personagens contracenam, a maioria deles se concentram em joguinhos de sedução apaixonados, propostas de audácias sexuais e muita, mas muita discussão de relacionamento que trazem à tona as breguices genuínas da franquia. Raramente isso é quebrado quando ambos encontram outros coadjuvantes totalmente pálidos, mas que trazem conflitos mais pertinentes para tirar o filme de um marasmo repetitivo dessas conversinhas.

A volta dos que não foram

Os personagens que quebram o ciclo insuportável de “confidências amorosas > sexo > discussão de relacionamento > sexo > confidências amorosas/passado obscuro de Grey > sexo” também são pálidos, porém injetam mais vida ao filme. Três pontas antagonistas fazem presença para mover um conflito externo ao casal. O mais interessante e funcional é o chefe de Anastasia que claramente tem segundas intenções para com a moça. Jack Hyde é justamente o monstro sob a pele da inocência. Seu nome é referência direta ao romance O Médico e O Monstro no qual o protagonista Jakyll é possuído diversas vezes pela sua personalidade assassina, Hyde. É algo bem rasteiro, no nível da escrita de E.L. James.

Apesar do potencial que o personagem poderia ter em tornar a relação de Anastasia com Grey mais interessante e explosiva, autora e roteirista desperdiçam Jack para cumprir um papel clichê de vilão renegado obsessivo que deve dar as caras no próximo filme.

As outras duas personagens que também tentam desestabilizar o romance protagonista acabam prejudicadas pelas más escolhas de Leonard em não investir tanto tempo para que elas se tornem criveis. A primeira é Leila, uma ex-submissa obcecada por Christian Grey. Tão logo, ela passa a perseguir e tentar machucar Anastasia. O problema é que essa mulher é considerada uma grande ameaça latente, porém Leonard parece esquecê-la completamente por enormes segmentos do filme. Mesmo que haja propósito em sua existência ali, o espectador nunca levará a sério uma antagonista tão ausente por tantos minutos de projeção.

Na conclusão de seu arco, praticamente nada é aproveitado. Gera um conflito tosco e injustificado entre os dois personagens que também logo se resolve em uma das muitas sessões de sexo de reconciliação. Por fim, Kim Basinger encarna a cougar Elena Lincoln, a srta. Robinson – referência de A Primeira Noite de Um Homem – de Christian Grey. A base do conflito de Lincoln com Anastasia é fundamentada com bastante preguiça e seu desfecho é pior ainda ao conseguir transformar uma das últimas cenas em uma verdadeira novela mexicana com direito a tapa na cara e outros clichês do tipo. Impossível conter o riso.

E a protagonista?

Bom, toda a trilogia de Cinquenta Tons é a história de Anastasia. Mesmo que aqui a ênfase seja em Grey, Anastasia tem seus momentos. O roteirista tenta criar uma mulher mais independente, irreverente que tenta virar a dominadora da relação. Infelizmente, o desenvolvimento de Anastasia é bastante fraco devido a enorme inconsistência da escrita de Leonard. A protagonista praticamente quica por todos os lados continuando sempre restrita ao mesmo lugar.

O texto a transforma em uma bipolar por conta das indecisões sobre a desistência ou a fascinação com as sessões de sadomasoquismo. Não somente com isso, mas em praticamente tudo que ela finge decidir para então ceder a alguma pressão de Grey que acaba em sexo. A compreensão dos terrores do passado de seu namorado também não é algo elaborado. É tudo muito simplório resolvido em diálogos fracos traindo a proposta de transformar Cinquenta Tons Mais Escuros em um filme de drama.

Nem mesmo no núcleo que acompanha seu crescimento profissional, há algum tipo de boa realização. Enquanto o texto se mantém medíocre em contar uma história de namorados como qualquer outra, o filme é ótimo. Se sustenta pelo carisma do casal e das boas tiradas de humor ou pelos pequenos momentos de criatividade nas atividades sexuais com brinquedos. Porém, a partir do instante no qual Anastasia é confrontada por Leila, o filme descarrila.

É uma curva descendente que impressiona os mais céticos dos espectadores. O ápice do besteirol sem sentido surge na cena mais deslocada e tosca do ano: um passeio infeliz de helicóptero com Grey. Sua função é provocar uma catarse básica sobre tempo e vida para Anastasia, porém tudo é resolvido de modo tão pateta e inacreditável que eclipsa até mesmo o joguinho de sadismo psicológico que a protagonista arquitetava contra Grey. Novamente, é difícil conter o riso.

Nisso, ao longo das inacreditáveis duas horas de projeção, Anastasia termina exatamente no ponto que o filme começa o que revela uma falta de capricho completa por parte do roteirista ao submeter o espectador na tortura cíclica e redundante que o filme revela ser.

House of Bondage

Se havia algo para ser elogiado em Cinquenta Tons de Cinza, certamente era o trabalho de Sam Taylor-Johnson na direção, além do competente setor técnico do filme. Dessa vez, temos James Foley ocupando o cargo e, estranhamente, consegue ser um trabalho tão bipolar quanto a protagonista.

Por vezes, Foley tem um capricho absurdo com encenação como a famosa (e desperdiçada) cena do baile de máscaras que marca o ponto mais alto do filme. Em maioria, o diretor faz o básico se preocupando em fornecer enquadramentos bonitos. Mas já nesses momentos, em estranhos jogos de plano/contraplano, Foley enquadra os personagens com um enorme espaço vazio no terço direito do plano. É algo que não agrega nada simbolicamente e sacrifica o equilíbrio dos enquadramentos que moldam o restante das cenas. Certamente não é algo que incomodará muitos espectadores, porém é uma imperfeição técnica sem sentido.

Também é bizarro notar como Foley aposta em uma mesma encenação em cenas de “suspense”. Repare, toda vez que a música de Danny Elfman fica um pouquinho mais tensa, a fotografia mais sombria de cores mudas, alguém surge na profundidade de campo, completamente desfocado. Todos os três antagonistas têm momentos bregas com essa mesma encenação já datada que confere roupagem de novelão de Jorge Fernando a uma obra cinematográfica.

Outro detalhe que é uma grande fraqueza do longa são as cenas de sexo. Enquanto Taylor-Johnson conseguia configurar um aspecto único para cada uma das anteriores, Foley basicamente repete o modo de filmar nas que surgem na história. Também é um tanto engraçado notar como o roteiro não é nada inventivo para as atividades ou brincadeiras sexuais que os protagonistas trocam. Cinquenta Tons Mais Escuros é um dos filmes eróticos mais broxantes que eu já vi. Justamente no aspecto de encenação que o longa tinha que brilhar, ele falha espetacularmente.

Claro, Foley traz decupagens que valorizam o corpo de Dakota Johnson e também de Jamie Dornan para fazer o gosto dos espectadores em geral. Não que o diretor nem se esforce em trazer algo mais apimentado para as telas. Em certos momentos, até tenta sincronizar as batidas mais fortes de uma canção com reaction shots de Dakota esbanjado expressões de prazer. Entretanto, é um recurso pífio utilizado em uma cena enquanto as outras carecem de qualquer identidade, além de uma fotografia diferenciada. Filmes dos anos 1990/200 como Proposta Indecente, Infidelidade, Pecado Original ou Instinto Selvagem estão a anos-luz em termos de linguagem visual do que o material apresentado aqui.

Não se trata de pornografia, obviamente, porém cenas que deveriam nutrir sentido ou exalar paixão são totalmente estéreis prejudicando a história de amor proposta. Esses problemas de encenação e montagem assombram outras diversas cenas da obra, principalmente todas as cenas concentradas após o arco do helicóptero.

No que Foley consegue se sair melhor e imprimir alguma identidade sua se dá com as atuações de Dorner e Johson que demonstram melhor química e menor constrangimento em cena. Como as cenas entre os dois são divertidas, o filme se torna fluído até certo ponto no qual se arrasta em uma chatice sem fim. Outro bom elemento, é o design visual bastante distinto do filme anterior.

Enquanto tínhamos uma paleta monocromática emulando os 50 tons de cinza, este aqui conta com cores saturadas acompanhadas pela elegante iluminação de John Schwartzman. O visual abandona aquele clima soturno e secreto para representar a vida de Grey. Tudo é mais “normal” acompanhando a proposta de Anastasia em ter um namoro ordinário com Christian.

Ode ao Nada

Apesar de tudo o que apontei no texto, Cinquenta Tons Mais Escuros não é um filme de todo ruim. O crescimento de Christian Grey como personagem e os doces momentos iniciais do novo namoro do casal conseguem sustentar o filme em um leve tom divertido. A última meia hora é que realmente desmorona a qualidade de uma obra que seria boa em retratar a efemeridade corriqueira de um começo de relacionamento.

Todavia, há muitos erros técnicos, algumas bizarrices de narrativa, os péssimos antagonistas, o mau uso de trilha licenciada que conferem ares de videoclipe para muitas cenas, além da estrutura cíclica irritante para contar uma história tão simples que não exige tantas reviravoltas tontas para estender sua duração.

Em geral, mesmo que o longa consiga agradar, a sensação que perdura no fim da sessão é a do enorme desperdício do filme que se contenta em transmitir nada para o espectador enquanto o potencial de sua proposta amarga esnobado na profundidade de campo, assim como os inimigos invejosos do casal Grey.

Cinquenta Tons Mais Escuros (Fifty Shades Darker, EUA – 2017)
Direção:
James Foley

Roteiro: Niall Leonard, E.L. James
Elenco: Dakota Johnson, Jamie Dornan, Eric Johnson, Eloise Mumford, Bella Heathcote, Rita Ora, Luke Grimes, Kim Basinger, Marcia Gay-Harden
Gênero: “Drama”, Erótico, Romance
Duração: 118 minutos.

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Publicado por Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema seguindo o sonho de me tornar Diretor de Fotografia. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas.

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