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Crítica | Desventuras em Série: Mau Começo, A Sala dos Répteis e O Lago das Sanguessugas

Desventuras em Série

Mau Começo

A Sala dos Répteis e O Lago das Sanguessugas

Lançado em 1999, Desventuras em Série é uma saga extremamente peculiar e digna de ser parabenizada, pois, diferente dos atuais livros juvenis, não há um universo de fantasia, romance, distopia e muito menos jornadas de herói com ações salvadoras e finais felizes. 

A série é iniciada com Mau Começo e conta com Lemony Snicket, pseudônimo de Daniel Handler para narrar a triste história de Violet, Klaus e Sunny Baudelaire. Logo nas primeiras páginas, os três irmãos tornam-se órfãos e, com a morte de seus pais, recebem o direito a uma enorme fortuna – que só pode ser tomada quando Violet, a filha mais velha, de 14 anos, atingir a maioridade. Como o próprio nome sugere, a perda dos pais desencadeia uma série de eventos infelizes e sombrios para o trio, sendo a maioria por culpa das tramas de Conde Olaf, o ganancioso antagonista – e primeiro tutor legal – da série. Neste primeiro momento, as crianças passam por algumas desventuras, desde roupas que provocam comichão na pele, até um terrível incêndio e várias tigelas de mingau gelado no desjejum da manhã.

O primeiro livro é mais parado em comparação aos outros, pois foca bastante na apresentação e contextualização dos personagens. Em termos de ação, podemos inserir duas ou três agressões físicas e morais de Olaf e seus capangas sobre as três crianças, mas nada que seja gritante a ponto do leitor se revirar na cadeira. 

Diferente do primeiro, A Sala dos Répteis, gera um pouco mais de ansiedade durante a leitura, já que há a presença de um assassinato e uma fuga de carro. Os irmãos atravessam a estrada do Mau Caminho e ficam sob os cuidados de Tio Monty, um herpetologista adorável. Na edição, as crianças recebem o carinho e a atenção que as pessoas de sua idade merecem, além de criarem amizade com a Víbora Incrivelmente Mortífera – uma das cobras de seu tutor – até que se encontram com Stephano, que na verdade é Olaf disfarçado. 

É importante ressaltar que, embora seja escrito para crianças e adolescentes, Desventuras em Série não é infantil. Os livros são repletos de críticas à diversas instâncias da sociedade e possuem um conceito interessante de morte, pois em todos os livros há a perda, física ou psicológica, de algum ente querido.  

Dando continuidade à tristeza dos órfãos, após perderem a estadia com Tio Monty, é a vez de Tia Josephine cuidarem dos Baudelaires. No terceiro livro, O Lago das Sanguessugas, os três passam pelo Cais de Dâmocles e vão morar numa casa precária acima do Lago Lacrimoso. Lá, devem seguir o estilo de vida amendrontado de sua nova tutora – ou seja, colocar latas nas portas para evitar assaltos, tomar sopa gelada mesmo no clima frio, não usar nenhum tipo de aparelho e evitar sentar-se ao sofá para não quebrar a cabeça e morrer. Tudo vai bem até, novamente, encontrarem o Capitão Sham, que, como sempre, é Olaf disfarçado. A edição traz momentos intensos, como mostra a própria capa. 

A série faz alusões o tempo todo, a mais notável é em relação ao número 13, considerado a representação do azar – são 13 letras no nome e pseudônimo do autor, 10 letras e 3 personagens Baudelaire, além de 13 livros, cada um com 13 capítulos. 

Para os que gostam de descobrir referências, Desventuras em Série torna-se um grande passatempo, já que vários nomes de personagens, lugares, acontecimentos e falas de Sunny são voltadas a palavras em outras línguas e figuras gregas – como um desenho do camafeu de Hermes, em A Sala dos Répteis, e Dâmocles, em O Lago das Sanguessugas – e grandes nomes da literatura – como Charles Baudelaire, Edgar Allan Poe, Nathaniel Hawthorne, Virgínia Woolf, Agatha Christie, Herman Melville, William Shakespeare, entre outros.

Além disso, Daniel torna a leitura ainda mais enriquecedora inserindo palavras e expressões, dificilmente conhecidas pelas crianças, junto ao seu significado e pronúncia, diferente do restrito vocabulário que encontramos nos livros destinado a esse público.

Todos os livros contêm páginas de espessura grossa, ilustrações e tipografia grande – o que deixa a leitura ainda mais rápida. Em termos de ação, os três primeiros – Mau Começo, A Sala dos Répteis e O Lago das Sanguessugas – são mais parados em comparação ao resto da saga e possuem a mesma estrutura: dias com o novo tutor, a aparição de Olaf em um disfarce bizarro, alguma morte, a incompetência do Sr. Poe na proteção das crianças e, por fim, a fuga do conde. 

Para os que não conhecem a saga pode parecer difícil imaginar-se lendo três livros basicamente iguais, no entanto, Daniel usa sabiamente alguns elementos para prender a atenção do leitor, como a psicologia reversa – ao sugerir a interrupção da leitura –, a ironia e a quebra de expectativa em relação aos clímaxes. Esse último artifício é um dos mais interessantes, já que o autor antecipa momentos importantes da narrativa sem prejudicar a surpresa – em A Sala dos Répteis, por exemplo, o narrador comenta em vários momentos sobre a futura morte de Tio Monty, mas não diz como esse fato acontecerá, atiçando, então, uma curiosidade angustiante em quem lê. O mesmo recurso, porém com pequenas alterações, é usado em O Lago das Sanguessugas, após a surpreendente morte de Tia Josephine e o período de luto, o narrador conta que a personagem está viva e prende o leitor até a descoberta de como isso é possível.

Os livros também trazem uma abundância de críticas – como a ignorância presente nas pessoas que não leem, a facilidade dos advogados em ganhar dinheiro com algo “desinteressante” para a população, os medos irracionais e as soluções ridículas que damos a eles, etc – mas a maior de todas, talvez, seja sobre o sistema de adoção, tutela e herança. Os três primeiros retratam como as crianças, precoces e inteligentes, podem ser marginalizadas por um sistema de adultos que lhes faz o desserviço de colocá-los em grave perigo.

Aliás, é encantador o fato de que mesmo com todos os infortúnios vividos, os pequenos Baudelaires conseguem encontrar forças para proteger uns aos outros e criar soluções dentro de suas áreas de interesse. Os três são pessoas comuns, não possuem super poderes, magias ou excessivas crises de altruísmo. Violet, por ser inventora, mostra que podemos criar soluções simples com os objetos ao nosso redor. Klaus, como leitor ávido, destaca ainda mais a importância da leitura – afinal, tudo o que lemos pode ser convertido em algo útil. E Sunny, mesmo sendo um bebê, consegue entender o que os outros personagens dizem e se torna impressionante para a série, ou seja, toda e qualquer pessoa é importante e pode contribuir, independente de idade.

Outro que se torna extremamente marcante na narrativa é o narrador onisciente – e cheio de ironia – Lemony Snicket. Mesmo contando a história na terceira pessoa, em alguns momentos ele não resiste e intervém na trama dando conselhos, relatando tudo nos mínimos detalhes e muitas vezes mudando o foco para sua própria vida afim de guiar o leitor na primeira pessoa. Desta forma, o autor se transforma em um companheiro íntimo do público.

Com toda essa ironia, várias narrativas são parodiadas ao longo da série. A primeira delas é a do romance realista do século XIX, aquelas histórias sofridas de órfãos que passam horrores nas mãos de pessoas injustas – como os do autor inglês Charles Dickens, que escreveu David Copperfield e Oliver Twist. Outro exemplo são as declarações de amor nas dedicatórias de cada livro, todas parecem ser sérias, mas a última linha quebra toda a expectativa – Lemony parodia poemas de amor do século XIX, como os de Edgar Allan Poe. Aqueles poemas em que a mulher amada é maravilhosa, linda, inatingível, e frequentemente morre no final da história.

Além de todas as congratulações em questão de enriquecimento literário, ainda há a fascinante estética dos próprios livros. As capas e ilustrações carregam marcas do estilo vitoriano e possuem um toque gótico agradável, e totalmente conexo, a série. De forma alguma isso seria possível sem as ilustrações de Brett Helquist, que emprestam um sentido bem macabro e de mau agouro para cada capítulo, assim como um punhado de desenhos de página inteira em todos os livros. Se alguma vez houve uma série de livros infantis feito sob medida para uma adaptação de Tim Burton, certamente essa foi Desventuras em Série

A primeira página de todos os livros traz um rótulo desenhado e um espaço “ex-libris” para escrever seu nome, que faz alusão às gravuras coladas nas contracapas para indicar a posse da biblioteca, ou seja, é um incentivo para começar sua própria coleção e não esquecer de colocar a saga em suas prateleiras. Os rótulos presentes também são usados com a finalidade, mais uma vez, de chamar a atenção do leitor, já que possuem a figura dos Baudelaires no topo e, na posição contrária, o Conde Olaf com o disfarce que usará naquela edição.

Dentre todos os pontos positivos, a saga tem apenas um deslize – que também é inevitável – a perda de trocadilhos e referências nas traduções. Há diversas sacadas que podem passar despercebidas como “nunca deixar a cobra-lobo da Virgínia perto de uma máquina de escrever”, que faz alusão à escritora Virgínia Woolf (no livro original, Virgínia Woolf-snake). Também podemos incluir as aliterações nos nomes dos livros – The Bad Beginning, The Reptile Room, The Wild Window, que foram traduzidos respectivamente para Mau Começo, A Sala dos Répteis O Lago das Sanguessugas – e alguns anagramas, que geralmente são feitos com as letras de Count Olaf (Conde Olaf, em inglês), como Al Funcoot, que na versão original é o autor da peça de teatro em Mau Começo, e O. Lucafont, um dos capangas de Olaf disfarçado de médico no segundo livro.

Todos esses elementos dão vida a uma saga extremamente bem elaborada e capaz de envolver vários tipos de leitores, sejam crianças, adultos, críticos ou leigos.

Redação Bastidores

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