Que a cinegrafia de Robert Bresson flertava a todo momento com seu profundo catolicismo, nunca foi novidade para ninguém, mas é bem evidente que temos o ápice do cunhar da arte como instrumento de fé com seu difícil Diário de um Pároco de Aldeia. É relativamente curioso que justamente seu filme mais católico também seja um dos mais “quentes” de sua carreira, se afastando do estilo minimalista que seguiu em diversas outras obras.
Adaptando o romance de Georges Bernanos, Bresson traz a sofrida história do jovem padre da cidadezinha de Ambricourt. Lá, o padre ingênuo encontra muita resistência da população local extremamente amargurada e ressentida contra Deus por diversos motivos. Obstinado em tornar sua paróquia novamente repleta de fiéis e projetos, o padre sem nome faz o possível para conquistar a amizade das famílias mais ricas do lugar, mas enquanto fracassa sucessivamente, começa a sentir dores terríveis no estômago que revelam uma mazela gravíssima.
A Morte de Deus
Bresson praticamente exorciza seus próprios demônios e indignação contra a completa decadência da popularidade da fé cristã e do abandono das pessoas na crença em Deus. Trazendo um ambiente muito hostil e cercado de falsas modéstias, Bresson idealiza essa cidadezinha extrema na qual praticamente todos são antipáticos ao padre, nunca comparecendo às missas ou contribuindo para a manutenção da igreja local.
Como estamos sempre presos ao ponto de vista do padre – também com presença massiva de narração off, conhecemos a fundo o personagem inconsciente de seus próprios pecados como a alimentação bizarra que consome para não sentir dor. O padre vira complexo justamente por conta de uma contradição entre discurso e ação. Em suas confidências narradas enquanto escreve o diário, sempre há a dúvida incessante sobre seu papel em um lugar tão vil e de outros temores envolvendo sua fé a ponto de não conseguir rezar.
Porém, enquanto exprime sua depressão no diário, o padre incessantemente tenta reerguer a influência da paróquia. O curioso é que, apesar de fracassar na sua missão, o padre passa a transformar a vida de alguns cidadãos que assassinaram a fé por conta de diversos destemperos da vida. Basicamente, é isso o que acontece ao longo do filme inteiro, embora ele não seja repetitivo por conta dos diálogos realmente bem construídos e da direção mais próxima do teatro, no caso, de Bresson, alinhando a movimentação dos atores de modo sublime quase criando as famosas composições típicas do cinema de Bergman.
Embora tenhamos uma história realmente boa que tocas as feridas sobre a crença e a divindade, além de apresentar algumas belas filosofias, há um grande exagero por parte de Bresson ao usar a narração de modos extremamente banais a ponto de explicar o que acontece em tela. Por exemplo, em certa cena de decepção, o padre fica angustiado e se apoia na parede e, imediatamente, a narração aponta que ele ficou tão desapontado que teve de se apoiar na parede. É uma redundância irritante que permeia o filme inteiro.
Tipicamente, temos uma narrativa bastante lenta e opressiva. O sentimento pessimista de Bresson é calculado ao extremo ao apresentar novas desgraças sucessivas para a vida do padre que simplesmente parece amaldiçoada enquanto apresenta alguns momentos de contato sagrado repleto de milagre e beleza misteriosa – Bresson nunca mostra os milagres de frente, mas sim pelas reações do observador geralmente muito impressionantes devido a qualidade do elenco que consegue quebrar um pouco da monotonia emocional típicas dos filmes do autor.
Aliás, embora Diário de um Pároco de Aldeia seja muito pessimista, é curioso como Bresson trata a estética visual da obra com movimentos de câmera bastante delicados, closes e fusões inspiradas. É como se o diretor criasse uma espécie de anti-melodrama aliando a linguagem do gênero enquanto captura imagens desalentadoras repletas de miséria e feiura do campo totalmente decrépito, frio e morto.
Diário da Fé
Considerado o “primeiro” filme de Robert Bresson por conta do florescer das suas características autorais, Diário de um Pároco de Aldeia é um filme difícil por conta de sua lentidão e escolha narrativa com ênfase na narração um tanto redundante ao descrever a tela. Entretanto, é uma obra bonita que traz discussões filosóficas valiosas, além de mostrar a força de vontade de alguém movido pela fé mesmo diante de todos os desalentos da vida. No fim, ao ignorar toda sua desgraça e encontrar refúgio na fé, realmente vemos que tudo é graça.
Diário de um Pároco de Aldeia (Journal d’um curé de campagne, França – 1951)
Direção: Robert Bresson
Roteiro: Robert Bresson, Georges Bernanos
Elenco: Claude Laydu, Nicole Ladmiral, Jean Riveyre, Adrien Borel, Rachel Bérendt, Nicole Maurey, Jean Danet
Gênero: Drama
Duração: 115 minutos.