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Crítica | Entre Facas e Segredos – O mistério perfeito

O termo whodunit pode parecer estranho para os brasileiros, mas certamente todo mundo já leu, assistiu ou jogou algo assim. É uma forma de denominar histórias de detetive onde geralmente diversos personagens são suspeitos de cometer um crime (justificando o “Who Done it?”, quem foi?), e que se manifestou na literatura de forma famosa com obras de Agatha Christie e as aventuras de Sherlock Holmes, para citar alguns exemplos. E, claro, o jogo de tabuleiro Clue (Detetive, no Brasil) é o exemplo mais perfeito desse tipo de narrativa, que rendeu bons frutos no cinema.

Saído de sua investida divisiva em Star Wars: Os Últimos Jedi (“divisiva” para alguns, o filme é uma obra-prima), o cineasta Rian Johnson desce do pedestal de uma grande produção hollywoodiana e com efeitos visuais para se aproximar de algo menor em escala – provavelmente mais alinhado com seus primeiros trabalhos, especialmente A Ponta de um Crime -, com Entre Facas e Segredos, que é vendido essencialmente como um whodunit. Mas assim como o Episódio VIII da saga de George Lucas ou noir high school estrelado por Joseph Gordon Levitt, nada acontece como previsto em seu novo filme – garantindo uma das melhores experiências do ano.

A trama começa da única forma possível em uma obra do gênero: um assassinato misterioso. O autor Harlan Thrombey (Christopher Plummer) é encontrado morto no que parece ser um suicídio. Com as suspeitas de que ele possa ter sido assassinado, o detetive Benoit Blanc (Daniel Craig) é chamado para investigar todos os membros da família, que estava reunida para o aniversário de 85 anos do patriarca. 

Assassinato em uma Mansão no Ocidente

É uma premissa básica, e que até mesmo traz um dos personagens (Lakeith Stanfield) comentando sobre o fato da gigantesca mansão de Harlan parecer cenário do jogo Clue. O que torna Entre Facas e Segredos tão valioso é seu excepcional roteiro (também assinado por Johnson), que traz personagens absurdamente carismáticos e personalidades distintas, além de uma narrativa que subverte e brinca com a fórmula tradicional do gênero. Obviamente, não entraremos em spoilers aqui, mas é suficiente dizer que Johnson altera a ordem de alguns fatores no que diz respeito à “quando” o espectador aprende uma certa informação, e isso altera a atmosfera de todo o restante da história. 

Em meio ao mistério, Johnson ainda encontra espaço para as mais variadas discussões. Lançado inteligentemente no feriado americano do Dia de Ação de Graças, a trama enfatiza os diferentes embates entre membros familiares que a mais variadas discussões políticas são capazes de provocar na era contemporânea, e seu texto consegue discutir questões de imigração, cyberbulling (algo com o qual Johnson certamente sofreu após Os Últimos Jedi) e 

Novamente, algo difícil de comentar sem spoilers, mas apenas imagino todos os post-its e barbantes ligando eventos e anotações em seu escritório, já que a resolução da história é extremamente complexa – e gastei alguns minutos reavaliando tudo o que acabara de ver, com genuína satisfação. Até mesmo porque, naturalmente, esse esforço também se reflete na direção segura e inteligente de Johnson; a forma como repete diversos enquadramentos, mas altera pequenos detalhes dependendo de qual ponto de vista acompanhamos, ajuda a manter a sensação de narrador inconfiável durante boa parte da projeção.

Em quesitos técnicos, Entre Facas e Segredos é praticamente perfeito. Novamente se juntando à sua equipe habitual, Johnson conta com o diretor de fotografia Steve Yedlin para pintar quadros sempre nublados e com cores frias, mas com um dinamismo visual presente graças ao contraste (aprendam, irmãos Russo) e o grão de sua película. De forma similar, o montador Bob Ducsay é hábil ao intercalar as diferentes entrevistas de Blanc com os membros da família (além da estrutura discutida acima, de oferecer uma certa informação antes do esperado) assim como Nathan Johnson oferece uma trilha correta e capaz de ditar uma atmosfera de mistério.

Vale destacar também o brilhante trabalho do design de produção e figurino, que seguem o comentário do personagem de Stanfield ao comparar a residência com um jogo de tabuleiro. Cada um dos personagens é facilmente demarcado graças às suas escolhas de figurinos e as cores destes: a simplicidade das vestes de Marta (Ana de Armas), a elegância do terno de Blanc e o longo cachecol colorido de Ransom (Chris Evans) são perfeitos exemplos.

Os Suspeitos

Quando olhamos para o pôster de Entre Facas e Segredos, fica bem evidente que temos aqui um elenco capaz de rivalizar com os de O Irlandês e Era Uma Vez em Hollywood no que diz respeito a astros. Mesmo com tantos nomes de peso dividindo a cena, há espaço de sobra para que todos eles brilhem, mesmo os coadjuvantes com papéis reduzidos como Jaeden Martell, Katherine Langford e o sempre divertido Lakeith Stanfield – além de uma inesperada participação de Frank Oz, famoso por dar vida ao pequeno Yoda na saga Star Wars. Jamie Lee Curtis, Don Johnson, Michael Shannon e principalmente a divertidíssima Toni Collette estão todos ótimos, e confesso que a energia que Christopher Plummer demonstra em seus 89 anos me deixou de queixo caído.

Naturalmente, voltamos os olhos para o grande detetive vivido por Daniel Craig. Após anos como a versão mais sisuda e cínica do agente James Bond, vê-lo com uma postura brincalhona e marcada por um carregado sotaque sulista é uma grande surpresa. Claramente inspirado no Hercule Poirot de Christie, Blanc traz todas as características básicas de um “detetive brilhante”, e que traz no silêncio da observação uma de suas marcas mais fortes – assim como os constantes questionamentos sobre “não ser bom o bastante”.

O destaque acaba voltando mesmo para Ana de Armas. Coadjuvante de luxo em filmes como Blade Runner 2049 e Cães de Guerra, a atriz cubana domina a cena e assume a maior parte do tempo de tela, já que sua bondosa cuidadora Marta Cabrera é recrutada por Blanc para auxiliá-lo na investigação. É quando vemos a vasta dimensão dramática de Armas, e o fato de sua personagem ter uma condição que a força a vomitar quando mente resulta não apenas em um ótimo indício de seu caráter (vide a confiança de Blanc) mas também em uma forma de garantir um humor natural e condizente com sua personalidade.

Mas se falamos de humor, chegamos ao outro grande destaque: Chris Evans. O grande público certamente está acostumado a vê-lo na figura do bom moço graças a seu trabalho como o Capitão América nos filmes da Marvel, então terá uma surpresa ao vê-lo como o desbocado, mesquinho e sarcástico Ransom – neto de Harlan que parece antagonizar com todos os familiares, empregados e até cachorros da região. É um trabalho cheio de energia e carisma, e também de viradas inesperadas quando encontramos um lado surpreendentemente dócil e compreensivo em meio a sua rebeldia.

Mistério matador

Depois de se aventurar em diversos gêneros e produções de tamanhos variados, Entre Facas e Segredos comprova que Rian Johnson é um dos nomes mais interessantes do cinema americano. Seu roteiro detalhado brinca com suspense, comédia e até comentários relevantes de forma satisfatória e divertida, entregando uma das experiências mais deliciosas do ano.

Entre Facas e Segredos (Knives Out, EUA – 2019)

Direção: Rian Johnson
Roteiro: Rian Johnson
Elenco: Daniel Craig, Ana De Armas, Chris Evans, Toni Collette, Jamie Lee Curtis, Don Johnson, Michael Shannon, Lakeith Stanfield, Katherine Langford, Jaeden Martell, Christopher Plummer, Frank Oz
Gênero: Suspense
Duração: 130 min

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Publicado por Lucas Nascimento

Estudante de audiovisual e apaixonado por cinema, usa este como grande professor e sonha em tornar seus sonhos realidade ou pelo menos se divertir na longa estrada da vida. De blockbusters a filmes de arte, aprecia o estilo e o trabalho de cineastas, atores e roteiristas, dos quais Stanley Kubrick e Alfred Hitchcock servem como maiores inspirações. Testemunhem, e nos encontramos em Valhalla.

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