A figura do vampiro povoou grande parte do século vinte – se estendendo, agora, para o XXI – tanto na literatura quanto no cinema. O clássico de Bram Stoker abriu portas para dezenas de adaptações e ficções nele inspiradas, popularizando o famoso Conde Drácula e suas muitas faces ao longo dos anos. Por muito tempo, o livro de Stoker se manteve como a fórmula para o vampiro e assim permaneceu inabalado até, por volta, dos anos 1970. Já nesta época, a imagem vampiresca passou a ser diretamente ligada ao gótico moderno e, através da literatura de Anne Rice, em seu romance de estreia, escrito em 1976, foi largado para trás o velho retrato das enormes capas e o próprio tom de terror. Em Entrevista com o Vampiro, essa criatura da noite passou a significar uma mistura homogênea de sensualidade e mistério, se tornando ainda mais atrativa do que já era.
Quase vinte anos depois, então já quatro livros das Crônicas Vampirescas escritos, a famosa obra de Rice ganhou sua adaptação para a tela grande. Com um roteiro escrito pela própria autora dos livros, foi demonstrado uma grande coragem por parte de Anne em alterar sua própria produção. Apesar de nos contar uma história que, em sua essência, é igual ao livro, o filme Entrevista com o Vampiro possui suas notáveis diferenças em relação ao material original. O resultado, porém, está longe de ser negativo, se classificando não só como uma ótima adaptação, como um dos mais memoráveis filmes sobre vampiros.
A narrativa tem início em São Francisco, já em 1994. Um jovem jornalista (Christian Slater) decide entrevistar uma figura que considera “interessante”. Não demora, porém, e ele descobre que se trata de um vampiro. A revelação vem como uma surpresa ausente de credibilidade e o jovem recebe as palavras de Louis (Brad Pitt) com um notável desdém. Cedo, porém, percebe que se trata da verdade. Neil Jordan insere, já em tais cenas introdutórias, o nítido tom de mistério que permanece inabalado pelo restante de seu filme. Através de sua direção precisa, que sabe trabalhar o olhar de cada ator, os protagonistas ganham uma evidente poética, que define a construção de suas personalidades, em especial, Louis.
A história de fato, então, tem início e o vampiro começa a dar seu depoimento, começando do dia que se tornou essa criatura da noite. A transição do presente para esse longínquo passado é marcada com maestria pela trilha – indicada para o Oscar – de Elliot Goldenthal. Somos imediatamente transportados para uma Nova Orleans do final do século XVIII. Através de melodias totalmente atmosféricas, mergulhamos nesse relato que, desde o princípio, não conta com a menor dificuldade em nos deixar completamente imersos. A narração em off de Louis permanece com força neste início e aos poucos vai se tornando mais esparsa, somente aparecendo em momentos emblemáticos – seja para trabalhar em cima de elipses, seja para dar um toque maior ao drama apresentado em tela.
O tom melancólico presente nos minutos iniciais, com o passar da projeção, dá lugar a um desconforto, em geral provocado por Lestat (Tom Cruise), sem dúvidas o personagem mais marcante da obra, que ora nos tira risadas vindas de seu humor negro, ora nos deixa marcadamente espantados pela sua aparente falta de humanidade. O roteiro de Rice, aqui mostra suas verdadeiras cores, colocando em perfeita oposição a figura desses dois personagens, Louis e Lestat – um luta para guardar seu lado humano e o outro para transformá-lo em um vampiro pleno. A química entre os dois é palpável, criando a nítida sensualidade tanto entre ambos, quanto em relação à suas vítimas. É interessante notar que, em nenhum ponto, temos o sexo colocado no palco, o filme trabalha em cima de algo mais íntimo, quase hormonal, como o constante êxtase nos segundos que precedem o primeiro beijo.
Esse ódio, paixão que se demonstra em tela, então ganha um caráter definitivamente perturbador com a presença da personagem Claudia (Kirsten Dunst). A menina, ainda na sua infância, é tratada à priori como filha, mas logo vai ganhando um caráter mais complexo, se tornando amiga e amante de Louis. Kirsten Dunst, ainda com seus onze anos de idade, impressiona e dá uma incrível profundidade à personagem. Sua expressão, quando primeiro aparece, se torna uma memória distante e ganha um evidente envelhecimento conforme progredimos na narrativa. “Sua idade é marcada pelo olhar” somos ditos pela narração de Louis e, de fato, isso ocorre, tornando ainda mais sólida a angústia da vampira em nunca envelhecer – afinal, chegamos ao ponto de realmente acreditarmos que ali está uma mulher – passado dos trinta – no corpo de criança.
A relação entre ela, Lestat e Louis é trabalhada organicamente pelo roteiro e nos é passada a sensação definitiva de já estarem juntos por anos e anos. A transição entre cada era se torna nítida pelo memorável trabalho da arte, que marca cada ano através de uma precisa escolha de figurino, além de construir cenários dinâmicos, vivos, que perfeitamente retratam a época retratada. Os vampiros, em sua aparência física, de fato, nunca mudam, mas suas roupas funcionam como a prova da passagem dos anos. Além disso, a arte utiliza essas mudanças das vestimentas para conduzir elipses mais discretas. Em diversos pontos percebemos um avanço em dias ou horas somente pela diferença do que os personagens vestem, requisitando uma atenção redobrada do espectador.
De forma ousada, o longa-metragem consegue se dividir visivelmente em três atos bastantes distintos – Nova Orleans, Paris e Nova Orleans novamente – em dados momentos essa fragmentação narrativa acaba provocando certo cansaço e nitidamente o terceiro ato assume um ritmo mais apressado que os outros, como se não tivesse sobrado tempo o suficiente para terminar o filme. Por essa razão, a obra permanece aquém do material original, que, embora seja substancialmente diferente, consegue estabelecer um ritmo mais fluido. De toda forma, não se trata de um problema estrutural gravíssimo, mas que, sim, chega a incomodar.
Dito isso, Entrevista com o Vampiro nos marcou em sua estreia e continua com toda sua potência mesmo vinte anos após sua primeira exibição. Certamente faz jus ao seu material de origem, se classificando como um dos melhores filmes de vampiros, que ajudou a sedimentar no imaginário popular as Crônicas Vampirescas de Anne Rice. Mesmo com alguns problemas estruturais, não deixa de ser uma inesquecível obra de mistério e sensualidade, trazendo para o cinema essa figura humanizada da criatura da noite.
Entrevista com o Vampiro (Interview with the Vampire – EUA, 1994)
Direção: Neil Jordan
Roteiro: Anne Rice
Elenco: Brad Pitt, Tom Cruise, Kirsten Dunst, Antonio Banderas, Christian Slater, Thandie Newton, Stephen Rea
Gênero: Drama
Duração: 123 min.