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Crítica | Estação do Diabo – Um lamento épico

Falar do cinema de Lav Diaz é falar de uma obra sobre as Filipinas, sua história e as violências da Corte Marcial do ditador Ferdinando Marcos, e do atual presidente do país, Rodrigo Duterte, que parece cada vez mais assimilar atitudes do governante antigo. Como um compositor que flerta com um mesmo tema, o diretor busca apresentar sempre uma “variação”, ou “estudo” sobre o assunto, seja em narrativas mais naturalistas, documentais a sua forma, seja pela narrativa de histórias frouxamente inspiradas na literatura (caso da adaptação de Dostoiévski em Norte, o Fim da História e de Tolstói, seu filme anterior, A Mulher que se foi). Estação do Diabo, em particular, parece habitar um espaço de interseção entre essas “duas” esferas, um tanto reducionistas. Ainda que não tenha inspiração em uma obra literária específica, o tema da “inspiração” e da forma épica é central no filme.

Ao que foi chamado de “ópera rock” pelo próprio diretor, seria mais preciso, se quisermos ignorar suas idiossincrasias, chamar o filme talvez de “lamento épico”. As quatro horas de duração de Estação do Diabo são recheadas de composições, escritas pelo próprio Diaz, e entoadas a cappella pelos próprios atores em cena. Por um lado, em matéria de gênero, pode remeter a um musical, mas por sua sobriedade e tristeza, não deixa de lembrar uma antiga narrativa oral às avessas, como um relato elegíaco da miséria.

Para isso, como cineasta de esquerda, Diaz recorre, em primeiro lugar, a uma Musa/voz que lhe permita falar no lugar de alguém, que o ajude a tratar do mal que assola sua nação. Em off, uma voz feminina evoca uma epígrafe sobre o decreto da lei marcial de Duterte em uma ilha no sul das Filipinas, que contextualiza a ligação entre o presente e o contexto da narrativa.

Autoridades infernais

Estação do Diabo, filme dedicado às vítimas da lei marcial de Marcos, acompanha a história do poeta Hugo (Piolo Pascual), e de sua esposa, a médica Lorena (Shaina Magdayao), que acaba de deixá-lo para abrir uma clínica popular em uma vila afastada, durante a ditadura de Marcos. Com o decreto da lei marcial, um grupo militar está patrulhando o vilarejo e planejando como pode impor o medo no lugar e, assim, ter total controle da vida da população. Os soldados vão arquitetar a lenda de um monstro assassino, matando e expondo corpos de inocentes.

E não só no enredo o corpo militar terá um papel autoritário: é ele o primeiro grupo a aparecer e cantar os primeiros diálogos. Em outras palavras, literalmente, são eles que regem a música e ditam a dinâmica de todo o longa, ou ainda, o ritmo que as outras personagens terão de dançar.

No início do filme, após a introdução dos soldados, acompanhamos o poeta antes da partida de sua esposa, em uma longa cena em que ele declama “um poema que achou no lixo”. Depois desse momento porém, essa espécie de baile inelutável, toma conta da mise-en-scène do filme. Se compararmos o título do longa com o da obra máxima de Rimbaud, o tal Diabo parece ficar mais claro: não trata-se apenas de uma temporada (saison) no Inferno, mas “a temporada/estação/estada” do próprio Diabo, isto é, do governante personificado que mata poetas e senta a Beleza a seu colo para violentá-la.

Tal como filmes anteriores de Diaz, Estação do Diabo é filmado em preto e branco, em uma série de longas sequências com pouco movimento de câmera. Se formos retomar a ideia da “ópera”, essa opção estética conversa bem com o gênero, fazendo da cena um palco, seja na natureza, seja em ambientes fechados, de poucos elementos e com uma coreografia muito precisa – alternando entre o naturalismo e o rigor cênico.

A montagem, porém, parece ser aqui seu grande trunfo. A história narrada se passa durante dois momentos que distam três anos uma da outra, e apesar de isso ficar claro desde o começo, as fronteiras entre esses dois momentos vão se revelando mais interessantes de um ponto de vista da análise social e dramática. A partir desse embaralhamento (por momentos não sabemos localizar um acontecimento no tempo cronológico), Diaz incentiva um olhar, para usar o título de um de seus filmes, “do que vem antes”, suas passagens e trajetórias. Afinal, a proposta de Lav Diaz é fazer um registro memorial de tempos obscuros e de uma certa resiliência do próprios filipinos – e daí a conversa com suas experimentações com o tempo em seus filmes longuíssimos.

Estação do Diabo se diferencia por trazer representações simbólicas para o primeiro plano, desde todo o conceito da cantoria, passando pelas entidades que cada personagem representa (o Poeta, a Coruja, o Sábio, a Musa que acompanha o poeta, os soldados, as misteriosas figuras mascaradas, até uma cena em que aparece o próprio Diabo em um corpo feminino) até a conversa dos cenários com a história (o ambiente urbano contra a natureza).

Mais do que os outros filmes de Diaz, este se destaca por se aproximar vagamente do épico como forma literária, remontando aos clássicos gregos da mesma forma que abordaria Dostoiévski ou Tolstói, mas sem deixar sua pretensão quase syberberguiana de superar cinematograficamente a “besta imunda” da ditadura filipina. Aqui, é o próprio poeta Hugo, herói a sua medida, que vem atrás de sua esposa e se depara com o horror inelutável, sobretudo frente ao personagem do presidente Narciso, incapaz de falar senão por grunhidos violentos – uma espécie de Janus, símbolo dos começos e fins, com uma grotesca face de Ferdinando Marcos em sua nuca.

Nessa incursão simbólica, Diaz experimenta uma nova “forma de combate”, uma fábula demoníaca, por assim dizer, ainda que isso, faça o longa perder um pouco de força em relação a filmes anteriores. Ainda assim, a narrativa conversa bem com a duração do filme, tornando-o menos exaustivo que a média. Nesses caminhos, Estação do Diabo firma-se como mais um episódio coerente do diálogo entre o artista e o(s) déspota(s) que é a obra de Lav Diaz.

*O filme foi apresentado no 18º Festival Indie.

Estação do Diabo (Ang panahon ng halimaw, Filipinas – 2018)

Direção: Lav Diaz
Roteiro: Lav Diaz
Elenco: Piolo Pascual, Shaina Magdayao, Bituin Escalante, Pinky Amador, Bart Guingona, Hazel Orencio, Joel Saracho e Angel Aquino
Gênero: Drama, Musical
Duração: 234 min

Redação Bastidores

Publicado por Redação Bastidores

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