Com Spoilers
Quando David Lynch iniciou sua carreira como diretor, em meados de 1966 com pequenos curta-metragens, ele já demonstrava uma grande parcela de sua personalidade artística. E durante anos, continuou fazendo obras que comprovavam que ele se tratava de um sujeito bem criativo e constantemente experimental, além de atestarem o exímio diretor e roteirista que era (e é)! Ele já o tinha demonstrado em pequenas e brilhantes doses em Twin Peaks e no seu filme Twin Peaks – Os Últimos Dias de Laura Palmer, mas foi com Estrada Perdida que ele deu início a todo o seu estilo de fazer e criar Cinema que ele é reconhecido hoje.
Basta olharem para trama, que começa com o personagem Fred Madison, de Bill Pullman, um sujeito preso a casamento frustrado com Renee, de Patricia Arquette. E logo quando ele se vê envolvido em bizarros acontecimentos, como o aparecimento de fitas misteriosas, visões macabras e a presença de um tenebroso homem o obsediando (Robert Blake), o vemos trocar subitamente de personalidade com o jovem Pete, de Balthazar Getty, um rebelde sexualmente requerido e que está envolvido numa trama que consiste em ajudar a sua amante Alice (também interpretada por Patricia Arquette) a se livrar das mãos asquerosas e opressoras de mafiosos, como um verdadeiro herói de um filme Noir!
Encontrou algum sentido e nexo no que acabou de ler aqui? Pois é. Tudo e talvez nada pode fazer sentido, mas talvez aí é onde se encontra todo o brilhantismo deste grande filme de Lynch!
O Surrealismo moderno
A definição de surrealismo pode ser uma constante variável, ainda mais no que se refere ao Cinema. Basta voltarmos aos tempos de Luis Buñuel, Alejandro Jorodowsky ou o próprio Fellini em suas buscas incessantes por artifícios narrativos desconcertantes, simbologia freudiana, exploração de desejos reprimidos e uma ironia subversiva, para confundir e provocar os seus espectadores. E Lynch nada mais faz do que buscar e conseguir fazer exatamente isso aqui.
É voltar para a definição mais simples de surrealismo que talvez seja algo como a pura expressão do pensamento de uma maneira espontânea e automática, regrada apenas pelos impulsos do subconsciente, desprezando a lógica, renegando os padrões estabelecidos de ordem moral e social, ou no caso do cinema, convencional; e buscando ultrapassar os limites da imaginação criados pelo pensamento mundano.
Isto é o que Lynch faz neste filme: cria uma narrativa de símbolos, contemplação visual e sinfonias melódicas de sua trilha sonora. É o mais puro cinema sendo contado de forma puramente artística: visualmente. Estrada Perdida, assim como os filmes de Lynch que o sucederam, podem se encaixar perfeitamente como raros e perfeitos exemplos de um cinema visual sendo feito em pleno cinema moderno do século 21, onde os diálogos servem quase apenas de bônus ao miolo que se costura no centro do filme, que tanto pode cair na definição de sem sentido, pretensioso, inflado ou inchado e sem nada a dizer, ou o absolutamente inverso de tudo isso.
É a desconstrução de qualquer expectativa de lógica ou coesão que alguém possa querer ou buscar em algum filme. É iniciar seu longa como um drama claustrofóbico, com esse personagem em crise existencial: sem tesão; paixão, e com sua música soando vazia e sufocada, assim como a vida. Fred aqui pode quase simbolizar o alter ego de artista de David Lynch, enquanto Pete é o que ele sonha ou imagina ser quando sua vida, injusta, quebrada e insana não tem mais nada a oferecer senão loucura e desgosto, simbolizada figurativamente pelo corredor da morte. E, quando as chances de esperança se deterioram, um raio divino sombrio – a versão do tornado para Oz de Lynch nesse filme – o transporta para o corpo de Pete e para uma vida jovem, rebelde, livre, com a mulher perfeita ao lado. Mas seria isso algo divino ou um castigo do universo?
A Femme Fatale
Fica mais ou menos implícito que Fred e Pete são a mesma pessoa, só que em vidas diferentes. Mas não sei se isso se trata de um caso de uma troca de identidades como a que acontece em Persona, de Ingmar Bergman (este outro tipo de surrealista). A escolha de Lynch é mais parecida com uma mudança de protagonismo, no estilo de Psicose de Hitchcock. E é aí que encontramos o fio da meada do mistério sombrio criado pelo diretor. Um pode ser imaginação do outro, ou vice versa. Ou Pete ser exatamente tudo que Fred gostaria de ser. Mas por que iria ele, um músico, querer se tornar um um simples mecânico, servo de um mafioso insano, Mr. Eddy, de Robert Loggia? Seria tudo pelo amor de uma mulher?
Em ambas as personagens de Patricia Arquette também notamos a mudança de identidade, só que diferentemente de Fred e Pete, Renne e Alice são interpretadas pela mesma atriz e compartilham o amor dos dois outros homens. Fred não sabe mais satisfazer a mulher, a ponto de ela lhe dar uma batidinha nas costas durante o sexo por pena, e ele ter vislumbres de que ela o trai. Já Pete se vê apaixonado por Alice enquanto esta o seduz para lhe ajudar a se livrar de sinistros reis do crime. Assim, ele se torna o perfeito herói de um filme Noir, pois está envolvido numa trama cheia de mistérios e calúnias e tem um relacionamento com femme fatale: a mulher perfeita, duas caras, que o seduz dizendo que o ama, mas que nunca será dele.
Então…de certa forma, Estrada Perdida pode ser uma espécie de um Noir moderno com toques surrealistas. Os constantes carros clássicos e os policias seguindo Fred/Pete, a representação de Alice e seus expressivos cabelos loiros e a forma como que Fred/Pete se vêem perseguido engolido pelo mundo a sua volta onde ninguém é confiável são os elementos que tão aí para comprovar essa definição. E, assim como no Noir, a jornada de seu protagonista está destinada à tragédia, onde o puro mal parece o punir e torturar nessa sua ilusão sem volta ou escapatória, simbolizada no misterioso e tenebroso homem de Robert Blake.
Mas aí está uma coisa instigante de seu personagem. Ao longo do filme ,ele diz para Fred/Pete que ele o deixou entrar na sua vida. Ele, um espectro maligno que não invadiu sua vida e sim foi chamado de forma indireta quando Fred quis tanto desesperadamente mudar de vida e criar essa sua ilusão de uma vida melhor, ou como ele mesmo diz: “gosto de lembrar das coisas da minha própria forma!”. Ele o fez, assim como Pete, para comprovar sua masculinidade e amor por sua amada? Ou foi simples e puramente egoísta como os trogloditas monstruosos, sádicos e nojentos como todos os homens representados no filme? E o que Renne ou Alice fizeram foi apenas buscar sobreviver a esse mundo sujo usando da fraqueza carnal dos homens. É como se ele quisesse desafiar sua existência e realidade e essa força do mal o castigasse psicologicamente por tentar mudar seu destino!
Um Cinema Exuberante
Mas isso tudo não passa de meras divagações de um jovem crítico. Lynch, sempre se desviando de buscar explicar seus filmes (se é que ele mesmo os entende), diz para o público ter suas próprias interpretações. Pelo menos, a certeza é a de que temos um filme absolutamente exuberante a sua volta.
Lynch filma e constrói cada recanto de sua trama com uma coesão infalível, sua câmera parece dançar por cada canto claustrofóbico e ruas sombrias, e a fotografia estonteante de Peter Deming só tem o que adicionar através de sua excelente composição visual. Ah, e o que pode ser dito de um uso nada menos que SOBERBO de sua trilha sonora. Sozinha, a trilha serviria para contar a história. Não é qualquer filme que consegue se iniciar ao som divino de “I’m Deranged” de David Bowie, e ir para “I Put a Spell on You”, de Marilyn Manson, e sendo acompanhada pela trilha sinfônica melódica de Angelo Badalamenti. Cada uma constrói o estado emocional e psicológico de seus personagens de forma perfeita.
E isso se deve claro a seus atores. Arquette constrói ambas as personalidades de formas diferentes e únicas, cheias de mistérios e camadas refletidas apenas no olhar. Robert Blake e Robert Loggia são as representações do mal: um é o sobrenatural macabro invasor e o outro, a visão pérfida e asquerosa do opressor, que, por certos momentos, lembra um pouco a icônica performance de Denis Hooper em Veludo Azul. E, claro, os ótimos Getty e Pullman, com destaque para o último, que convence com tanta dor e ferocidade em suas emoções e se tornando a vítima das forças sobrenaturais dos outros personagens por cima dele. O forçando no final escapar numa estrada sem fim com a morte lhe penetrando na alma.
A perfeita representação da estrada da vida que não tem fim. O amor é nulo e a morte inacabada. Aqui, no mundo dos sonhos, nada tem sentido mas ao mesmo tempo nós também não o fazemos em nossos atos e criações bizarras que fazemos. No final, apenas segue a estrada, o quão mais louca que seja, até o inexistente fim.
Estrada Perdida (Lost Highway, EUA – 1997)
Direção: David Lynch
Roteiro: David Lynch, Barry Gifford
Elenco: Bill Pullman, Patricia Arquette, Balthazar Getty, Robert Blake, Robert Loggia, Gary Busey
Gênero: Drama; Mistério; Noir
Duração: 134 minutos