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Crítica | Fargo – 1ª Temporada

obs: em respeito àqueles que ainda não viram à Fargo, o texto está livre de spoilers.

Dizem que a revolução já foi televisionada. Brett Martin escreveu seu livro Homens Difíceis justamente para provar que houve uma explosão criativa na televisão com o surgimento de séries fenomenais como The Wire, The Shield, Breaking Bad, Mad Men, OZ, Game Of Thrones, Família Soprano, entre outros. Apesar do espaço amostral de seu estudo ir de 1997 até 2014, foi justamente em 2014 que tivemos algo que pode ser considerado um belo revival, uma segunda revolução. A quarta temporada de Game Of Thrones até hoje se destaca das demais. No mesmo ano, tivemos a ascensão aos céus de Nic Pizzolato com a intrigante e maravilhosamente técnica primeira temporada de True Detective.

Porém, a madrepérola desse ano tão peculiar para o audiovisual – tanto cinematográfico quanto televisivo, é, sem a menor dúvida, o seriado homônimo inspirado em Fargo, dramédia policial realizada pelos irmãos Coen em 1996. Com coragem, Noah Hawley estudou muito bem toda a filmografia e estilo dos Coen para ser capaz de criar um seriado que consegue superar, facilmente, o trabalho dos criadores da obra original.

Não somente pela dificuldade em mimetizar o estilo tão peculiar e sinergético de dois irmãos na escrita, mas também em conduzir inteiramente o seriado. É como se Hawley fosse o irmão perdido que os pais dos Coen colocaram na adoção, pois toda a obra pulsa como se houvesse a presença ativa da dupla de roteiristas/cineastas – no caso, eles participam como produtores executivos.

Aqui, a história se passa na pequenina cidade de Bemidji no interior de Minnesota. Obviamente, o clima gélido predomina e domina as vidas pacatas dos cidadãos comuns. Sem grandes sonhos, sem grandes responsabilidades, lá vive Lester Nygaard, nosso herói average man. Medroso, covarde, de grande instinto de auto-preservação, Lester sustenta sua casa e esposa trabalhando como corretor de seguros. Certo dia, um antigo colega bullie do ensino médio reecontra Lester na saída do trabalho. Evitando conflitos, sem sucesso, Lester acaba com o nariz quebrado.

No hospital, encontra um cidadão peculiar, com um quê de mistério. Alguém exótico, um alienígena daquele ambiente avassaladoramente pacato de Bemidji. Mal sabe ele que socializar com o forasteiro será uma das melhores e piores decisões que cometerá em sua vida. Contando de seu causo, o cidadão fala seu nome: “Lorne Malvo”, e diz que gostaria de matar o antigo rival de Lester. Estupefato, o pacato homenzinho nem nega e nem aprova o pedido.

Ao incutir a ideia da violência extrema na cabeça de Lester, Malvo acaba mudando a vida dele para sempre. Cansado de ser tratado como lixo por todos, incluindo sua esposa, Lester comete um terrível assassinato. Sem poder contar com ninguém, ele terá de encontrar uma maneira de não acabar preso pela preguiçosa força policial local. O problema é que seu caso de violência passa a ter conexão com os crimes do psicopata Malvo e um casal de policiais está convencido que Lester tem culpa não somente de um crime, mas de vários.

A maestria do episódio piloto já deixa claro que a obra que assistiremos no restante dos nove episódios será algo absolutamente fora do normal, fugindo das convenções habituais da narrativa clássica. Claro, não foi Hawley e nem os Coen que inventaram a jornada do anti-herói já experimentada em diversos formatos – aponto aqui que uma das características da revolução televisiva vem justamente dessa escolha artística peculiar de acompanharmos personagens desprezíveis extremamente humanos onde, sim, nos acomete a mais profunda das identificações – aqui em Fargo, nós temos o melhor trabalho de escrita para televisão em tempos.

A razão é bem simples: a excelência da construção dos dois personagens protagonistas: Lester e Malvo. Um sendo o completo oposto do outro, mas que possuem profunda empatia por mistérios da vida. Ambos são criações perfeitas vindas de outros filmes dos Coen já há muito consagrados como Um Homem Sério, Ave, César! e Onde os Fracos não Têm Vez.

O drama incomum do homem comum é a frase que define a obra dos Coen desde seu primeiro e já ótimo filme Gosto de Sangue. Pois é exatamente isto que temos aqui, misturas de características embrionárias com outras marcas autorais que os irmãos adquiriram ao longa da carreira. Lester é o nosso homem comum que vê sua vida na corda bamba mais isenta de moral do mundo: dependendo do lado que ele cair, ganhará glória ou será preso, condenado à morte. Já Malvo é o típico assassino de aluguel tão presente na filmografia Coen. Aqui, mais próximo de Anton Chigurh, mas ganhando toques de empatia e carisma muito mais profundos do que os conferidos na apatia da atuação de Javier Bardem.

Com Lester nossa identificação vem por conta da similaridade dos fatos que ocorrem em sua vida e na possibilidade de arruinarmos as nossas, não fosse o forte compasso ético e moral que carregamos diariamente. Para engrenar a dramédia, Lester atinge seu ponto de ruptura ao assassinar alguém tão próximo de sua vida. Mas como a estrutura narrativa do piloto é justamente exibir o quão sacal e cruel é a vida deste homem, conferimos uma carta-branca para seus atos hediondos. Nós torcemos por ele até o fim onde já se encontra transformado, uma cópia imperfeita de Malvo.

Malvo nos encanta da mesma forma que encanta Lester, projeção máxima do espectador na obra. Noah Hawley escreve Malvo com maestria impecável. Nele, não é preciso traçar alguma jornada, já que o personagem é imutável: egoísta, inteligentíssimo, culto e engenhoso. Porém o destino o laça com Lester onde, posteriormente, é revelado que esse jogo mental entre o psicopata e suas vítimas se trata de um fetiche dele, revelando seu vício humano, além da violência. O curioso é notar como Lester, apesar de ser o retrato da mediocridade, é o ponto fora da curva da vida do assassino. O breve contato entre eles no hospital, acaba traçando toda a tragédia para as duas partes. Pequenas ações que geram reações no fio temporal de toda a narrativa.

Então, nisso, entra novamente a característica definidora de Onde os Fracos não têm Vez, mas ocasionando a fraqueza agora no psicopata que cede ao seu vício. A audácia de Hawley é tanta que aborda uma narrativa de múltiplos pontos de vista praticamente isenta de furos – algo dificílimo. O primeiro episódio marca a reunião e a separação de Lester com Malvo – os dois só se reencontram ao fim do episódio oito. Portanto, para o sicário, o contato com Lester era apenas mais um dia comum em sua rotina enquanto causa essa mudança abrupta na vida do homenzinho.

Mais adiante, no meio do seriado, em dos muitos monólogos encantadores que Hawley constrói para Malvo, traça uma parábola sobre a origem do povo romano – um povo criado por lobos, e sua perseguição a Jesus Cristo. Ali, o roteirista define a notória divisória que separa todos os personagens desta história: ou são humanos, ou são lobos, predadores, movidos pelo instinto da sobrevivência.

Algumas obras de arte cobram muito do conhecimento exterior do espectador para compreende-la em sua totalidade. Em Fargo, isso não acontece. Quando Hawley não dá as dicas visualmente, o próprio texto revela o sentido poético que ele administra na obra. O showrunner faz questão de fazer o público entender as mensagens. Mas nada é entregue de bandeja para nós. Muitas coisas citadas precisam sim da nossa análise para encaixarmos as peças entre significados e significantes. Com isso, Fargo emana vida e clama pela participação ativa do espectador.

Enquanto Lester tenta de maneiras inteligentes e engenhosas despistar o núcleo policial – gradualmente, se transformando em lobo –, Malvo consegue outros serviços, uma subtrama de homenagem ao filme original e também a Queime Depois de Ler. O que poderia ser apenas um filler ordinário, dá origem a um dos muitos momentos poderosíssimos: as simbologias religiosas presentes na negociação da chantagem contra Stavros Milos.

Mantendo o espectro sempre muito simples de narrativa, Hawley se vale de alguns “clichês” como a utilização das fraquezas psicológicas de Stavros. No episódio seis há certo clímax de muitos dos arcos brilhantemente construídos até então, mas nada supera o excelente trabalho culminado com a chuva dos peixes. Para não estragar a curiosidade de quem procurará pelo seriado, me limito a dizer que Stavros vê seu reino de supermercados ser atingido pelas mesmas pragas que assolaram o Egito antigo conforme descrito no livro Êxodo, da Bíblia.

A ironia da chuva dos peixes se dá em cima de todas as circunstâncias da origem da riqueza de Stavros, um dos melhores personagens da série, e da resolução final do “milagre”. Enquanto a simbologia cristã do peixe representa fecundidade, multiplicação e até mesmo um acróstico (em grego) de Jesus Cristo. Um símbolo sagrado, portanto. Mas para Stavros, o sagrado o pune, conferindo toda a ironia que cerca esse núcleo. Um jogo de opostos maravilhoso e muito inteligente, além de simples.

Aliás essa característica da narrativa ser ao mesmo tempo simples e complexa define o restante dos núcleos. Apesar de menos charmosos, o arco policial e de outros sicários, também conseguem surpreender. Como se tratam de personagens menos exóticos e menos malfadados quanto Malvo e Lester, a empatia é menor, mas em termos de narrativa, Hawley convence ao esmiuçar tão bem esse fantástico jogo de gato e rato entre diversas partes que se perseguem quase que simultaneamente.

Importante dizer que a vasta maioria deles possuem características verdadeiramente únicas e imutáveis. Na verdade, a epítome das relações em Fargo são descritas de certa forma no pôster motivacional de Lester – “E se você estiver certo e todos errados?” Veja, o único personagem que passa verdadeiramente por uma transformação genuína é Lester. Outros já chegaram no ápice do desenvolvimento assim que são apresentados como Malvo e os sicários. Já os “humanos” permanecem os mesmos, entre seus atos de heroísmo e covardia. A policial Molly permanece perseguindo Lester, ela continua obstinada em seu objetivo concreto. Gus, mesmo tendo seus breves momentos de glória, mantém a essência medíocre. Resumindo, Fargo se trata do triunfo dos medíocres e do homem comum.

Não somente o texto se assemelha tanto com as obras dos Coen. Os diretores do seriado possuem tamanha sinergia que todos os episódios dão a impressão de serem dirigidos pela mesma pessoa. Um time de cinco diretores trabalhou para entregar o resultado mais cinematograficamente próximo da técnica dos Coen. Se for familiarizado sabe que a linguagem visual dos irmãos é sempre simples, apesar de esteticamente estonteante com a colaboração da fotografia de Roger Deakins.

As aberturas, muitas vezes, são os ápices de enquadramentos mais diversificados e criativos, já que assim que um personagem entra em cena, dificilmente há solilóquios. Em meio a tantos diálogos, temos os enquadramentos clássicos dos Coen: planos e contraplanos exclusivos para cada personagem em planos próximos captados por objetivas grandes angulares. Engraçado notar é que mesmo assim a linguagem visual é bastante diversificada em vários trechos. Não se engane, Fargo é um seriado belíssimo de se ver.

Aliás, a paleta de cores frias com inúmeros tons monocromáticos de azul e cinza é outro atrativo. Também sempre dialogando com o espírito gélido de seus personagens: seja em suas deficiências sociais, de suas índoles deprimidas ou do perigo que representam para os outros.

Não são raros os momentos de brilhantismo cinematográfico na direção de Fargo. Um enquadramento bem pensado ali, o uso da poderosíssima trilha musical acolá, o casamento de ritmos de montagem com efeitos sonoros e até mesmo de muitos raccords visuais elegantes através de movimentação de câmera e fusões inspiradas. Se aprende muito assistindo essa maravilha de técnica. Dentro todos, o episódio seis e o nove se destacam por simbologias visuais grandiosas.

No seis, durante uma incursão da SWAT, temos uma sequência digna de Christopher Nolan, além da já citada chuva dos peixes. No episódio nove, quando finalmente Lester confronta Malvo para mostrar a sua transformação psicológica de presa para predador, temos mais um ápice chocante. Após o massacre, Lester foge. Para fechar a sequência, o diretor enquadra o esguio Malvo – encarnado assustadoramente por Billy Bob Thornton, entre duas manchas de respingos de sangue nas paredes assim transformando o carismático psicopata em um anjo da morte. É algo sutil, elegante, é simplesmente Fargo.

Em outro momento tão inspirado quanto, um plano sequência bem orquestrado consegue resolver todos os problemas causados por uma questão orçamentária.

Enfim, se você acha a quarta temporada de Game of Thrones muito angustiante, é por que não viu nada do que foi realizado nessa experimentação de Fargo.

A primeira temporada de Fargo é uma das melhores obras audiovisuais que você verá na vida – não importa a sua idade. A violência brutal, o desconforto da comédia de erros, a engenhosidade perfeita e criativa do roteiro de Noah Hawley, as atuações exemplares de todo o elenco – com destaque para Martin Freeman e Billy Bob Thornton, da construção impressionante de um dos melhores personagens da História da ficção como é este Lorne Malvo, da música potente que consegue transformar o olhar frustrado de uma mulher em um profundo momento de horror penetrante e dos tantos lances absolutamente geniais do grupo de diretores capazes, não há erro com esse seriado extremamente peculiar unindo toda a mediocridade humana com o pior que ela pode produzir.

Acredite, cada morte é sentida e tem um peso estratosférico na trama. Cada antecipação de ações infelizes que os personagens tomarão lhe deixarão atônito e sem fôlego. Na despedida, só resta a angústia. Não somente pela saudade de termos presenciado criação tão feroz, mas sim pelo vazio causado na ausência de cada um desses personagens tão verossímeis, tão reais que dão a ilusão perfeita de que os conhecemos há tempos. E, talvez, um leve assombro, pois com certeza há de enxergar que nosso dia-a-dia é um dia do cotidiano gélido de Lester Nygaard.

Que o terror deste pacato e triste homem, não está a mais do que uma escolha infeliz de distância na nossa realidade.

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Publicado por Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema seguindo o sonho de me tornar Diretor de Fotografia. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas.

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