O cinema sul-coreano se consolidou com expressividade neste século. Hoje, é possível encontrar cinéfilos que não aguardam somente os blockbusters hollywoodianos com certa ansiedade, mas também discutem a antecipação de lançamentos de novas promessas cinematográficas coreanas.
Ao contrário de mestres já consolidados como Chan-wook Park ou Bong Joon Ho, Sang-ho Yeon ainda era um tanto desconhecido. Tradicionalmente, Yeon é um diretor de animações adultas coreanas, mas Invasão Zumbi marca esse ponto de virada em sua carreira. Decidindo trabalhar com o tema dos mortos vivos neste ano, Yeon fez este live action e uma animação sobre uma infestação zumbi na Coréia do Sul.
A narrativa, escrita pelo próprio diretor, é de escopo menor ante a um terror de escala nacional. Acompanhamos a história de Seok Woo, um empresário arrogante e egoísta repleto de trabalho que consome todo seu tempo livre que seria dedicado para aproveitar a infância de sua filha Soo-an. Falhando mais uma vez com os compromissos escolares da garota, além de esquecer de seu aniversário, a filha clama para que Seok faça a viagem para Busan, cidade onde vive sua ex-mulher e mãe da pequena Soo.
Refém de sua própria arrogância, Seok não consegue negar o pedido da garota. Ambos partem para Busan em uma viagem de trem-bala partindo de Seoul. Porém, no qual seria apenas um dia normal, coisas estranhas passam a acontecer. Rumores de pessoas raivosas atacando inocentes na rua tornam-se mais recorrentes até que a situação se torna totalmente insustentável. Antes do trem partir da estação, uma mulher mordida por essas pessoas estranhas embarca no vagão. Como já está infectada, a garota se transforma e começa a morder os demais passageiros.
Com o trem tomado por zumbis e o forte sentimento de insegurança por conta da falta de notícias, a única esperança dos poucos sobreviventes, incluindo Seok e Soo, reside na conclusão da viagem até Busan, a última cidade que resistiu com sucesso a primeira onda da infecção e contágio.
Releitura?
O sub-gênero dos filmes sobre zumbis está mais que saturado nas mídias. O campo do entretenimento de jogos e filmes já não sabem mais o que fazer depois da vasta exploração até sua exaustão nessa década. Ter um olhar tão peculiar sobre o tema pode ter trazido sim novas esperanças a esse tipo de narrativa.
O motivo é bastante simples: Yeon não pavimenta sua história através de lugares comuns e, ainda por cima, consegue emplacar críticas sociais bonitas e mensagens edificantes através de um filme que só teria a mera obrigação de divertir. A proposta é incrivelmente simples: colocar um grupo de personagens testando seus limites para sobreviverem aos infectados que infestaram na embarcação e durante algumas paradas em estações.
Yeon se preocupa em estabelecer bem a mitologia da infecção, mas devido ao isolamento do grupo com o mundo externo, muito da situação fora do trem fica restrita a baterias e sinais de smartphones. Mas essa situação apocalíptica que ocorre na Coréia interessa pouco perto do que acontece dentro do trem. A história se move rapidamente. E mesmo que seja uma narrativa de grupo, o conflito principal gira em torno da relação entre pai e filha estabelecido muito rapidamente através de certos clichês.
Aliás, o roteirista define praticamente o rol inteiro de personagens através do clichê. Temos o pai empresário egoísta e arrogante, a filha que só quer a companhia paterna e espera uma reunião entre família com a mãe ausente, uma mulher grávida acompanhada de seu marido fortão cínico, duas irmãs idosas que se contrastam entre fé e ceticismo e um time de baseball acompanhado de uma cheerleader que tenta emplacar um romance com o atleta tímido do grupo.
O único elemento que foge um pouco do padrão é o mendigo que invade a embarcação tentando se salvar dos ataques na cidade. Uma pena que Yeon desperdice bastante esse personagem que nunca tem a oportunidade de dizer a que veio, mas reforça uma das críticas sociais do cineasta.
O monstro invisível
Além dos zumbis, Yeon sabe que toda boa narrativa precisa de um bom antagonista. Invasão Zumbi não foge dessa regra. O lado ruim humano da história reforça uma mensagem de segregação que pode conversar com a realidade sul-coreana. O discurso de separação é construído a todo momento: o pai que se separa da filha e da ex-mulher, do mendigo recluso encontrado no banheiro e, principalmente, dos dois grupos sobreviventes que se antagonizam diante do medo de um conjunto de pessoas estar infectado ou não.
Mesmo que não seja uma pérola na elaboração desse discurso, é bastante eficiente em causar reflexões no espectador sobre os diferentes estados de monstruosidade e egoísmo diante de terríveis horrores que nos afligem na vida real. Para construir a catarse do protagonista que precisa reencontrar um modo de resgatar o afeto com sua filha, temos o antagonista que é um personagem muito similar ao herói. Também homem de negócios, é egoísta e fará de tudo para conseguir sobreviver – a filosofia do “antes ele do que eu”.
É através das ações do antagonista, Yong-suk, que Seok consegue ter uma carga dramática competente para atingir um clímax cruel e altruísta em seu arco, afinal, ele percebeu que suas ações abomináveis no começo do filme são iguaizinhas ao do homem detestável. O único outro personagem que recebe maior complexidade no tratamento é Sang Hwa, o marido rústico de Sung, que está grávida.
É justamente com esse personagem que toda a influência dos animes da carreira do diretor que vem à tona. Já a interpretação de Dong-seok Ma é bastante caricata e exagerada, praticamente traduzindo um estereotipo de personagem de alivio cômico durão com bom coração que vemos em diversos outros animes. A filosofia de vida, seu estilo despojado e espirito protetor também entram em completa antítese de todos os valores egoístas que o protagonista carrega. Esse trabalho de contrastes é explicito para acelerar a transformação que o herói sofre durante a jornada.
Animação da vida real
O restante do trabalho do roteiro está intrinsecamente ligado com a direção de Sang-ho Yeon. As opções tomadas pelo diretor para deixar seu filme distinto são inteligentes. O estabelecimento do protagonista e de uma Seoul fria e triste é um bom exemplo disso. Ele é cuidadoso para jogar na cara do espectador que o mundo já está ruindo por conta do vírus. São passagens pontuais que indicam a infestação do vírus.
A atmosfera é muito mais eficiente em nos envolver para demonstrar um espectro sombrio que ronda a vida do protagonista. Seja na casa bastante sombreada e estéril, no amanhecer azulado nauseante de Seoul ou dos caminhões de bombeiro partindo até um incêndio na distância.
O investimento da narrativa não é centrado apenas na questão da reaproximação do pai com a filha, mas sim o destino final, Busan, que se comporta mais como uma Pasárgada por sua representação de refúgio e segurança. O diretor enfatiza por diversas vezes, em diálogos, a importância simbólica da família chegar até Busan, pois seria a primeira vez em anos que família estaria unida.
Justamente pela construção desse significado sobre tempo e família que os sacrifícios finais para a vitória tornam o filme emocionante. Confesso que não esperava nada que o longa traria um trato tão humano assim. Yeon vai tão além que até mesmo cria referências que flertam com a cinematografia de Terrence Malick de modo eficaz. O drama inteiro da personagem Soo é sintetizado pela canção que canta para seu pai. Então, apesar de simples, por abordar um tema tão humano sobre tempo, amor, altruísmo e família, o diretor ganha muitos pontos por conseguir traduzir isso de modo pleno.
Aliás, um desperdício mercadológico essa tradução infeliz que o filme recebeu no Brasil. Invasão Zumbi desmerece completamente o título original: Train to Busan, que já indica sobre o verdadeiro tema que o filme representa.
O diretor é compentente. Inclusive por elaborar contrastes visuais entre o começo e o fim do filme. No primeiro ato, raramente Yeon movimenta a câmera, sempre buscando planos intimistas e menos expansivos como se tornasse o mundo exterior em uma verdadeira claustrofobia por conta de pressões internas do protagonista. Assim que os zumbis tomam conta do trem, sua linguagem passa a ficar mais frenética até chegar em grandes planos gerais, bastante movimentados, no clímax da obra.
Como de praxe, todo o estabelecimento da mitologia dessa versão de zumbis é contado através das imagens. Yeon mistura conceitos do zumbi de Extermínio, Guerra Mundial Z e The Walking Dead, mas consegue adicionar uma característica excelente que contribui muito para gerar tensão nas cenas mais poderosas criativamente – todas acontecem quando o trem atravessa túneis.
Logo, há sempre um bom misto de picos de suspense, ação e horror no filme. Quando a ação surge a inspiração claramente vem Guerra Mundial Z com zumbis que jorram aos montes como se fossem cerais caindo na tigela – é impressionante e os efeitos visuais dão conta do recado.
Para tentar conferir a impressão de velocidade nas correrias das criaturas, Yeon usa alguns jump cuts curtos – fica um efeito ligeiramente brega, mas é eficiente. Se tem algo de ruim em Invasão Zumbi está restrito exclusivamente na parte sonora do filme.
Enquanto os diálogos são limpos e bem captados, centrados na realidade, Yeon comente alguns excessos com os efeitos sonoros dos mortos-vivos que não gemem ou urram, mas sim grasnam. É um tanto difícil levar a matança a sério ou ficar preocupado com os personagens quando os zumbis soam exatamente como o Pato Donald resmungando. É ridículo.
Já a trilha musical também comete excessos com composições que muitas vezes mal conseguem conversar com as cenas que vemos em telo ou se comporta de modo excessivamente emocional. A melhor parte da trilha musical de Invasão Zumbi é quando ela se cala.
Outro detalhe muito interessante da obra é o termo de sobrevivência levado bastante a sério. Como a ação se concentra em uma viagem comercial de um trem-bala, nenhum passageiro porta uma arma de fogo. Logo, temos um punhado de personagens extremamente vulneráveis aos ataques dos zumbis violentíssimos. Então a ação consegue sair do lugar-comum marcado por tiroteios e barricadas nesse gênero. Aqui é correria e porrada mano-a-mano em realizações excepcionais de decupagem – o diretor é muito competente em manter uma coerência visual hermética ao longo da obra.
Viagem para Busan
Há sim novos ares para o tema tão explorado inexoravelmente pela indústria. Misturando conceitos e apresentando novos, incluindo a circunstância peculiar de seu espaço de ação ser dentro de um trem, Invasão Zumbi se consagra como um dos melhores filmes dessa temática da última década. A aposta no drama humano, sem ficar no melodrama sem sal, é acertada. O conflito desenvolvido da dupla protagonista satisfaz e emociona pelo talento da atriz mirim ao final do filme. Os outros conflitos em síntese funcionam seja para causar catarse e transformação ou apenas para justificar uma ação extremada do roteiro.
Assim como grandes filmes de qualquer gênero e temática, Yeon fez de seu filme de zumbi uma excelente história sobre conflitos humanos e questionamentos éticos que transbordam moral. Acredite, não se trata de uma obra complexa que fique se preocupando em matutar temas adultos. O diretor quer mesmo é divertir o seu público com as ótimas sequências de ação e suspense que o filme possui, mas, ao mesmo tempo, consegue transmitir uma mensagem bem elaborada.
Certamente, é uma das melhores surpresas do ano que merece sua atenção.
Invasão Zumbi (Busanhaeng, 2016 – Coréia do Sul)
Direção: Sang-ho Yeon
Roteiro: Sang-ho Yeon
Elenco: Yoo Gong, Soo-an Kim, Yu-mi Jeong, Dong-seok Ma, Woo-sik Choi, Sohee, Eui-sung Kim
Gênero: Ação, Terror.
Duração: 118 min.
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