A parceria entre a Netflix e a Marvel Studios é definitivamente um dos maiores acertos em termos de recepção crítica e aceitação popular que ambas as empresas fizeram até agora, atraindo até mesmo o braço da ABC (que já cuida de Agents of SHIELD) para o negócio. Depois de duas temporadas de Demolidor e a apresentação da desconhecida Jessica Jones no ano passado, é a vez do icônico Luke Cage ganhar sua própria série após projetos descartados e uma participação forte na série de Jones.
Ambientada alguns meses depois dos eventos de Jessica Jones, a nova série nos situa no bairro do Harlem e nos apresenta a Luke Cage (Mike Colter) balanceando uma vida de dois empregos enquanto luta para manter sua animosidade. Um dos trabalhos o coloca no círculo perigoso de Cornell Stokes, conhecido como o Boca de Algodão (Mahershala Ali), um gângster dono de boate que prepara-se para travar uma guerra com as gangues latinas a fim de dominar por completo o Harlem. Paralelamente, a detetive Misty Knight (Simone Missick) investiga tanto o mistério das habilidades de Luke Cage quanto a trajetória corrupta de Stokes, enquanto a vereadora (prima e sócia de Stokes) Mariah Dillard (Alfre Woodard) tenta garantir o sucesso de sua campanha política.
Em termos de tom, já cansamos de falar e reafirmar que a Netflix adotou uma abordagem muito mais sóbria, realista e urbana para os heróis que futuramente formarão o grupo dos Defensores (o último a ser apresentado é o Punho de Ferro, que ganha sua série em 2017). Se Demolidor era mesmo uma saga mafiosa dark e Jessica Jones uma variante distinta do neo noir, Luke Cage se aproxima de um blaxploitation anacrônico com pitadas de crime urbano a lá The Wire. Mover a história de Hell’s Kitchen para o Harlem finalmente permite aos produtores – aqui chefiados pelo showrunner Cheo Hodari Coker – explorar novos ares desse universo urbano do MCU, contando aqui com um elenco quase que predominantemente negro, uma direção de arte mais característica do que as da séries anteriores e uma identidade cultural muito mais forte – desde citações a nomes de ruas importantes e origens de monumentos significativos, desde Malcolm X até grandes nomes da cultura musical negra.
E falando nisso, a trilha sonora é um dos grandes acertos da série. Tanto a composta por vários artistas que dão as caras no Harlem’s Paradise, boate do Boca de Algodão, e preenchem a atmosfera com soul, blues e jazz de forma marcante para render sequências envolventes com ações paralelas (algo que vem se revelando como um padrão um tanto excessivo para a Netflix, mas chegaremos nisso depois), quanto pela excepcional trilha sonora original de Ali Shaheed Muhammad e Adrian Younge, que emula com perfeição o estilo slick e divertido da música de produções blaxploitation dos anos 70; conferindo um bem vindo anacronismo temático à série e personalidade à figura de Luke Cage. É o uso mais marcante de música em uma produção da Marvel desde o Awesome Mix Tape de Guardiões da Galáxia.
Caracterização e a criação de um universo rico e coeso são alguns dos principais acertos de Luke Cage. Quando chegamos à história em si, temos alguns problemas, já que é uma narrativa que demora para engatar e que carece de elementos que justifiquem a longa duração de 13 episódios de 50 minutos. Por exemplo, os fillers e subtramas são um problema para a Marvelflix desde a primeira temporada de Demolidor (com o insuportável núcleo de Foggy e Karen com a idosa), e aqui eles são simplesmente tediosos e repletos de clichê. Tudo o que envolve a personagem de Misty Knight é um atraso narrativo , principalmente quando uma reviravolta ocorre com seu parceiro Scarfe (Frank Whaley), levando Misty a um arco descartável e que tira a força de seus equivalentes. Não que estes sejam realmente muito melhores, já que os conflitos de Cage com Boca de Algodão tomam um rumo indireto e confuso em sua condução. Mas quando de fato ocorrem, vemos a série brilhar: é um conflito quase que político, já que Cornell é simplesmente incapaz de machucar o indestrutível Cage, e que se desenrola através de boca a boca nas ruas, procura de podres no passado de cada um e diálogos memoráveis.
Os núcleos narrativos também cometem alguns dos mesmos erros das séries anteriores, com o excesso de flashbacks e até algumas quebras na linearidade de certos episódios (dois deles começam pelo final, mas puro estilo e choque). É interessante para conhecermos o passado de alguns personagens, como a infância traumática do Boca de Algodão e o próprio núcleo de Luke quando era um presidiário chamado Carl Lucas, mas não deixam de ser fillers elegantes. Felizmente, sempre que retornamos para Cage, a performance de Mike Colter é o suficiente para manter o interesse, dada a presença imponente do ator e sua capacidade de explorar diferentes camadas do personagem, mesmo com uma persona tão nota única quanto de Cage – especialmente no episódio em que descobrimos a origem de seus poderes.
Seguindo a escola de seus predecessores, Luke Cage também se beneficia de um ótimo antagonista. Mahershala Ali surge magnético e poderoso como o Boca de Algodão, mesmo sendo uma figura sem a ira e pose de Wilson Fisk ou as habilidades manipuladoras de Kilgrave: é simplesmente um homem movido por sua ambição e sagacidade; e os diretores acertam ao usar constantemente o enquadramento de sua cabeça abaixo de um pôster do rapper Notorius B.I.G. com uma gigantesca coroa dourada. Ali é ótimo, mas não subestimem a força e presença de Alfie Woodard, excelente como Mariah. Os conflitos familiares entre os dois rendem algumas das mais bem atuadas cenas da série, e Mariah mostra-se uma antagonista ainda mais perigosa para Cage ao criar uma imagem pública danosa do herói, influenciando a população a acreditar que a existência de um homem à prova de balas é danosa para todos; já aproveitando um eixo temático de Capitão América: Guerra Civil.
O mais curioso é que Woodard também estava em Guerra Civil, mas como outra personagem…
Há ainda um terceiro vilão na figura de Kid Cascavel, que ganha muita malícia e sadismo com a ótima performance de Erik LaRey Harvey, oferecendo também um oponente mais pessoal no passado de Cage e com uma ferramenta capaz de verdadeiramente machucar o protagonista – puxando aí uma referência de Homem de Ferro 2 e cujo efeito rende uma sequência absurda, porém brilhante, que parece o resultado de uma transa entre Breaking Bad e Pulp Fiction. Mas Cascavel não deixa o pacote pesado demais, já que 13 episódios oferecem tempo de sobra para explorar diferentes arcos, evitando que a série caia na armadilha de Jessica Jones de manter o mesmíssimo vilão por uma temporada inteira.
No quesito ação, Luke Cage fica bem abaixo das anteriores. O realismo e a violência gráfica ainda são os principais códigos a serem seguidos, mas a decupagem das sequências de pancadaria, tiroteio e perseguições é preguiçosa e sem nenhuma inovação. Só funciona quando temos alguma música rap inserida ao fundo ou pela imagem impactante que é ver um homem negro sendo baleado constantemente sem nenhum efeito, de maneira similar como acontecia em O Exterminador do Futuro. O que favorece esse tipo de cena são os belos cenários, que vão de apertados corredores (Marvelfilx e seus corredores…) até luxuosos teatros vazios.
Luke Cage poderia ter sido mais do que o que recebemos aqui. Tem uma construção cultural e iconográfica primorosa, mas ainda comete os mesmos erros das séries anteriores da parceria da Marvel com a Netflix, ao trazer uma história de estrutura tortuosa e um conteúdo que é forçado a caber nos 13 episódios excessivamente longos. Talvez a Netflix devesse repensar o formato de 13 episódios, visto que algo mais curto (como os 8 episódios de Stranger Things) flui melhor e não depende de uma enxurrada de arcos e subtramas desnecessárias.
Luke Cage – 1ª Temporada (EUA – 2016)
Criado por: Cheo Hodari Coker
Direção: Paul McGuigan, Phil Abraham, Andy Goddard, Marc Jobst, Clark Johnson, Magnus Martens, Sam Miller, Vicenzo Natali, Guillermo Navarro, Tom Shankland, Stephen Surjik, George Tillman Jr, Steph Green
Roteiro: Cheo Hodari Coker, Matt Owens, Charles Murray, Jason Horwitch, Christian Taylor, Akela Cooper, Aïda Mashaka Croal
Elenco: Mike Colter, Mahershala Ali, Simone Missick, Alfre Woodard, Rosario Dawson, Jaiden Kaine, Erik LaRey Harvey, Frank Whaley, Theo Rossi
Emissora: Netflix
Episódios: 13
Gênero: Ação, Aventura
Duração: 50 min
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