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Crítica | Matrix Resurrections é a pílula vermelha em uma Hollywood “Marvetizada”

É praticamente redundante falar sobre o impacto que Matrix teve na cultura pop em 1999, uma ficção científica original que misturava conceitos filosóficos com ação de artes marciais – todos sabemos. O que posso dizer, é como o filme das irmãs Wachowski me impactou profundamente, sendo uma das obras cinematográficas que, ao assistir pela primeira vez aos 7 anos de idade, ajudou a construir meu gosto e interesse pela Sétima Arte; uma chama que as duas subestimadas continuações, Matrix Reloaded e Matrix Revolutions, só mantiveram acesas por quase 20 anos.

A ideia de um quarto Matrix parecia desnecessária. Nunca fui contra novos projetos envolvendo o mundo criado pelas Wachowskis, já que o mundo virtual de computadores agressivos e simulacros é vasto o suficiente para ser explorado de diversas outras formas; seja pelo cinema ou pela televisão. Mas Matrix Resurrections quer mesmo mexer no vespeiro e literalmente ressuscitar uma história que já havia sido encerrada, ao trazer de volta o icônico personagem de Keanu Reeves para uma narrativa que é tudo, menos convencional. E o resultado é bem diferente do que poderíamos imaginar; e digno da maravilhosa criação das Wachwoskis.

A trama do filme começa de forma misteriosa, algumas décadas após os eventos de Matrix Revolutions. Encontramos Thomas Anderson (Reeves) novamente vítima do mundo virtual da Matrix, onde vive alheio como um programador de games que não tem memória alguma dos eventos da trilogia. À medida em que ele começa a experienciar glitches e a aparição de uma Trinity (Carrie-Anne Moss) igualmente alheia aos eventos do passado, Thomas embarca em uma jornada com um novo grupo de rebeldes para relembrar seu passado e descobrir a verdade – e também uma forma de resgatar o amor de sua vida de uma nova simulação.

A Quarta parede da Matrix

Ao contrário da trilogia original, Resurrections conta apenas com Lana Wachowski por trás das câmeras – visto que a irmã, Lily, optou por se concentrar em outras atividades. Lana então recorre a um time de roteiristas composto por Aleksandar Hamon (da série Sense8) e David Mitchell (autor de Cloud Atlas, adaptado pelas Wachowski ao lado de Tom Tykwer) para tecer uma história que realmente se justificasse. Curiosamente, toda a primeira parte do longa parece refletir a própria questão interna de Lana em continuar a trilogia, já que a ambientação de Anderson como um programador de games que criou uma franquia que engloba todos os acontecimentos dos filmes de Matrix rende uma série de situações metalinguísticas: reuniões com engravatados garantindo que “Matrix 4 será feito com ou sem a sua ajuda”, fãs alucinados que constantemente citam cenas e marcas popularizadas pela saga e uma infame montagem ao som de “White Rabbit” com uma mesa de brainstorming e marketing para esse vindouro novo “game”.

É uma solução inteligente e que soa natural com o universo de Matrix, que sempre bateu na tecla da escolha e de micro-universos – duas características nas quais os games ficaram especialmente mais fortes desde que o primeiro filme foi lançado. Isso também garante um vínculo bem forte com os outros longas, que literalmente tem frames e cenas sendo exibidas em paralelo com o novo filme – seja de forma onisciente ou incidental, o que só enriquece a experiência. 

Existe também um espaço bem-vindo para uma crítica satírica sobre o atual método de produção em Hollywood, viciada em reboots, sequências e filmes McDonalds da Marvel Studios. De forma similar a Wes Craven em seu irreverente O Novo Pesadelo, Lana Wachowski faz com que Matrix Resurrections tenha ciência de que é um filme: quando as situações se repetem, não é uma coincidência acidental como aquelas vistas em Star Wars: O Despertar da Força, mas sim uma decisão consciente e auto-referencial; brincando até mesmo com situações de “recast” ao colocar um inspirado Yahya Abdul-Mateen II para viver uma versão alternativa de Morpheus, desde cara introduzindo a ideia de que “programas também podem se libertar”.

De volta ao mundo real

Essa primeira metade do filme definitivamente é a mais forte da projeção, especialmente pelas brincadeiras metalinguísticas. À medida em que a trama avança, mais e mais nos aproximamos da vasta mitologia que Matrix Revolutions aprofundou, gastando bastante tempo no mundo real e no contexto em que a história se encontra após os acontecimentos deste. Mesmo sendo um filme de quase 2h30, tive a impressão de pouco aprofundamento nesse setor, que sofre com demasiada exposição por parte da envelhecida Niobe, novamente interpretada por Jada Pinkett-Smith, para justificar o que exatamente está acontecendo.

Nessa porção da trama, também temos tempo para aprofundar melhor nos novos personagens. Além do excelente Yahya Abdul-Mateen II como o novo Morpheus, Jessica Henwick é um dos grandes destaques como Bugs. Atuando, de certa forma, como a “Trinity da nova geração” ao liderar o grupo que vai ao resgate de Neo, Henwick é puro carisma e rouba todas as suas cenas. Já Jonathan Groff está absolutamente divertido como o sócio de Thomas Anderson na Warner Bros Games (juro), especialmente quando a natureza de sua identidade é revelada por completo. De forma similar, o sempre competente Neil Patrick Harris ganha um destaque surpreendente com o decorrer da trama, inicialmente apenas como um simples terapeuta. E por último, mas não menos importante, Priyanka Chopra Jones assume com gosto o papel de uma personagem importante em Revolutions, e que ganha destaque especial no clímax.

Mas é mesmo Keanu Reeves e Carrie-Anne Moss quem garantem todo o destaque emocional. O romance entre Neo e Trinity sempre foi forte ao longo da trilogia, e os dois atores garantem uma nova camada existencial muito interessante aqui, especialmente nas cenas em que os dois não se lembram do passado – mas têm uma química irresistível. Vale apontar também que Reeves apresenta uma versão bem mais leve de Neo, com destaque para seu cotidiano como o entediado designer de games – que ganha as feições de James McTeigue, uma piada interna impagável para os fãs das Wachwoskis, que ainda encaixa de forma sábia o cineasta Chad Stahelski (e ex-dublê de Reeves na trilogia) na brincadeira.

Eu ainda sei Kung fu?

E, claro, quando falamos de Matrix é impossível não entrarmos nos quesitos de ação. Cada um dos filmes da trilogia, que contou com o especialista Bill Pope na direção de fotografia, ofereceu algumas das minhas cenas de ação preferidas na vida. Infelizmente, Resurrections nem chega perto do nível de maestria dos filmes anteriores, por mais que Lana tenha boas ideias e que a dupla de fotógrafos John Toll e Danielle Massaccesi sejam muito felizes ao incorporar os mais diferentes tipos de luz natural no processo, me pareceu uma necessidade de tentar “inovar demais”. Os combates parecem mais rápidos e o jogo de câmera mais agressivo, como se Wachowski tentasse adotar um estilo similar àquele usado pelos irmãos Russo em seus filmes do Capitão América. Muito triste, e também pela ausência do talentoso Don Davis na trilha sonora, que passa o bastão para as mãos bem capazes de Tom Tywker e Johnny Klimek; que fazem um trabalho eficiente, mas sem música de rave o suficiente.

Dito isso, há uma grande sequência de ação que consegue aproveitar esse estilo mais agressivo e moderno, especialmente pela ideia por trás. Esta nova versão da Matrix introduz o conceito dos Bots, que nada mais são do que NPCs que podem ser transformados em máquinas de matar agressivas em um tipo de “Enxame”, e garantem um confronto envolvendo Neo e Trinity que logo evolui para um grande longa de invasão zumbi, que faz o caos de Guerra Mundial Z parecer um simples passeio de metrô na madrugada. É uma grande cena que realmente aproveita o potencial de uma Matrix descontrolada e furiosa, e fico feliz que ao menos aqui Wachowski e sua equipe tenham entregado um espetáculo notável; e até usando o conceito do bullet time de uma forma inteiramente nova.

Matrix Resurrections é um filme extremamente autoral e desafiador. É uma continuação que brinca com clichês e os vira de ponta cabeça, oferecendo uma experiência divertida e original, ainda que imperfeita. Certamente é um longa que merece ser visto mais de uma vez, e que prova que ainda é possível contar com grandes ideias em filmes grandes.

Crítica em vídeo

Matrix Resurrections (The Matrix Resurrections, EUA – 2021)

Direção: Lana Wachowski
Roteiro: Lana Wachowski, David Mitchell e Aleksandar Hemon
Elenco: Keanu Reeves, Carrie-Anne Moss, Yahya Abdul Mateen II, Jessica Henwick, Jada Pinkett-Smith, Jonathan Groff, Neil Patrick Harris, Lambert Wilson, Priyanka Chopra Jones, Toby Onwumere, Max Riemelt, Eréndira Ibarra
Gênero: Ação, Ficção Científica
Duração: 148 min

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Publicado por Lucas Nascimento

Estudante de audiovisual e apaixonado por cinema, usa este como grande professor e sonha em tornar seus sonhos realidade ou pelo menos se divertir na longa estrada da vida. De blockbusters a filmes de arte, aprecia o estilo e o trabalho de cineastas, atores e roteiristas, dos quais Stanley Kubrick e Alfred Hitchcock servem como maiores inspirações. Testemunhem, e nos encontramos em Valhalla.

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