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Crítica | Morte no Nilo consegue fazer emocionar com um bigode

Eu jamais iria adivinhar que, na temporada de final de ano de 2017, o público se mostraria sedento por novas aventuras de Hercule Poirot. Detetive protagonista de diversos romances de mistério de Agatha Christie, o personagem foi reinventado pelas lentes e interpretação de Kenneth Branagh, que obteve um resultado formidável nas bilheterias com Assassinato no Expresso do Oriente. Diante do resultado inesperado, a Fox (agora Disney) aprovou uma continuação trazendo boa parte da equipe de volta. 

Infelizmente, Morte no Nilo acabou enfrentando uma série de problemas que nada envolvem sua produção. Primeiro, o filme acabou perdido na complexa aquisição da Fox pela Disney, o que atrasou o início das filmagens e também o calendário de lançamento. Segundo, obviamente tivemos a pandemia do COVID-19 que ajudou a atrasar a data mais ainda. E, por fim, duas das estrelas do elenco (Armie Hammer e Letitia Wright) se envolveram em polêmicas que foram de antivacina, assédio sexual até… canibalismo. Dizer que Morte no Nilo é um filme difícil de vender é um eufemismo.

O que é uma grande injustiça com o filme em si, que é tão bom (se não melhor) do que seu anterior.

Começando algum tempo após os eventos de Assassinato no Expresso do Oriente, a trama nos mostra um Poirot (Branagh) cada vez mais disposto a encontrar o conforto de uma vida aposentado como detetive. Suas férias serão postergadas mais uma vez quando ele é convidado para acompanhar o retorno de Linnet Doyle (Gal Gadot), ricaça recém casada com Simon (Hammer) que teme por sua segurança após uma série de ameaças da ciumenta Jacqueline de Bellefort (Emma Mackey). Quando o pior se concretiza durante uma travessia pelo rio Nilo com diversos dos parentes e amigos da milionária, Poirot novamente precisa colocar em prática suas habilidades como o maior detetive do mundo.

Mistério fácil, jornada instigante

Assim como no anterior, Morte no Nilo é um exemplar básico do gênero whodunit. Seguindo a obra de Christie como base, o roteirista Michael Green brinca com todas as convenções e fórmulas do jogo, mas com o destaque aqui de usufruir de um longo tempo de apresentação e desenvolvimento de personagens e subtramas até o assassinato que requer a identidade de um culpado enfim acontecer. Não há nada de inovador ou muito diferente nesse sentido, mas felizmente Green é capaz de aproveitar as personalidades bem distintas e espalhafatosas de seu gigantesco grupo de personagens – que literalmente está jogado em uma trama novelesca sobre ex-namoradas vingativas e parentes distantes interesseiros. É um caso mais íntimo do que aquele visto em Expresso do Oriente, já que todos os envolvidos são – até certo ponto – conhecidos, e não meros estranhos.

Sem querer entrar em spoilers, mas o problema central de Morte no Nilo está em sua previsibilidade. Longe de chegar perto da resolução genial de Expresso do Oriente, a nova aventura até faz parecer que vai trazer algo inovador, mas acaba encontrando a solução mais óbvia possível. Claro que isso é uma herança do material original de Christie, mas Branagh prejudica o mistério ao colocar um plano detalhe de extrema importância durante um evento crucial, que automaticamente já levanta uma suspeita em torno de um dos personagens. 

Porém, a jornada de Morte no Nilo é o que realmente importa. E se Branagh já havia se mostrado bem inspirado e criativo na condução do filme de 2017, aumenta ainda mais a escala ao apostar em longos travellings que navegam pelo colossal navio Karnak, as belas paisagens no Egito e até mesmo uma inesperada sequência de flashback que mostra Poirot lutando na Primeira Guerra Mundial (junto de um pavoroso rejuvenescimento digital). Ao lado de seu habitual diretor de fotografia Haris Zambarloukos, Branagh conduz um belíssimo espetáculo visual, que remete bastante aos longas de grandes elencos da Hollywood dos anos 50 – algo que a elegante fotografia em deslumbrante película 70mm remete com louvor.

Quando o bigode salva o dia

E se Branagh continua afiado como diretor, seu Poirot também não decepciona. Ainda divertido e carismático como no anterior, o que mais surpreende em Morte no Nilo é o aprofundamento no passado e no psicológico do detetive, que tem seus momentos mais memoráveis quando é questionado e colocado contra a parede para justificar seus atos – e até mesmo fracassos. Se alguém, inclusive, me falasse que o bigode nada sutil de Poirot seria essencial para uma catarse emocional transformadora eu gargalharia horrores, mas o excelente trabalho de Branagh como ator torna esta pequena subtrama como o ponto alto absoluto da produção. Pode parecer besteira um bigode ser o centro da narrativa, mas o resultado é surpreendentemente emotivo.

Finalmente, chegamos ao grandioso elenco. Ainda que menos estelar do que o anterior, a trupe de Morte no Nilo é bem eficiente e igualmente diversificada. Vale apontar o destaque que o ótimo Tom Bateman ganha como Buc, um dos amigos de Poirot, e seu romance secreto com a personagem de Wright – que está bem, mas só quando contracena com a excelente Sophie Okonedo, que divide também ótimos momentos com Poirot.

Por falar em romances, todo o triângulo envolvendo Gadot, Hammer e Mackey tem seus altos e baixos: claramente Hammer é bem picotado e ofuscado na montagem (o que gera um sumiço nada discreto de seu personagem por um bom bloco da trama), enquanto Gadot não faz muito além de sua postura imponente (e com bizarras referências e até cosplay de Cleopatra). É mesmo a fenomenal Emma Mackey quem rouba o show, misturando a obsessão quase doentia de Jacqueline com uma camada de sentimento genuíno.

Annette Bening, Ali Fazal e Dawn French acabam bem escanteados, ao passo em que Rose Leslie e Russell Brand têm seus talentos completamente desperdiçados em personagens que não causam o menor impacto na trama; e que, sinceramente, só servem como peso morto e distrações da narrativa principal.

Ainda que seja um mistério bem menos interessante, Morte no Nilo vale pela ótima direção de Branagh e seus esforços novamente divertidos na pele de Hercule Poirot. É um filme bem mais maduro e surpreendentemente bem resolvido internamente do que seu anterior, e que confirma o desejo de ter mais aventuras desta versão do detetive de Agatha Christie.

Morte no Nilo (Death on the Nile, EUA – 2022)

Direção: Kenneth Branagh
Roteiro: Michael Green, baseado na obra de Agatha Christie
Elenco: Kenneth Branagh, Gal Gadot, Annette Bening, Tom Bateman, Armie Hammer, Letitia Wright, Emma Mackey, Russell Brand, Rose Leslie, Ali Fazal, Dawn French, Sophie Okonedo, Jennifer Saunders
Gênero: Aventura
Duração: 127 min

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Publicado por Lucas Nascimento

Estudante de audiovisual e apaixonado por cinema, usa este como grande professor e sonha em tornar seus sonhos realidade ou pelo menos se divertir na longa estrada da vida. De blockbusters a filmes de arte, aprecia o estilo e o trabalho de cineastas, atores e roteiristas, dos quais Stanley Kubrick e Alfred Hitchcock servem como maiores inspirações. Testemunhem, e nos encontramos em Valhalla.

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