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Crítica | Neon Genesis Evangelion – Ressoando sentimentos humanos antes e agora

Desde a minha infância, ouvi falar incessantemente sobre Neon Genesis Evangelion. Como na época era muito novo e adorava acompanhar animes mais “convencionais” como Dragon Ball Z, Samurai X e Yu Yu Hakusho, não dediquei qualquer parcela de atenção para a obra.

Na época, era o advento da pirataria na Internet e muito provavelmente eu teria que fazer algum esforço para encontrar o anime nos rincões da web então simplesmente deixei para lá. Via os produtos em todo o canto e nem sabia quem eram os personagens e muito menos sobre o que era a história.

Entretanto, aqui estamos em 2019, eu com 25 anos e em férias. Logo, nada melhor do que dar uma chance para ver o tão polêmico Neon Genesis Evangelion, afinal a facilidade da Netflix realmente foi um diferencial. Hoje, tendo completado o anime e o filme que encerra a saga, só agradeço por não ter assistido na época de seu ápice de popularidade entre a virada do milênio, pois certamente não teria entendido metade da obra – e isso, em grande parte, é culpa sim do produto.

Quem eu sou?

Em Evangelion acompanhamos a vida do pacato Shinji Ikari, um garoto de 14 anos que visita Neo Tokyo 3 para encontrar seu pai, Gendo Ikari, um homem reservado e afastado que controla a sede da NERV, uma divisão militar especializada em combater os chamados Anjos, criaturas alienígenas que atacam a cidade ceifando milhares de vidas dos seletos sobreviventes do Segundo Impacto, um evento catastrófico que eliminou metade da vida no planeta.

Ao chegar na incrivelmente tecnológica base da NERV, Shinji descobre que seu pai quer que ele pilote a Unidade 01 de um mecha chamado EVA, a única arma que a humanidade conta para conseguir se proteger das ameaças constantes dos Anjos que aparecem com uma frequência crescente. Por diversos motivos, Shinji recusa, até conhecer Rei, a outra adolescente designada para pilotar o mecha.

Shinji muda de ideia ao ver o estado frágil que a garota se encontra, recuperando dos ferimentos graves da última batalha. Ao assumir o comando do EVA, Shinji encontra um propósito em sua vida para ser melhor aceito pelos outros e principalmente por seu pai enquanto lida com um quadro depressivo extremamente impiedoso.

Em primeiro contato, Neon Genesis Evangelion pode parecer apenas mais uma besteirada para colocar robôs gigantes lutando contra monstros orgânicos em coreografias repletas de ação e violência gráfica extrema – sim, o anime é superviolento e isso se tornou um problema até mesmo para a emissora na época.

É nítido que na série existe um ponto de ruptura que praticamente transforma toda a narrativa após o episódio 13 – a exata metade do seriado, com os episódios de 10 a 12 servindo como transição.

No começo, o anime é relativamente denso, aprofundando bastante na psique de Shinji, o protagonista, já que a maioria dos episódios são centrados em seu ponto de vista. O personagem sofre constantemente com um conflito schopenhaueriano sobre o Dilema do Porco-Espinho que basicamente fundamenta o estado de solidão auto imposta que Shinji sofre, de sua completa incompetência social de se aproximar com diversos outros personagens por medo de ferir e ser ferido.

Logo, o comportamento retroalimenta sua solidão reforçando ainda mais a depressão com pensamentos cada vez mais duros e cruéis em sua cabeça. Sim, isso ainda se trata de um anime sobre monstros gigantes e a salvação do mundo. Aliás, muito do gênero shonen como Naruto deve muito aos primeiros passos que Hideaki Anno, diretor e criador do anime, ousou em dar em 1995, pois não era comum na época ter personagens tão complexos a esse ponto em uma série televisiva.

Aliás, é justamente pelo fato de ser incomum que Neon Genesis Evangelion acaba sofrendo severamente: sua constante autoexplicação. Não são raras as vezes que os personagens acabam em monólogos gigantescos se auto questionando e fazendo uma autoanálise gigantesca em sequências surrealistas e abstratas dentro dos episódios do terço final do anime – principalmente nos dois últimos capítulos.

Enquanto Anno gasta minutos muito consideráveis para aplicar sentimentos e conflitos muito densos em diversos dos personagens coadjuvantes como Rei em sua autodescoberta do eu, de Asuka e sua necessidade de atenção exagerada para finalmente ser aceita e se autoafirmar, ou com a sexualidade de Misato Katsuragi que é toda embaralhada com assuntos mal resolvidos com seu pai, muito do lore, da história dos “quando” e “por que” acabam totalmente deslocadas.

Sem consultar qualquer obra adicional, é muito provável que fique frustrado com a experiência que o anime proporciona e acabe se sentindo traído por não entender completamente o que são os Anjos, as EVAs, a SEELE, o Terceiro Impacto, o projeto de Instrumentalização Humana e diversos outros tópicos igualmente muito interessantes. Originalidade é o que não falta aqui.

O que importa para Anno são seus personagens e o trabalho dedicado a torna-los os mais humanos possíveis ainda que, em alguns momentos, se tornem caricaturas de si mesmos. A depressão e a falta de conexão, nunca permitindo que eles vivam em plenitude, são de fato muito bem escritas, ainda que o diretor abuse bastante dessas sequências que chegam a ser repetitivas na segunda metade do anime.

Magistralmente confuso

Existem diversos adjetivos generosos para atribuir para Evangelion e todos são merecidíssimos. Uma das qualidades que mais me deixou espantado com o anime é trabalho muito cerebral a cada nova batalha contra os Anjos. Apesar de existir sim deus ex machina que ativam um modo berserk da EVA-01, esses momentos são raros e muito impactantes mesmo, a grande maioria das batalhas é vencida por mérito próprio dos personagens.

Inclusive, ainda que feito em 1995, é muito relevante notar como as personagens femininas assumem responsabilidades que exigem força e preparo psicológico intenso. Anno mostra a fragilidade do íntimo do ser delas com Misato, Ritsuko, Rei e Asuka em contraste com a ferocidade absoluta que lidam em momentos de grande estresse afinal existe uma razão muito pertinente pela qual os Anjos atacam somente Neo Tokyo 3, definindo o destino de toda a humanidade.

Ao contrário de diversas obras parecidas, Evangelion sempre apresenta reviravoltas intensas em seus episódios mais agitados, nunca duvidando da inteligência do espectador e conseguindo conquistar momentos verdadeiramente catárticos como a icônica batalha sincronizada de 62 segundos acompanhada da trilha musical de Shiro Sagisu – literalmente inspirado por anjos para conseguir um resultado sonoro tão marcante.

A trilha é destacada pelo fato de Anno saber como valorizar toda a encenação a favor das músicas instrumentais poderosas. Isso envolve tanto as batalhas, a preparação para elas e também para as mais introspectivas, repletas de vazios e espaços brancos.

As metáforas visuais são igualmente importantes para o diretor que valoriza bastante o trabalho dos animadores já que ele próprio também um animador. Iconografias religiosas cristãs e judaicas permeiam o seriado, inserindo um elemento místico fantasioso em universo high tech de ficção científica. Simplesmente funciona com perfeição.

Se há um espaço correto para criticar Anno este está concentrado nos dois últimos episódios. Para quem não sabe, a série esgotou seu ritmo por conta do orçamento que praticamente havia se desmantelado. Não havia como pagar o trabalho necessário para terminar os episódios situando o aspecto gigantesco que requisitavam para encerrar a história no modo explosivo como queriam fazer (e fizeram com The End of Evangelion).

Logo, os dois capítulos finais se passam na psique dos personagens que expõem seus sentimentos, medos, prazeres, vontades, expõem seu eu do modo mais literal possível. Infelizmente, as sequências esgotam pela cacofonia visual que Anno realiza deixando um vestígio autoral super válido, mas incrivelmente cansativo. Não é exagero dizer que esses episódios se arrastam mais do que outros episódios mais densos focados somente nos personagens.

O fato é que Anno precisava entregar dois capítulos de 23 minutos para a emissora e assim fez. Ignorando completamente diversas questões em aberto na narrativa, o diretor focou em concluir o arco de Shinji que finalmente reconhece que tem o poder de mudar e poder tocar a vida dos outros do modo mais amoroso possível. O final icônico dos “parabéns” que rendeu até mesmo memes na Internet é apoteótico. Simples e genial ao mesmo tempo, mas que deixou muita gente insatisfeita.

Obra-prima Imperfeita

Neon Genesis Evangelion deveria ganhar a chance de ter a atenção de muitas pessoas. Pela facilidade de agora, oferecida na Netflix, não vejo a menor condição de qualquer espectador recusar essa experiência. Mesmo que muito difícil e, por vezes, parecer que se trata apenas de uma viagem astral filosófica e psicológica de Hideaki Anno, existem motivos muito claros para essa obra ressoar tanto até hoje entre inúmeras pessoas.

O conflito de se conectar com o próximo, de amar e ser amado, do preenchimento do vazio existencial, está agora mais presente do que nunca. Muitos viraram ilhas quando mais precisavam criar pontes entre todos.

Mesmo que falha e incompleta, há alma nesse trabalho. Se trata do perfeito exemplo da obra-prima imperfeita tão humana quanto nós mesmos.

Neon Genesis Evangelion (Shin Seiki Evangerion, Japão – 1995 a 1996)

Direção: Hideaki Anno, Kazuya Tsurumaki
Roteiro: Hideaki Anno, Oscar Garcia
Elenco: Fumihiko Tachiki, Megumi Ogata, Yuriko Yamaguchi, Kotono Mitshuishi
Gênero: Mecha, Pós-Apocalíptico
Duração: 26 minutos por episódio (26)

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Publicado por Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema seguindo o sonho de me tornar Diretor de Fotografia. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas.

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