Jordan Peele conquistou Hollywood, o mundo e o universo após o sucesso de seu terror Corra!, que evoluiu para um grande fenômeno cultural nos EUA e garantiu diversos elogios da crítica – além de destaque no Oscar, onde saiu premiado como Melhor Roteiro Original. Um começo impressionante para Peele, que era comediante ao lado de Keegan Michael Key, revelando uma inteligência admirável para construir suspense e mantê-lo atrelado com um senso de humor desconfortável.
A repercussão de Corra! garantiu muito poder a Peele na indústria, tanto na produção de novos projetos (Infiltrado na Klan, de Spike Lee, é um dos filmes que saiu do papel graças a seu envolvimento) e até mesmo a responsabilidade suprema de tocar um reboot da série de antologia Além da Imaginação, que sairá na CBS All Access no próximo mês. Mas mais do que isso, Corra! garantiu a Peele mais liberdade na escolha de seu segundo filme, que chega pela Universal Pictures a Blumhouse na forma de Nós, mais um terror que traz um elenco negro em destaque e a promessa de lidar com temas sociais através de uma abordagem sobrenatural. O resultado é agridoce, já que Peele mostra-se mais evoluído como diretor, mas encontra dificuldades para definir exatamente que tipo de filme é Nós.
A trama segue uma família formada por Lupita Nyong’o, Winston Duke, Shahadi Wright Joseph e Evan Alex, que saem de férias para passar uma temporada em uma casa de praia. Chegando no local, ambientado em uma região que traumatizou a personagem de Nyong’o na infância, a família passa a ser perseguida por um estranho grupo que traz uma faceta ainda mais curiosa: são exatas cópias de cada um deles, representando seu lado mais sombrio e perigoso. As férias logo tornam-se um jogo de sobrevivência, onde cada membro da família precisará enfrentar sua própria cópia para sobreviver.
Evolução como diretor
É uma proposta interessante, e que por si só já traz uma mistura de gêneros distintos: o terror trash que evoca filmes como A Noite dos Mortos-Vivos e o estudo psicológico, afinal nada é mais freudiano do que ter antagonistas que representam versões assustadoras de nós mesmos – não por acaso, George A. Romero era muito eficiente em mesclar ambas as características em sua saga de zumbis. Peele acerta em partes, com mais destaque para retratar a lenta progressão de como o ataque misterioso vai escalonando, bebendo da fonte da “ameaça repentina” de Os Pássaros e Tubarão (não por acaso, dois personagens usam uma camiseta e um broche desses filmes).
Peele segura o espectador pela garganta durante essa primeira metade, retratando com uma tensão excepcionalmente bem criada como a família protagonista vai sendo cercada pelos agressores dentro de sua casa. Muito mais maduro e seguro do que em Corra!, sua câmera é mais inventiva, mas também econômica nas panorâmicas e planos estáticos que retratam a posição dos personagens, sendo criativo também na hora de provocar sustos ou pavor – auxiliado pela ótima fotografia de Mike Gioulakis, que explora bem o jogo de sombras, e a trilha sonora de Michael Abels, fortemente inspirada na variação de cordas graves e agudas do veterano compositor Bernard Hermann.
O cineasta também preserva aqui aquele que era seu traço mais forte no longa de estreia: foreshadowing e contextualização. Diversas vezes durante o primeiro ato, somos apresentados a imagens, manias de personagens e outras informações que, na forma de piadas, podem parecer insignificantes, mas que se tornam revelastes com o decorrer da trama: o fato de o motor de barco de Winston Duke sempre falhar no começo é motivo de piada por um bom momento, mas acaba sendo um “deus ex machina” em um momento intenso, já tendo sido bem estabelecido pelo roteiro de Peele minutos antes.
Confusão como mensageiro
Infelizmente, o grande mistério Hitchcockiano de Peele acaba entregando uma solução decepcionante, especialmente porque o diretor se vê na necessidade de trazer uma explicação para o sobrenatural. Não é um conceito particularmente inspirado, e além de tudo é complexo demais para ser resumido em um longo monólogo de uma das cópias; uma gigantesca orgia de exposição que ocorre, vejam só, dentro de uma sala de aula. É aí também que a metáfora de Peele em Nós mostra-se sem força, e escancarada demais pelo conceito da dualidade; quando a cópia de Lupita Nyong’o responde que “somos americanos” ao ser questionada pelos demais sobre quem são, notamos que Peele talvez esteja atirando para múltiplos alvos sem uma direção clara.
E deixei propositalmente o melhor para o final. Se Jordan Peele não entrega tudo o que poderia, Lupita Nyong’o entrega aquela que é facilmente a melhor performance de sua carreira até agora, e ficarei espantado (e revoltado) se não ver o nome da atriz entre as indicadas na próxima ediçõo do Oscar. Seu trabalho já seria impressionante se considerássemos apenas seu papel como Addy, onde Nyong’o traduz todo o pavor, pânico e senso de proteção de forma convincente e forte, mas este atinge um outro nível quando a vemos interpretando sua sósia; sendo a única capaz de falar entre os demais clones, Nyong’o adota uma voz danificada e assombrosa, tornando-se imediatamente o centro das atenções quando entra em cena.
Todo o restante o elenco está eficiente, com destaque para o divertido Winston Duke. Ainda que a maioria das interjeições humorísticas não funcione, elas se tornam mais naturais quando o ator as protagoniza, sendo um bom contrapeso ao trabalho mais complexo de Nyong’o. E ainda que não tenha uma participação tão extensa, Elisabeth Moss tem momentos de puro brilhantismo ao interpretar uma das cópias, assim como todo o elenco de crianças.
Nós não é uma obra tão completa e certeira quanto Corra!, mas comprova que Jordan Peele é um diretor interessante e que vem amadurecendo sua linguagem visual, ainda que fique bem perceptível que o longa traz muitas ideias que não parecem comportar, ou habitar, o mesmo filme. Mas, ainda que imperfeito, mostra que o acerto de Peele em seu primeiro filme não foi sorte de principiante.
Nós (Us, EUA – 2019)
Direção: Jordan Peele
Roteiro: Jordan Peele
Elenco: Lupita Nyong’o, Winston Duke, Elisabeth Moss, Tim Heidecker, Shahadi Wright Joseph, Evan Alex, Yahya Abdul-Mateen II, Anna Diop, Cali Sheldon, Noelle Sheldon
Gênero: Terror
Duração: 116 min
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