Os anos 1990 foram uma verdadeira benção para os filmes de ação. Dentre tantos longas mais espertos na execução da história, além do foco do protagonista estar mais alinhado ao homem comum, abandonando os estereótipos do macho brucutu surreal dos anos 1980. Em uma boa seleção de filmes assim, é relativamente fácil apontar um dos donos da coroa: O Fugitivo, clássico de 1993 com Harrison Ford e Tommy Lee Jones.
O sucesso de O Fugitivo foi tamanho que conseguiu uma boa recepção universal tanto na crítica como na bilheteria. Algo ainda mais surpreendente pela competência em adaptar o elogiado e extenso seriado homônimo de 1963. Mas o que faz O Fugitivo ser essa grande obra-prima do gênero não é somente pelos elogios, mas pelo reconhecimento da Academia ao ser indicado para sete Oscar. Pela raridade da situação, O Fugitivo se torna um dos maiores filmes de ação da História do Cinema. E também com muito mérito como veremos a seguir.
Um Destino Miserável
Apesar de ser inspirado no clássico seriado que conta a mesma história, é fácil traçar um paralelo de O Fugitivo com Os Miseráveis de Victor Hugo. Ambos contam uma narrativa de perseguição entre um foragido inocente e um policial obstinado em recapturar o dito criminoso. Obviamente, tudo é diluído e menos ambicioso no filme, mas o cerne é o mesmo.
Jeb Stuart e David Twohy trazem a trágica história do médico Richard Kimble, um cardiologista que é preso injustamente sob a suspeita de ter assassinado sua esposa. Condenado em um julgamento nada esforçado, Kimble é sentenciado à injeção letal e logo é encaminhado para uma nova penitenciária. Nessa transferência, outros presos iniciam uma rebelião causando a morte do motorista do ônibus. Sem controle, o veículo para nos trilhos de uma movimentada linha de trem. Momentos antes do impacto, Kimble consegue se livrar das algemas e fugir para o mato.
Agora novamente livre, o bom doutor precisa correr contra o tempo para provar sua inocência já que o oficial Samuel Gerard e sua equipe iniciam uma das maiores caçadas a um criminoso vista na história dos Estados Unidos.
É inevitável que qualquer um que visite O Fugitivo pela primeira vez pense que o longa seja banal e bastante simples na execução da história, organizando uma narrativa de perseguição como já vimos diversas vezes antes. De fato, isso ocorre até o segundo ato do filme começar. Até lá, Kimble é um enigma como protagonista, mas muito fácil de se compadecer pela performance arrasadora de Harrison Ford que consegue ser contido, aterrorizado e bastante inocente. Aliás, os roteiristas não brincam com a dúvida sobre ele realmente ter assassinado a esposa ou não. Kimble é inocente e pronto. Por sua vez, isso gera uma identificação maior com o personagem, comprando toda a sua exaustiva jornada.
No final do primeiro ato que temos o verdadeiro brilho de O Fugitivo aparecer: a quebra das convenções banais do filme do subgênero. Presumia-se que Kimble não teria lá muitos encontros com seu perseguidor, Gerard, mas isso rapidamente é descartado. Em questão de poucos momentos, já vemos o policial estar no encalço do condenado dando início a muitas perseguições icônicas como a primeira que envolve uma correria intensa entre canais de esgoto até terminar em um ótimo cliffhanger – de modo literal.
Esse primeiro encontro é visceral em sua crueldade e denota o contraste dessas figuras antagônicas em apenas um diálogo. Nele, Kimble afirma que é inocente e Gerard, com frieza, responde que não se importa. Rapidamente conhecemos o cerne dos personagens: um está totalmente sozinho e o outro está disposto a tudo para capturar o homem, mesmo que seja preciso matá-lo.
Essa primeira conexão logo motiva o protagonista a iniciar sua própria investigação para provar sua inocência e conseguir capturar o verdadeiro assassino. É um jogo de gato-e-rato bastante intrincado que os roteiristas criam para manter o dinamismo do filme sem nunca deixar o espectador exausto pelo ritmo das reviravoltas. Como Kimble é um personagem silencioso, ele se mantém levemente superficial, um totem de injustiça e bondade que reage eticamente a cada situação difícil que encontra no caminho.
A investigação nos leva para a cidade de Chicago, contendo a perseguição pelo resto do filme. A decisão é acertada e muito bem justificada para explicar o motivo de Kimble se sujeitar a um enorme risco de ser reconhecido por cidadãos ou por policiais. Enquanto isso, também acompanhamos o ponto de vista de Gerard que consegue conferir mais complexidade para Kimble através dos testemunhos de colegas e amigos do médico. A partir disso, sabemos que ele é muito inteligente e que quase sempre está a dois passos à frente da polícia federal.
Aliás, os roteiristas não cansam de fazer duras críticas à força policial de Chicago como a federal, assim como o sistema judiciário como um todo. Tudo funciona bem, apesar de ser consideravelmente maniqueísta ao retratar diversos policiais como patetas preguiçosos e violentos. Apesar disso, é bastante funcional dentro do filme.
O que surpreende é como o roteiro se torna muito bem amarrado até o ponto de jogar o protagonista em uma conspiração médica sem tamanho. Apesar de se aproximar muito de quebrar a suspensão da descrença dessa história, as reviravoltas do terceiro ato não são nada previsíveis e levam a um pay off espetacular e consideravelmente emocionante. Apesar dos personagens serem rasos em maioria, os mais funcionais conseguem se salvar pelo estereotipo e das motivações bem definidas.
Improvável Conquista
Andrew Davis não é lá muito conhecido nem mesmo pelos maiores fãs de filmes de ação de Hollywood. Até O Fugitivo, tinha dirigido poucas obras de grande impacto e, até mesmo depois do sucesso desse longa, não conseguiu emplacar uma carreira mais notável. Davis simplesmente era um funcionário da indústria que entendia bem como filmar ação. Felizmente, estava na hora e no lugar certo para assumir esse projeto, pois muitos méritos recaem sobre sua competência com o manejo da câmera e da decupagem.
Mas isso necessariamente não significa que Davis comece o longa de um modo muito inteligente. Na verdade, ele pega os piores vícios dos anos 1990 para mostrar a cena do assassinato: uso de preto e branco, aplica filtros negativos na imagem, closes apertadíssimos e um slow motion capenga e desleixado. Isso já deixa uma primeira ideia bastante negativa, dando a impressão de um filme envelhecido e possivelmente brega como muitos dessa década.
Felizmente, isso some assim que o filme realmente começa. Mesmo que não haja lá um enorme capricho em composição, Davis preza por algo que marcou muito o cinema de ação dos anos 1990: o realismo. É justamente nessas sequências que o diretor consegue brilhar ao nos mostrar um trem partindo em direção ao ônibus tombado enquanto Ford se esforça para sair das ferragens, do vidro blindado prestes a partir em um tiroteio contra Kimble ou jogar o personagem em uma enorme catarata artificial. É maravilhoso e sentimos muito bem o impacto disso tudo.
Davis também tem a competente obsessão de estabelecer com cuidado toda a geografia das cenas, seja de ação ou não. O Fugitivo é um dos filmes mais compreensíveis visualmente que eu já tenha visto na vida e isso é um grande mérito. Logo, é difícil ficar perdido mesmo durante complicadas perseguições. Interessante que o diretor sempre inicia grandes sequências de perseguições e as trata realmente pequenas histórias. Elas nunca ficam concentradas muito tempo em um cenário e logo evoluem para algo mais emocionante ou complicado como uma que começa em um prédio e termina em pleno desfile do dia de São Patrício.
Outra boa característica é seu olhar muito inteligente para preservar o silêncio em diversas sequências, principalmente as de investigação de Kimble, na qual seria fácil demais apelar ao pecado do solilóquio falante, com o personagem falando consigo mesmo para explicar o que acontece em tela. É ótimo por não subestimar a inteligência do espectador em momento algum.
Por fim, Davis é particularmente inteligente ao conseguir criar um clímax muito tenso e bastante hitchcockiano ao aproveitar todos os recursos cinematográficos disponíveis para criar suspense em uma perseguição contida entre três indivíduos. O desenho de som colabora, a montagem e até mesmo a fotografia tem grande impacto para o suspense quase insuportável do desenlace da obra. Aliás, a montagem do filme é uma grande vencedora em conseguir ser poética quando necessário como o cruel corte de um beijo para as tentativas desesperadas de Kimble ressuscitar a mulher, além de extremamente competente em dar unidade para o filme.
Ação como deve ser feita
Assistir ao O Fugitivo hoje é bastante deprimente. Obviamente, não porque o filme seja ruim, já que evidentemente ele é ótimo, mas pelo fato do declínio completo que os longas de ação sofreram nos últimos anos. Mesmo com tanta tecnologia disponível, praticamente nenhum lançamento consegue ser tão memorável ou inteligente quanto esse clássico noventista.
Com cortes rápidos exagerados, coreografias poucos inspiradas e set pieces banais, vimos o cinema de ação se afundar em um filme mais genérico que o outro. Para os saudosistas do bom realismo de outrora, dos efeitos práticos e do investimento completo em set pieces memoráveis, não há remédio melhor do que essa inesquecível conquista que foi O Fugitivo, um filme que conseguiu render até mesmo o Oscar.
O Fugitivo (The Fugitive, EUA – 1993)
Direção: Andrew Davis
Roteiro: Jeb Stuart, David Twohy, Roy Huggins
Elenco: Harrison Ford, Tommy Lee Jones, Julianne Moore, Sela Ward, Andreas Katsulas, Tom Wood, Ron Dean
Gênero: Ação
Duração: 130 minutos