*Este filme foi visto na 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
Bastam alguns minutos de projeção para saber quase todas as etapas do desenvolvimento narrativo de O Jovem Karl Marx. Não há a menor necessidade de conhecer a história de vida do biografado para prever que acompanharemos a típica trajetória do homem talentoso e inquieto que sacrifica muitas coisas e se coloca contra pessoas próximas – ou a sociedade em geral – para se tornar um sujeito auto-realizado e historicamente relevante; ou que testemunharemos clichés cinematográficos como o uso de fade-out depois de um personagem desmaiar e o ajuste do desfoque quando ele acorda, justamente no momento em que a câmera subjetiva que recria o seu ponto de vista é dominada pela figura de sua futura parceira.
Todavia, há um elemento diferente que faz com que a obra de Raoul Peck se destaque negativamente das demais. É um fato conhecido que as cinebiografias (ou recortes biográficos) constituem um dos subgêneros mais formulaicos. Obviamente, há obras dessa natureza que são caracterizadas por experimentação e ousadia formal – os recentes O Formidável e Rodin, filmes sobre determinados períodos nas vidas de Jean-Luc Godard e Auguste Rodin, respectivamente, são bons exemplos. Porém, a maioria delas segue o formato narrativo/estético convencional e a cartilha de mostrar as diferentes facetas da pessoa retratada, contrapondo o sucesso profissional com os defeitos comportamentais.
O Jovem Karl Marx vai pela via contrária. Não me entendam errado, o longa é genérico e banal em todos os sentidos, no entanto, ele se nega a mostrar qualquer aspecto negativo da personalidade do famoso teórico comunista. Tanto ele quanto Friedrich Engels são homens geniais, à frente do tempo, ambiciosos, corajosos, ousados, carinhosos, engraçados, responsáveis e preocupados com a paz universal. Não há nada em suas respectivas personalidades que deponha contra nem mesmo um defeito capaz de nos convencer que estamos vendo a história real de dois seres humanos.
Inicialmente, isso pode ser confundido com um erro, mas, ao passo que a narrativa vai se desenrolando, torna-se claro que não estamos diante de uma obra artística preocupada com aquilo que nos é mostrado ou interessada em problematizar as questões que Marx e Engels abordaram em seus textos. Na verdade, o seu objetivo é outro e tem muito mais a ver a com a propagando política descarada. Peck, Pascal Bonitzer e Pierre Hodgson não querem desvendar o homem. Pelo contrário. Desejam ilustrar o mito, com todas as verdades e mentiras que acompanham as mitificações.
Deste modo, é impossível levar a produção a sério, tanto da perspectiva histórica quando artística. A recriação de época e o elenco são competentes (August Diehl, de Bastardos Inglórios, é um daqueles atores hipnóticos, dos quais é difícil desgrudar os olhos) e até há boas ideias (como as primeiras cenas em que Marx e Engels interagem, que recria parcialmente a lógica de uma comédia romântica), porém, o evidente caráter propagandístico e a parcialidade com que retrata um dos fundadores do comunismo são imperdoáveis. O filme parece ter sido feito muito mais pelo agente publicitário de algum partido político do que por um artista preocupado com a realidade concreta.
O Jovem Karl Marx (Der Junge Karl Marx, Alemanha – 2017)
Direção: Raoul Peck
Roteiro: Raoul Peck, Pascal Bonitzer e Pierre Hodgson
Elenco: Auguste Diehl, Stefan Kornaske, Vicky Krieps, Olivier Gourmet, Hannah Steele, Alexander Scheer
Gênero: Biografia, Drama
Duração: 118 minutos