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Crítica | O Menino e a Garça é o testamento de Hayao Miyazaki

Crítica | O Menino e a Garça é o testamento de Hayao Miyazaki
Studio Ghibli

Depois de Vidas ao Vento já tendo servido como um epitáfio de carreira perfeito para a obra assinada pelo nome de Hayao Miyazaki, ele parecia mais do que pronto para descansar e se dar adeus ao mundo de imaginação que ele ajudou a estabelecer durante o período de três décadas, impactando para sempre a animação como uma forma de arte cinematográfica. Entregue na forma de uma despedida que representou sua própria arte no que muitos consideraram ser seu trabalho mais autobiográfico até hoje, através da história de devoção e fascínio de um homem por seu próprio ofício e o equilíbrio agridoce que este tem com aqueles que ele ama.

Mas agora que chegamos no fim do hiato de dez anos que separa o último filme de Miyazaki, retornando agora O Menino e a Garça, uma estranha anomalia acompanha o mais novo filme do diretor, no sentido da dúvida  que este emana sobre… o que mais resta para ser contado?! Especialmente sobre ele mesmo, já que o filme foi abertamente anunciado como o mais autobiográfico do diretor até agora.

Com certeza posso ver como isso pode incomodar alguns na forma com que podem reagir ao filme com certo distanciamento e um tico de ‘revirar os olhos’, julgando como mais do mesmo que visto antes (e melhor) na carreira de Miyazaki, especialmente tendo já Vidas ao Vento (e até mesmo Porco Rosso) atuando nessa frente autobiográfica e sendo muito menos óbvio nisto ao entregar na forma de algo novo dentro do currículo do diretor, mostrando um diretor de visão mais madura, meditativo, explorando um estudo de personagem de caráter semi-biográfico em forma de animação que possuí tons perfeitos de um melodrama época.

Enquanto que em O Menino e a Garça, como muitos têm apontado, tanto de forma crítica quanto elogiosa, parece uma série de relembrança dos “greatest hits” (os maiores sucessos). Isto é, mais uma homenagem ao seu trabalho ao invés vez de se aventurar em algo inovador, como cada um de seus filmes até hoje o fez de uma forma ou de outra. Bem… dado que este é um filme pessoal, acho que um pouco de experiência pessoal também pode servir para expressar adequadamente a reação mais definitiva, profunda e honesta em relação ao que este que vos escreve realmente achou de O Menino e a Garça e por que o achei nada menos do que mais uma obra-prima no currículo de Miyazaki!

 

Despertando a Infância

Tudo começou com meu primeiro contato com o Studio Ghibli na minha vida e, perdoem minha hipérbole habitual, como isso mudou para sempre minha perspectiva sobre animação em como vê-la (e exigir dela) como uma forma de arte. Quando meus pais me levaram em um belo chuvoso dia no cinema, coisa que pouco fazíamos (ainda mais juntos), por isso se tornou aquele dia tão especial para mim.

O meu eu de nove anos queria assistir Madagascar e então o fizemos, mamãe dormiu durante a sessão e eu e meu pai rimos um monte, Eu me Remexo Muito etc etc; Mas o que mais me marcou naquela sessão nem sequer foi o filme e sim o trailer que passou antes dele, O Castelo Animado; onde por dois minutos minha mente parecia ter sido transportada para outra dimensão no qual apenas posso definir como um vislumbre de transcendência.

Nunca tinha visto uma animação como aquela, embora eu tenha meramente reconhecido o traço “anime” na sua composição então imaginei que fosse japonesa. Mas o conteúdo, aquela escala abnorme do castelo e seus componentes móveis infinitos; uma história que levava a protagonista a infância para a velhice como uma maldição. Era aterrorizante, mas também belo; assustador, mas encantador!

Eu não sabia que uma animação era capaz daquilo, daquela ambição de idéias maduras, essa mistura de tons, tudo em volta de uma escala visual quase operática que só hoje sou meramente capaz de tentar definir em palavras. Uma arte que é puramente orquestrada pela ‘sensação’, movido pelo maravilhamento, emoção e encantamento do que é construído na tela, pela capacidade de nos permitir senti-lo!

Foi exatamente essa mesma sensação que pude sentir assistindo ao O Menino e a Garça, talvez mais que em outros filmes de Miyazaki que assisti desde então, talvez por ser o único que pude ter a chance de testemunhar numa sala de cinema, exatamente para aonde foi feito para ser experienciado (e vivido)!

Um tipo de animação que não é apressado em querer entregar poluição visual e conteúdo “dramático” mastigável para crianças. É apaixonadamente atrelado ao seu mundo, que toma seu tempo em cada quadro e momento sob movimentação contemplativa; que trata tanto adultos quanto suas crianças com a devida maturidade emocional; mas sendo convidativo para com ambos. É energético e estrondoso em escala, bobinho e cômico sem vergonha, mas tenebroso e perturbador em igual medida.

O misto de emoções é o que nos hipnotiza e nos permite imaginar junto ao seu criador. Entregando o que hoje sei definir como uma experiência puramente sensorial e onírica na sua forma mais perfeita! Como um pincel se movendo pela tela criando forma e traço, cada frame que Miyazaki e seus artistas criam, nos deixa viver em seus mundos, sentir seus personagens, poder habitar naqueles momentos singulares.

Onde o impossível além da paisagem é real e pode ser alcançado; que as pequenas ações que somos capazes de realizar aqui nesse mero recanto carregam impacto e possuem poder, imponência; que somos os heróis de nossas histórias, que nossas dores importam e são sentidas, que nossos sonhos são válidos e merecem ser experienciados e criar vida.

 

Compartilhando um Sonho e uma Vida

Mas o que se permite aqui não é apenas mergulhar só nos sonhos de um homem, mas em seus sentimentos que ele compartilha conosco aqui, os de ontem e hoje. Os moldes de seu universo podem se confundir, ora realidade e sonho parecem ser parte do mesmo mundo e não haver uma aparente divisão lógica entre ambos, mas a clareza emocional é a única concreta, a única certeza em seu meado de confusão impenetrável e complexa!

Uma confusão que pertence a uma verdade, à ‘única verdade’ de um indivíduo. E por ser um filme ainda mais abertamente sobre Miyazaki, esse pessoal intrínseco presente no cerne do filme é compartilhado conosco, através das emoções que eles emanam e sob um holofote de fantasia de tom agridoce. Ecos de sua infância que se revelam com o pai administrando uma fábrica de aviões de guerra; a perda traumática de sua mãe; a maldição existencial perfeccionista proveniente do peso das expectativas colocadas em seu trabalho, o corresponder a expectativas dentro de um círculo que mistura o pessoal e o familiar com o próprio ato de execução, criação.

E sim, isso se vê presente em todos os ecos familiares de seus trabalhos passados que podem ser facilmente reconhecidos aqui e que um crítico mais impiedoso facilmente irá defini-los como: “marcas registradas recicladas” ou “feito melhor antes”. Desde a fantasia infanto-juvenil que misturas de lendas populares e expressionismo cultural; a alegoria da guerra; a casa no campo; as reflexões sobre o luto, a mortalidade, a natureza corrompida ferindo seu pacifismo ambientalista, etc.

A inegável tentativa de conectar, embora soe mais como um ecoar, de filmes passados é realizada propositalmente como um tecido interconectado à sua própria criação – algo que atua diretamente na narrativa central; se sobressaindo além do que ser apenas uma mera homenagem auto congratulatória.

Os elementos familiares de Meu Amigo Totoro e A Viagem de Chihiro na forma com que lida com o luto de seu (sua) protagonista, partindo para um retiro em um local rodeado pela natureza, conduzindo depois ao encontro com o fantástico na forma de um mergulho surreal numa dimensão exterior.

E até se constrói de forma semelhante a O Castelo Animado, com Miyazaki pegando um livro de literatura infantil aclamado – naquele caso, da autora Diana Wynne Jones; e adaptá-lo sob as próprias lentes culturais do Oriente. Ele faz o mesmo aqui ao realizar uma mistura entre The Boy and the Blue Heron de Bianca Raniolo – uma história sobre uma garça ajudando um menino a processar suas emoções através de uma aventura fantasiosa;

Misturando-o com sua inspiração principal – e o título original mais adequado do filme: How do You Live? (Como você Vive?), de Genzaburo Yoshino, sobre um menino lidando com luto. Se você quiser ir ainda mais longe, é também filme de Miyazaki mais graficamente violento, com direito a litros de tripas, sangue jorrando e piadas mórbidas envolvendo animais selvagens falantes perturbadores que muito ecoam Princesa Mononoke.

Embora o mais importante que vejo sendo retomado aqui, é como O Menino e a Garça atinge suas notas dramáticas de maneira bem similar à O Serviço de Entregas da Kiki, através de pura introspecção. Com fios dramáticos nunca totalmente explicados, onde a reação de seu personagem central diz tudo: a raiva, a angústia, a saudade, a tristeza e o conflito com quase todos os elementos de sua vida, sendo atacados por sua revolta e tristeza nunca verbalizada.

Se estruturando na forma de um clássico conto de formação, uma catarse atingida através de um ‘coming-of-age’ através da fantasia! Isso era verdade para Kiki, uma de suas muitas amadas protagonistas femininas; como é agora para Mahito, um de seus raros protagonistas masculinos e um avatar pessoal.

 

Uma Jornada de Cura

Mas essa confusão de emoções emana de algo mais profundo e vai muito além de meros conflitos íntimos, ao mesmo tempo em que abrange ambas as escalas, a épica e a pessoal, em perfeito equilíbrio.

Os mesmos traumas e angústias de Mahito, se espelham nos que Miyazaki testemunhou ao longo da sua vida. Dos medos e revoltas que geraram o ódio que envenenou o seu país, as gerações que ele presenciou serem tomadas pelo nacionalismo fanático. Mas também o mal visto em sua própria alma, em seu próprio sangue.

Seja o conflito com seu filho Goro – já bem divulgada na mídia; seus próprios embates criativos, de financiamento a produção frente a uma forma de arte sempre árdua e assustadora e cada vez mais dominada pelo mainstream Americano que nada mais faz que entregar o equivalente a séries do Discovery Kids em orçamento caro e cujos brilhos que podem ter tido um dia, foi a muito tempo corrompido.

Em um mundo cada vez mais corrompido pelo niilismo, pelo cinismo cego, impregnado de violência presente na política, na natureza, nos pequenos gestos de indiferença: de revolta, raiva e ódio; provenientes de inúmeras e inexplicáveis origens: ideológica, de perda, de frustração, emocional, familiar; que só os gestos igualmente pequenos de carinho, compreensão e amor podem curar, acalmar e deixar-se ir, através da gratidão, da aceitação.

O fazendo embarcar em uma jornada para encontrar a harmonia dentro de nós mesmos e encontrar a chave através desse processo muitas vezes nebuloso e confuso de cura, desenvolvendo nossos valores, encontrando o caminho necessário a seguir para moldar nossas crenças e idéias sobre a vida e as decisões que tomamos para criar-la no dia a dia!

Através dos meios que usamos para abstrair nosso núcleo em algo definitivo, expressivo, significativo. Seja a caça a uma garça diabólica (que acaba se revelando num boboca adorável); a busca incessante por algo que preencha o vazio deixado por um ente querido que, ao partir, levou consigo um pedaço do nosso coração; ou no trabalho de vida inteira que dedicamos corpo e alma!

Que através de Miyazaki, ganha vida sob sua habitual beleza incomparável: suas composições em aquarela, as exuberantes paisagens pintadas à mão, a animação 2D lindamente renderizada nos mínimos detalhes, um banquete para os olhos doloridos que parece tão incrível como sempre foi! Ainda acompanhado pelas melodias magistrais de Joe Hisaishi em sua simplicidade penetrante e comovente.

Que facilmente se aventura sob o sobrenatural, o perturbador, a bizarrice e a estranheza, mas achando o cômico de tudo, representado aqui por periquitos canibais famintos que talvez sejam as criaturas mais fofas, bobas e sedentas de sangue que Miyazaki já criou desde o Sem-Rosto de A Viagem de Chihiro; ou uma Garça Azul que passa de inimigo desprezível a um precioso aliado leal.

Através de uma aventura que se assemelha a Alice no País das Maravilhas com o dobro da abstração surreal, mas se tornando a versão de Miyazaki para a Divina Comédia de Dante, cruzando literalmente os andares do inferno, do purgatório e do paraíso. Mal comparando, mas como já dizia o velho Max Cady em Cabo do Medo: todo homem tem que passar pelo inferno para chegar ao seu paraíso; e se esta é a terapia espiritual do próprio Miyazaki, resulta talvez na sua aventura surreal mais épica até hoje!

Em uma história que vai além de uma simples aventura fantasiosa e um drama claro sobre o luto e seu preço, o diretor encontra uma história sobre alguém que perde contato com o mundo real, tornando-se o governante de seu próprio universo imaginário, onde atua como deus e guia, que ele (Mahito) ainda se aventura e explora tentando encontrar respostas; enquanto o seu eu mais velho (o tio-avô) já reflete e pondera sobre a certeza do finito, o significado final de tudo e se valeu a pena em primeiro lugar.

De criar um mundo que ele tentou construir livre da malícia, do feio que domina as nossas vidas, mas que sempre se infiltrou, confundindo entre o pessoal e o fantástico. Ambos evocando a aspiração nostálgica pela criação vinda de seu eu criança, e seu agridoce tempo finito de conclusão refletido em seu eu mais velho; que por si só reflete numa história ainda maior, sobre o legado da linhagem, a continuidade de trabalho, o seu futuro dependente das relações interpessoais, as decisões e escolhas que definem o nosso futuro e quem somos, que muitas vezes podem nos fazer viver em estado de arrependimento, vivendo em triste saudade, e o que podemos de fato herdar e para quem.

Mais do que tudo, O Menino e a Garça é sobre paz, não apenas paz e compreensão encontradas no final de todos os conflitos estabelecidos entre os personagens aqui: Mahito aceitando o peso da perda; a necessidade de seguir em frente; reconhecendo o valor desnecessário do ódio e do conflito, chegando à paz com o passado e o futuro – e tornando-se amigo de uma Garça maluca!

Mas especialmente sobre a paz de Miyazaki com seus próprios fracassos, tristezas e traumas; encontrando novamente o equilíbrio eterno que reverberava em seus filmes, a linha persistente entre o horror e a admiração, a tristeza e a alegria, a tragédia e a realização, aceitando a dor em seu coração, mas se abrindo além dela! Talvez fazendo as pazes com o filho e com o caminho por ele trilhado, não precisando cumprir seu legado da mesma forma; um adeus ao neto e ao seu público jovem, deixando-lhes as ferramentas e o conhecimento para um mundo melhor, talvez encontrado através de seu ofício e as mensagens que ele tentou transmitir com cada um de seus filmes.

 

O fim?

Verdade seja dita, a maioria dos elogios feitos aqui poderiam facilmente caber em qualquer um de seus outros filmes, o que é minha maneira de dizer o óbvio: mais uma obra-prima pra conta; o que, claro, é o mais tendencioso possível. Mas todos os elogios que eu, e muitos outros podemos lançar em Miyazaki não são tagarelices vazias e inúteis. Eles são despertados de algo poderoso, que somente suas mãos e imaginação, tão sinceras podem proporcionar. O que torna ainda mais confuso é como essa pode ser o seu canto dos cines quando ele se mostra pronto para muito mais?!

Ao contrário de Vidas ao Vento, e por mais que todo o contexto da obra se apresente; o filme não parece nem um pouco com um trabalho de despedida! É uma aventura fantasiosa bastante direta e talvez “simplista” em sua resolução, embora sob uma meta-execução abstrata. Mas que é Miyazaki mostrando como ele ainda pulsa com tanta vida, ansiando por viver, pronto para criar mais, mesmo que seu fim certo esteja se aproximando. Então se esse é mesmo o seu adeus, ele mostra que ainda tem muito mais dentro dele… que além de ter me ensinado ter esperança e sonhar, que ainda é algo alcançável e de muito valor!

O Menino e a Garça (Kimitachi wa Dō Ikiru ka,Japão, 2023)

Direção: Hayao Miyazaki
Roteiro: Hayao Miyazaki
Elenco: Soma Santoki, Masaki Suda, Aimyon, Yoshino Kimura. Shōhei Hino, Ko Shibasaki, Takuya Kimura
Gênero: Animação, Drama, Aventura
Duração: 124 min

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Publicado por Raphael Klopper

Estudante de Jornalismo e amante de filmes desde o berço, que evoluiu ao longo dos anos para ser também um possível nerd amante de quadrinhos, games, livros, de todos os gêneros e tipos possíveis. E devido a isso, não tem um gosto particular, apenas busca apreciar todas as grandes qualidades que as obras que tanto admira.

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